Pequeno livro editado em Lisboa pela Imprensa de J. G. de Sousa Neves em 1873.
António Feliciano Marques Pereira - cronista da história e dos usos e costumes de Macau - e o seu filho João Feliciano Marques Pereira - fundador e coordenador da revista Ta-Ssi-Yang-Kuo – arquivos e anais do Estremo-Oriente Português - deram um importante contributo em dar a conhecer a história de Macau.
Um excellente amigo meu da China (e, Deus Louvado, ainda ahi os tenho de molde que me tira a vontade de enxergar os fundibularios covardes que tentaram e lograram com a mais infame das ciladas molestar-me nos excessos do brio) tendo visto uma das tres pequenas cartas que adiante se lêem, cheio de honesto e constante interesse pelo assumpto que levemente suggerem, e julgando dos ocios do esclarecido jornalismo politico lisbonense com a ingenuidade de um portuguez distante: pediu-me, por carta, que lhe mandasse, colligida em volume, toda a controversia que antecedêra e seguíra o que tinha lido.
Respondi-lhe que a controversia toda pouco mais era, e nem sequer chegaria a dar um folheto; que a uma segunda carta minha, que a Gazeta do Povo, publicou, não houvera mais resposta: silencio este que, não podendo ser attribuido á victoria cesárea dos meus abreviados argumentos, tambem com inteira justiça se não podia imputar á insufficiencia d'aquella folha, a qual desde logo manifestára que a replica, a ter lugar, não cabia á sua redacção effectiva, mas a um seu illustrado collaborador e amigo; e finalmente que já se annunciava a substituição da Gazeta pelo Paiz, e que não era de presumir que este cuidasse em tomar dos collaboradores d'aquella o legado triste, e felizmente descurado havia mezes, de desmentir e annullar os restantes direitos do nosso padroado portuguez na China.
Insiste o meu amigo, pela recemvinda mala, em que lhe mande o folheto, entendendo que, por muito exiguo que seja, sempre terá a efficacia de um brado ou um gemido em causa de tanta justiça.—Não sei recusar-lhe nada, e até o muito que o estimo quasi me não deixa sorrir da sua confiança em brados ou gemidos a favor de causas justas. Permitta-me porém a sua amisade que declare aqui bem explicitamente que a unica pretensão e o unico intuito d'esta pequenina copilação é satisfazer a um pedido seu, e sem demora de um paquete.
Lisboa, 21 de fevereiro de 1873.
I
Em 19 de fevereiro do anno findo, sobre a leitura de justissimas considerações do meu referido amigo, dirigi a seguinte carta ao Diario de Noticias, que a publicou em 20:
Ex.mo sr. redactor,
Com respeito á nossa colonia de Macau, ha tres questões palpitantes, importantissimas, que a imprensa periodica de Lisboa conhece, creio eu, comquanto as não discuta. São a ratificação do tratado de 1862; as alfandegas chinesas em territorio portuguez; a emigração. A solução da primeira depende da habilidade e pericia do nosso plenipotenciario. A da segunda da inteiresa e energia das primeiras auctoridades do estabelecimento. A da terceira da rigorosa e imparcial observancia dos regulamentos, e do bom accôrdo com a diplomacia inglesa. A nenhuma dellas me refiro n'esta carta. Sobre a primeira e terceira tenho escripto em demasia, tanto livre como officialmente. Da segunda sou victima, e portanto suspeito perante o programma de uma folha incolor. Existe porém uma quarta questão pendente, esquecida ha muitos annos, mas nem por isso pouco importante para a colonia de Macau. A solução d'esta depende do sr. ministro da marinha e do governo. Refiro-me ao padroado portuguez na China, e reduzo-me a historial-o em poucas palavras. O bispado portuguez de Macau, erecto pela bulla de Gregorio XIII, de 23 de janeiro de 1575, comprehendeu em seu principio toda a China e Japão, terras e ilhas adjacentes. Em 1588 foi creado o bispado de Funay, no Japão, e em 1690 os de Pekim e Nankim. Innocencio XII, logo depois, reduziu consideravelmente os limites dos bispados da China, que abraçavam, além das provincias do imperio, a Tartaria, Tongking e todas as ilhas. Esta circumscripção foi que designou ao de Macau as provincias de Kuang-tung, Kuangsi e as ilhas que a ellas pertencem,—e assim durou até não ha muitos annos. Seguiu-se a concordata, ratificada em 6 de fevereiro de 1860, que pelos artigos 3.º e 4.º e annexo A reduziu ainda o padroado portuguez na China á diocese de Macau, e esta á provincia de Kuang-tung e ilhas adjacentes, com excepção de Hongkong. Esta diocese, por estar de si bem determinada, não exige para o seu completo reconhecimento a circumscripção prévia que a mesma concordata estabelece necessaria para as da India. Comtudo em 1872 os missionarios da congregação da Propaganda conservam-se em toda a provincia de Kuang-tung com um bispo estrangeiro, a despeito da justissima antipathia das christandades; e a Santa Sé mantem a recusa da confirmação do bispo apresentado pelo real padroeiro na fé dos citados artigos.—Lembrar a necessidade que tem de um bispo a diocese de Macau, viuva ha vinte annos, e a obrigação que tem o governo de se fazer ouvir do supremo chefe da egreja para que considere e afaste a obstinada lesão dos nossos direitos, já tão diminuidos, é, sr. redactor, o objecto d'esta minha carta, que abreviei quanto me foi possivel.
