Memórias para demolir
Hoje, caminhando pela cidade, quem conta a história das ruas e das casas junto à fortaleza e às Ruínas de São Paulo é o arquitecto José Maneiras. Recorda: “Fui para Portugal estudar em 1953. Quando regressei, as casas estavam construídas. As casas datam da década de 50, meados da década”, explica o arquitecto.
Os prédios
“Pertenciam ao Montepio de Macau e eu vivia no 1º esquerdo. Eram habitadas sobretudo por funcionários públicos e militares. As rendas eram baixas, variando entre as poucas centenas e as mil patacas, dependendo da data do início do aluguer. Ali viviam 24 famílias, mas na rua existiam três carros apenas”, lembra o arquitecto.
“Pertenciam ao Montepio de Macau e eu vivia no 1º esquerdo. Eram habitadas sobretudo por funcionários públicos e militares. As rendas eram baixas, variando entre as poucas centenas e as mil patacas, dependendo da data do início do aluguer. Ali viviam 24 famílias, mas na rua existiam três carros apenas”, lembra o arquitecto.
Originalmente eram quatro prédios o 16, 18, 20 e o 22. Os dois últimos foram já destruídos, por se julgar que aí existem vestígios arqueológicos da Ala Norte e Nascente do antigo Colégio de São Paulo. Apesar de existirem métodos que permitem a prospecção arqueológica que não impliquem a demolição dos edifícios, a opção do governo local recaiu na demolição dos edifícios. A decisão tomada conjuntamente pela Direcção dos Serviços de Obras Públicas e Transportes, pelo Instituto Cultural e sob parecer de técnicos de Singapura, foi comunicada aos cidadãos poucos dias antes da saída de Heidi Ho da presidência do Instituto Cultural de Macau.
Os prédios correspondem a uma tipologia esquerdo direito, mas com as traseiras em galeria. São os únicos prédios em Macau que combinam estas duas tipologias. “Entre cada dois prédios existe um acesso. A cada uma das casas se podia aceder pela porta principal ou pela de serviço situada nas traseiras. A casa tinha uma sala com varanda, dois quartos, o quarto da empregada, cozinha e casa de banho. É uma arquitectura rudimentar de construção sólida, betão armado e telha. Nas traseiras das casas existiam varandas de um extremo ao outro do edifício, e uma escada que as unia”.
Ainda segundo o arquitecto José Maneiras, a linguagem das casas remete para o estilo da habitação social que se fazia em Portugal durante o Estado Novo, de que é exemplo o bairro social de Alvalade em Lisboa. Contudo, podem apontar-se algumas diferenças relativamente aos modelos de construção correntes em Portugal na mesma época. A primeira tem a ver com os índices de construção: se em Portugal se construía o tipo R/Chão mais três ou quatro pisos, porque este era o limite máximo para casas sem elevador, em Macau, talvez por razões económicas ou para minimizar o impacto da construção sobre a fortaleza e as Ruínas de São Paulo, optava-se pelo R/Chão mais dois pisos, explica o arquitecto. A segunda diferença diz respeito aos materiais de revestimento: em Macau recorria-se sobretudo ao Shanghai plaster, porque havia uma certa dificuldade em encontrar tintas e os edifícios coloridos usavam a cal com pigmento de cor, mas de 5 em 5 anos, os proprietários eram obrigados por lei, a caiar novamente os edifícios, o que se tornava bastante dispendioso. “Julgo que a obra foi assinada pelo Engenheiro Humberto Rodrigues, porque naquela época não existiam arquitectos em Macau”, acrescenta. Humberto Rodrigues não procurou a obra-prima, mas a obra relacional. Bem integrados na paisagem, os prédios da Rua D. Belchior Carneiro não agridem a cidade, não obstruem as vistas nem da Fortaleza, nem das Ruínas. E à data da construção tinham vistas de Rio e assim se ligavam à água.
A vida
Podemos ainda hoje reconstituir a vida dos prédios da rua D. Belchior Carneiro. Nas campainhas das portas e nas caixas do correio inscrevem-se os nomes de quem os habitou. Ali viviam os Maneiras, os Basílios, os Variz, os Pereiras, entre outras famílias. Os prédios eram habitados não apenas pela família nuclear, mas pela família alargada. Eram os pais, os tios e os avós que partilhavam os espaços. Sandi Basílio Manhão viveu no Nº18, 1º andar, até aos seus 13 anos: “Adorei viver aí, tenho óptimas memórias dessa altura. Lembro-me que quase não passavam carros naquela rua e vivíamos com as portas abertas. Estávamos sempre em casa uns dos outros. Para mim, era a casa perfeita. Eu e a minha irmã brincávamos muito naqueles espaços, principalmente nas escadas. Fazíamos imensas partidas e tropelias. Brincávamos também no pátio, trepávamos as grades, explorávamos a mata que ia dar à fortaleza do Monte. Não haviam muitos brinquedos e a nossa imaginação era muito fértil. Qualquer bocado de madeira, pedra, bicho encontrado no pátio era uma tarde de aventura. Apanhávamos raízes na mata e íamos para a rua vender aos transeuntes como ginseng. E ali vivíamos numa espécie de comunidade”. Quando voltou a Macau, 9 anos depois de ter deixado a cidade, voltou aos prédios com os seus filhos, para que eles pudessem também experimentar brincar naqueles pátios.
Jorge Maneiras, filho do arquitecto José Maneiras, também se recorda desses tempos: “Os meus pais foram viver para o prédio da frente, para ficarmos perto dos meus avós. Quando eu regressava da escola, e depois de dormir a sesta no sofá verde da casa da minha avó, ia brincar para os pátios e para a rua. Eu e o meu irmão saímos de bicicleta e andávamos por todo o lado, voltávamos a casa muito sujos e por vezes magoados”. “Era o terror das avós” acrescenta José Maneiras. “Havia uma brincadeira que a criançada fazia na rampa de São Paulo. Era uma espécie de bodyboard sobre a pedra. Poliam uma tábua de madeira e depois desciam a rampa sentados em cima da tábua.”
Jorge Maneiras, filho do arquitecto José Maneiras, também se recorda desses tempos: “Os meus pais foram viver para o prédio da frente, para ficarmos perto dos meus avós. Quando eu regressava da escola, e depois de dormir a sesta no sofá verde da casa da minha avó, ia brincar para os pátios e para a rua. Eu e o