S. C., 19 de fevereiro de 1872.
De v. ex.ª
A. Marques Pereira
II
Na Gazeta do Povo de 27 li depois isto:
NOTICIAS DE MACAU E QUESTÃO DO PADROADO
«A proposito de coisas de Macau, mencionemos uma carta assignada pelo sr. Marques Pereira em 19 do corrente mez, e publicada no Diario de Noticias. Seu objecto principal é ácerca do padroado da China, e da questão da escolha e confirmação de bispo para Macau.
Censura o sr. Marques Pereira a recusa da Santa Sé áquella confirmação, chamando-lhe obstinada lesão dos nossos direitos.
Para que o publico não seja induzido em erro por taes asserções de pessoa que é tida por entendida nos negocios de Macau, contrapomos áquella carta algumas observações sobre o mesmo assumpto, copiadas da Correspondencia de Portugal de 29 de janeiro ultimo. Este excellente jornal é pouco lido no paiz, e por isso mui limitado numero de individuos conhecerão aquellas observações.
Julgamos, pois, fazer bem em vulgarisal-as, para que na apreciação de assumpto tão importante, se julgue com a imparcialidade e exempção de preconceitos que elle reclama.
Está confirmada por Sua Santidade a transferencia do sr. bispo eleito e confirmado de Macau para a diocese d'Angra, da qual já mandou tomar posse.
«Está pois vaga a mitra de Macau, e é, a nosso vêr, uma urgente necessidade provêl-a sem demora. A falta dum prelado sagrado n'aquella cidade é mui prejudicial para seus interesses religiosos e civis. Mas a apresentação do novo bispo de nada servirá, se o governo não quizer acceitar as respectivas bullas com as restricções de jurisdicção exaradas nas do sr. D. João, quando foi confirmado bispo de Macau, ou com outras.
«O sr. marquez de Sá da Bandeira, com o tino e sensatez que lhe dá o muito conhecimento que possue dos negocios do ultramar, resolveu, na ultima vez que foi ministro da marinha, acceitar aquellas bullas, o que os ministros seus predecessores tinham recusado.
«Se o digno actual ministro da marinha não fôr d'esta opinião, então é inutil a apresentação de novo bispo, e só servirá para renovar já cansadas questões, que não levarão a melhor resultado do que até agora.
«Se o governo sinceramente quer attender ás necessidades religiosas de Macau, entre em cordeaes negociações com a Santa Sé para restringir, ao menos provisoriamente, a desmedida extensão da diocese de Macau.
«Proponha-se que o novo bispo seja confirmado com a jurisdicção limitada, não á cidade de Macau, como foi o ultimo bispo eleito, mas á contigua denominada peninsula de Heang-cham e ilhas chinezas circumvizinhas. Actualmenle não ha n'estes territorios missionarios nem estabelecimentos alguns da Propaganda Fide, e portanto nenhumas difficuldades se suscitariam.
«É sufficiente terreno e população para uma excellente missão, proporcionada aos nossos meios, pois tudo comprehenderá 500:000 a 600:000 habitantes, que teem continuo trato com os portuguezes, cujos costumes e leis mais ou menos conhecem, e parte delles por vezes teem aproveitado a protecção da nossa bandeira, fugindo á guerra civil, ou ás extorsões dos seus mandarins.
«Uma missão n'estes limites, dirigida com zelo, habilidade e perseverança por alguns missionarios portuguezes, auxiliados pelo clero indigena chinez ou de Macau, conseguiria, em algumas dezenas de annos, christianisar, senão toda, decerto uma grande parte da população, e preparal-a talvez para acceitar gostosa o nosso dominio temporal, aproveitando o governo portuguez algum ensejo favoravel, facil de se dar no estado de desorganisação politica e social em que se vê o grande povo chinez.
«A guerra civil, que sempre mais ou menos lavra na China, e a renovação da guerra com estrangeiros, que é inevitavel, mais tarde ou mais cedo, renovarão as circumstancias, tão infelizmente desaproveitadas, que occorreram na ultima famosa guerra entre o celeste imperio e a França e Inglaterra. Ha mais de dez annos poderiamos possuir a peninsula de Heang-cham, se não fôra a criminosa incuria, quasi incrivel, d'um ministro d'aquella época e dos seus empregados.
«Preparar taes resultados será ao mesmo tempo um grande serviço á religião e á civilisação, e ao engrandecimento e gloria da patria.
«A occasião é a melhor possivel. O prestigio e influencia da França nos negocios da China está sustado por largos annos. Os interesses politicos e religiosos d'aquella potencia é que nos podiam contrariar; estabelecendo seus missionarios, capellas, hospitaes e escolas no referido territorio, como tem feito em todo o resto da provincia de Cantão, em Kuang-si e no Hainão, extensissimos paizes, comprehendidos de direito na diocese de Macau, mas ha muitos annos de facto perdidos para o padroado real, pela falta de cumprimento das obrigações do padroeiro.
«Não ha, pois, receio que a França venha oppôr difficuldades ao indicado accôrdo com a Santa Sé, que julgamos não se recusará a elle, nem rasoavelmente o póde fazer. Para nós, Portuguezes, nada tem de indecoroso, como o poderão julgar alguns animos possuidos de exaggerado e insciente patriotismo.
«Devemos francamente reconhecer que foi justa a restricção imposta pelo Summo Pontifice nas bullas da confirmação do mencionado ultimo bispo eleito de Macau, e que o será se se repetir esse facto, com o qual o governo deve contar, se apresentar novo bispo.
«Se Portugal não cumpre a concordata na parte onerosa, como póde exigir o pleno cumprimento d'ella na parte benefica e de privilegio?
É já tempo que os ministros, os representantes do paiz e a imprensa que se diz liberal, deixem esse systema de declamações apaixonadas, quando se trata da questão do padroado, que não estudam, ou não querem estudar, com a imparcialidade e justiça que ella exige.
«Ha até conveniencias positivas e puramente politicas, que aconselham a desistir temporariamente, ou mesmo para sempre, ao direito da actual circumscripção da diocese de Macau. Isso nos livraria de muitos embaraços e vergonhas. Firmemos bem o dominio espiritual onde temos o temporal, tão vacillante nas colonias; e deixemos pretensões que se tornaram já ridiculas perante a Europa, pelo estado de abatimento e desorganisação em que está Portugal.»
Eis, pois, o que diz a Correspondencia de Portugal. Ainda que não concordassemos inteiramente com as opiniões expostas, as julgamos dignas de attenção quando se trata de apresentar novo prelado para Macau, o que tambem entendemos não se dever demorar.»
III
Era uma accusação de induzir o publico em erro. Outras maiores ainda recebi já da imprensa, felizmente com igual justiça, mas em Lisboa foi, e é até agora, a primeira que eu lêsse. Maiores ou menores tenho a fraqueza de levantar todas, emquanto me não chegue a má hora,—e espero que não chegue,—da consciencia me confirmar alguma. Entendo que a voz da imprensa deve ser sempre ouvida e discutida, de qualquer lado e até de qualquer modo que sõe. Chamei a isto fraqueza, e perdõe-se-me á conta de poder chamar-lhe parvoice. Quando, infamado pelo mais abjecto de quantos periodicos é crivel que possam existir, pedi ser suspenso do exercicio do meu cargo e corri aos tribunaes extrangeiros e nossos a esmagar a calumnia e os calumniadores pelo mais brilhante modo que um funccionario póde sequer desejar, encontrei na volta o mesmo cargo provido por insidia venal e patronato, e reclamando perante o ministro da marinha d'esse dia (que era por signal advogado) tive em resposta que me sobejava rasão, mas nada havia a fazer contra factos consummados de que elle ministro não era culpado e que dariam ao funccionario demittido hoje a mesma rasão de queixa que eu tinha pelo haver sido hontem. D'aqui aprendam quando injuriados, se poderem, os funccionarios publicos futuros. Eu por mim, dado o caso, reincidiria na tontice, e óro a Deus que me não accusem d'ella meus filhos quando a miseria se aprouver de leval-os á idade da rasão.—Trouxe eu isto fóra de proposito para dizer que respondi á Gazeta do Povo, em cujo numero 700 se lê:
«Recebemos do sr. Marques Pereira a carta que em seguida publicâmos. Não lhe respondemos, porque deixamos esse cuidado ao nosso illustrado amigo e collaborador, que trata da questão de Macau, e que por estar ausente só virá a ter conhecimento da carta do sr. Pereira quando a receber impressa na Gazeta do Povo.
Posto que a polemica mais pareça desejar encetar-se com relação ao que escreveu a Correspondencia de Portugal, ao nosso collaborador ficará pois não só o cuidado, mas a liberdade de fazer o que lhe approuver.
Eis a carta:»
Ex.mo sr. redactor da Gazeta do Povo,
Ha poucos dias dirigi ao Diario de Noticias uma breve carta lembrando a necessidade de se obter a confirmação de um bispo para Macau e os limites que a concordata ratificada em fevereiro de 1860 designou áquella diocese. Acrescentei simplesmente que,—logo depois da concordata,—a recusa de tal confirmação com os limites de jurisdicção estipulados, e a permanencia dos padres da Propaganda na provincia de Kuang-tung (quando ainda existem, mesmo na Asia, muitos paizes sem missões) era uma obstinada lesão dos direitos do padroado portuguez, já tão diminuidos.
No seu jornal de 27 do corrente, cita v. ex.ª essa minha carta, e, para que o publico não seja induzido em erro por ella, entende dever contrapôr-lhe um artigo da Correspondencia de Portugal de 29 de janeiro, que effectivamente transcreve.
Transcripto o artigo, diz por ultimo v. ex.ª que julga as opiniões d'elle dignas de attenção, posto que não concorde inteiramente com ellas.
Ignoro portanto qual seja a opinião de v. ex.ª sobre o assumpto do padroado portuguez na China, e absolutamente não comprehendo,—ainda depois de lêr o artigo da Correspondencia de Portugal,—de que modo a minha brevissima carta, simplesmente historica, possa induzir o publico em erro. N'essa carta indiquei o direito existente, assegurado por um tratado moderno: a Correspondencia de Portugal propõe que se estipule um direito novo. Disse eu que, descrevendo a concordata os limites da diocese, devia haver um bispo portuguez com jurisdicção nesses limites. Diz a Correspondencia de Portugal que taes limites são ainda exagerados e conviria reduzil-os á peninsula (aliás ilha) de Hianchan, de cujo dominio temporal se lhe afigura que viriamos mais tarde a apossar-nos. Em nada refuta isto o direito que até agora a concordata estabelece e eu lembrei.
Haveria porém muito, é certo, que discutir no artigo, e, se é intento de v. ex.ª franquear a essa discussão as columnas do seu jornal, offereço-me eu a tomar n'ella humilde parte.
S. C., Praça de S. Paulo 13, 1.º; 29 de fevereiro de 1872.
De v. ex.ª A. Marques Pereira.{23}
IV
Em 12 de março veio dizendo o illustrado amigo e collaborador da Gazeta do Povo:
«MACAU—QUESTÃO DO PADROADO
Quando démos as noticias de Macau vindas na precedente malla, aludimos a uma carta do sr. Marques Pereira, publicada no Diario de Noticias, ácerca da confirmação do novo bispo para aquella diocese, que o governo tem de apresentar.
Aquella referencia motivou outra carta do mesmo senhor, dirigida a este jornal, na qual declarando a primeira simplesmente historica, diz que por isso não comprehende como possa induzir o publico em erro.
Ainda que ha escriptores que erram na historia, e ás vezes scientemente, a nossa allusão não foi decerto á parte historica da carta do sr. Marques Pereira, mas sim á opinião ou asserção de que a Santa Sé recusára a confirmação do bispo para Macau, por obstinada lesão dos nossos direitos. A esta opinião do escriptor, segue-se uma instancia ou conselho ao governo, para que exija a confirmação do bispo de Macau, sem restricções de jurisdicção, pelo direito estabelecido na concordata; nada dizendo sobre os deveres a que por ella está obrigado o mesmo governo e que não tem cumprido.
Ora isto não é simplesmente historico. É uma apreciação que julgámos errada, e um conselho que entendemos mau; rasão porque lhe contrapozemos o artigo da Correspondencia de Portugal, que esclarece a questão, e mostra que não ha n'este caso da parte da Santa Sé obstinada lesão dos direitos da corôa portugueza.
O Papa não recusou a confirmação do ultimo bispo eleito de Macau, o sr. D. João Botelho do Amaral, hoje bispo d'Angra: pelo contrario, confirmou-o promptamente; mas com a jurisdicção restricta á cidade de Macau, emquanto o governo de Portugal não cumprir as obrigações do padroeiro, designadas na Concordata.
É este um tratado ou pacto que estabelece direitos e obrigações para ambos os contractantes.
Aconselhar, pois, como faz o sr. Marques Pereira, ao governo portuguez que exija a manutenção dos direitos, sabendo-se que este não tem cumprido, e que não mostra meios nem disposições para cumprir, as correlativas, obrigações; é que nos parece se póde dizer desejo de obstinada lesão contra o direito e a justiça natural.
Ainda que seria nas columnas da Correspondencia de Portugal, que melhor caberia a contestação do artigo que d'ella transcrevemos; comtudo se o sr. Marques Pereira quizer publical-a n'este jornal, de bom grado o faremos, pela muita attenção em que temos este conhecido escriptor, sem que isso nos obrigue a discussão.»
V
Ora a Correspondencia de Portugal não me culpára de induzir em erro pessoa alguma, e até o artigo que se extrahira d'ella para me convencer da culpa (v. pag. 14) antecedêra tres semanas a minha innocente e brevissima carta ao Diario de Noticias. Não vendo assim motivo de a importunar, e tendo vencido uma doença que me importunou a mim alguns dias, dirigi mais uma carta á Gazeta do Povo, que a inseriu logo e sem commentarios.
Dizia:
Ex.mo sr. redactor da Gazeta do Povo, Por falta de saude deixei de responder logo ao ultimo artigo em que tratou do padroado portuguez na China, com referencia a uma carta minha, e em que se dignou franquear o seu jornal á publicação das modestas considerações que me propuz expender a respeito dum artigo da Correspondencia de Portugal sobre o mesmo assumpto: artigo que v. ex.ª transcrevêra como refutação a uma outra carta que dirigi ao Diario de Noticias.
Tratarei de resumir quanto possivel o que tenho a dizer, porque infelizmente nem a naturesa do assumpto chamaria grande attenção a um artigo em demasia extenso, nem abusando eu do espaço do seu jornal corresponderia devidamente ao favor de v. ex.ª
Aceitemos um momento por incontestavel toda a culpa que v. ex.ª e a Correspondencia de Portugal attribuem ao governo portuguez na questão do bispado de Macau. Ainda assim me parece que, a não sermos mais inimigos dos restantes direitos do padroado portuguez do que o são os proprios agentes da Propaganda, deveriamos duplicadamente citar a concordata para que o governo cumprisse os seus deveres e exigisse os seus direitos. Querer que o culpado se não arrependa nem se defenda, e seja unicamente accusador e executor de si mesmo, parece-me injusto.
Mas, sr. redactor, somos nós hoje em verdade tão culpados quanto v. ex.ª e a Correspondencia de Portugal nos fazem? Pois não foi exactamente para castigo de nossas culpas que a concordata nos tirou todos os bispados da China, á excepção do de Macau, e reduziu este mesmo á colonia portugueza com a provincia de Kuang-tung? E que succedeu porém?
Ratificada a concordata os missionarios estrangeiros conservam-se em Cantão sob a exclusiva auctoridade d'um bispo seu que a Santa Sé lhes confirma, e ao real padroeiro portuguez é successivamente recusada a confirmação de dois bispos eleitos, ou offerecida com a restricção de jurisdicção ás tres freguezias da cidade de Macau!
A isto só v. ex.ª me oppõe,—permitta-me que o diga,—o eterno argumento dos Annaes da associação da Propaganda e publicações similhantes, do qual muitas vezes se usou com verdade tratando em geral do padroado portuguez no oriente, e de que muitas mais se abusou com injustiça a respeito de varias partes do mesmo padroado:—e é que a concordata impõe obrigações assim como assegura direitos, que no exercicio d'estes deve o padroeiro cumprir aquellas, e que pois as não cumpre os direitos cessam.
Em primeiro logar, quem viu que as não cumprisse o padroeiro? Se nem um dia, se nem uma hora lhe foi dado exercer na China a jurisdicção que a concordata lhe deixou, onde se encontra o testemunho de haver faltado aos deveres a que se obrigou por ella?
Encontra-se—dir-me-hiam os ecos da associação—na manifesta incapacidade de os cumprir, porque não admittindo em seus estados ordens religiosas, não póde provêr missões.
Para tal resposta ser justa fôra mister que ao tempo de celebrar-se a concordata houvesse em Portugal ordens religiosas, ou que por esse tratado nos obrigassemos a admittil-as para missionar.
Mas não; a concordata foi assignada em fevereiro de 1857 e ratificada em fevereiro de 1860, e a unica obrigação, dever ou condição que, relativamente ao bispado de Macau, nos impõe é (queira v. ex.ª reparar) que se procure pelo real padroeiro augmentar o numero de habeis e idoneos missionarios, que, além dos existentes (em 21 de fevereiro de 1857), se empreguem na conservação e na propagação da fé catholica n'aquellas regiões.
Ora, eu não vim a esta questão como paladino apaixonado do nosso governo, ou de qualquer dos nossos governos. Acho-me até presentemente, e ha dois annos, n'uma situação individual tão iniquamente desattendida pela nossa entidade chamada governo, que não é de suppôr que eu ande muito preoccupado pelo empenho de lhe ser agradavel nos meus raros e pobres escriptos. Mas tambem não sei fazer côro em accusações de que não tenha inteira consciencia, e no que respeita ao bispado de Macau não me parece que a indifferença tenha sido tanta que, perante a lettra da concordata, que acabo de citar, justifique o duro castigo que v. ex.ª approva. O governo chegou a entregar o seminario de S. José de Macau aos jesuitas durante dez annos, desde 1862 até ha poucos mezes, e, se isto não mostra grande respeito á lei, denota ao menos com summa evidencia a boa vontade que a Propaganda lhe nega. É verdade que em todo esse tempo os jesuitas nada fizeram a bem d'aquella porção do padroado, antes se mostraram sempre encarniçadissimos inimigos de taes direitos, mas nada prova isso contra a boa intenção que presidiu á experiencia de os admittir.
Mas dirá ainda a Propaganda: as missões não podem confiar-se a experiencias, nem a protestos de boa vontade; a concordata não tem valor ante o principio salus populi suprema lex, e a christandade de Cantão seria grandemente prejudicada e arriscada, se a deixassemos.
Para v. ex.ª avaliar este argumento, pedirei apenas que se digne lêr o capitulo vigesimo septimo dos Apontamentos d'uma viagem de Lisboa á China e da China a Lisboa pelo sr. Carlos José Caldeira. Teria muito mais que citar, se não receiasse ostentar erudição d'obras que difficilmente se encontram em Lisboa, e exporia até o muito que a observação pessoal me suggere se não existisse a deposição do dito escriptor, por certo conhecidissimo de v. ex.ª Pelo indicado capitulo—que se intitula Missões portuguezas na China, missionarios francezes, padroado real, e a sociedade da propagação da fé—verá v. ex.ª como os missionarios franceses e italianos felicitam as christandades que nos tiraram, e apreciará os beneficios que resultam para o bispado de Macau do que eu denominei e denomino obstinada lesão dos nossos direitos.
Já quero porém collocar-me contra o depoimento do sr. Carlos José Caldeira, quero admittir que seja grande o zelo dos missionarios estrangeiros no desempenho da missão do bispado de Macau.—Se a Egreja de Roma é universal e se é verdadeiro o amor que elles teem a esses christãos, por que motivo se não offerecem a obedecer, emquanto preciso seja, ao prelado portuguez que aos mesmos christãos pertence?—Porque os portuguezes desestimam as missões? Não dizem verdade, quando assim dizem, pois que para a mesma associação da propagação da fé concorre o povo portuguez annualmente com avultados donativos.—Porque a associação é incombinavel com o nosso governo? Não me parece, e ainda agora o mostrei. O governo que admittiu dez annos em Macau os jesuitas, desaffectos ao nosso pleno exercicio na diocese, não deixa porcerto d'aceitar a sujeição transitoria dos propagandistas ao mesmo exercicio.
A rasão, pois, é porque não querem, e não querem hoje assim como não quizeram desde o primeiro dia, ha muito tempo, em que entraram nas nossas missões da Asia, cheias então de missionarios nossos e providas com os nossos bispos, e começaram a guerreal-os sem treguas, tirando-lh'as uma a uma. Fugindo de caminhar no mais pequeno accôrdo comnosco, esforçavam-se unicamente em combater-nos por modo tal, que os christãos se entibiavam e mais se afastavam os gentios, vendo em anarchia a egreja que tinham antes pela mais unida. Dir-se-hia em verdade que era outra e diametralmente opposta a doutrina que vinham prégar. Com o desgosto e afastamento dos nossos missionarios e com as circumstancias politicas que mais tarde se deram, a usurpação—como sempre succede—ganhou com o tempo os fóros de justiça: e para se nos tirar o resto do bispado de Macau serve agora a queixa de sermos descuidosos, como então servia a de sermos ambiciosos.
Por ambiciosos e descuidosos nos castigou—torno a lembral-o—a concordata, que é lei ha doze annos, e pela qual renunciámos definitivamente ao padroado em todos os bispados do Japão e da China, conservando unicamente o de Macau, e este reduzido a metade. E pois que é lei, e emquanto o seja, entendo que deve cumprir-se, e que deve o padroeiro portuguez exigir para o bispado de Macau a posse dos limites que a mesma lei designou. E quando por quaesquer circumstancias se estipulem novos tratados, cumpram-se esses, de modo que se não tolerem usurpações á face d'elles, e que nos não deixemos indifferentemente punir pela falta de cumprimento de deveres que nem sequer fomos admittidos a praticar. É isto o que me parece justo e digno.
Vou concluir, sr. redactor. Muito mais se me offerecia a dizer, mas não quero faltar á promessa de abreviar quanto possivel esta carta. Dil-o-hei se tiver de escrever-lhe mais sobre o mesmo assumpto.
Ajunto por agora só duas palavras necessarias.Eu não me referi a Sua Santidade. Entendo e creio que a inalteravel rectidão do supremo chefe da Egreja está muito superior á obstinada lesão dos nossos direitos, de que fallei. Sei bem que esta distincção é censurada e vituperada pelos proprios auctores do facto, cuja inteira responsabilidade elles querem que seja do Papa, e por bem o saber é que mais me apresso a distinguir.—Não fallei pois do Summo Pontifice, e, quando tal fizesse para significar que o illudiam, não saberia dizer mais do que o sr. Carlos José Caldeira nas seguintes linhas do capitulo acima citado:
«A Sua Santidade cabe uma tremenda responsabilidade, e terá talvez de responder perante Deus, por todo o mal que teria evitado, se quizesse entrar no verdadeiro conhecimento do estado das christandades na Asia, e fizesse caminhar pelas vias regulares e honestas a Congregação da Propaganda Fide, que tanto se afasta dos deveres do seu instituto; porque se deixa guiar por interesses mundanos e más paixões, e trata com incrivel leviandade e desleixo os mais consequentes negocios da Egreja. É por isto que muitos lhe chamam na Asia—Congregação de destruenda fide.»
S. C., 1.º d'abril de 1872. Sou de v. ex.ª A. Marques Pereira.
VI
O collaborador não tornou até hoje, e diga-se isto sem desdouro seu, pois que, para mais segura defeza do que escrevêra sem provocação, desde logo se desobrigára de replicar.
Depois de publicada a carta que precede, indo eu não sei já com que humilde pretensão ao escriptorio do Diario de Noticias, em aprazivel e variada conversa de minutos junto d'aquella meza feracissima de cujos escriptos se alastra Portugal e seus dominios, ouvi de um dos srs. collaboradores certa informação que, dias antes, me faria redigir de modo algum tanto differente a mesma carta. O folheto acabava engraçadissimo se eu repetisse agora a informação: nada me auctorisa porem a fazel-o, ainda que o cavalheiro a não declarou segredo.
Acaba por isso triste, inutil, abstracto—á maneira de esphinge velha, perdida em areiaes do Egypto... á maneira do padroado portuguez na China.
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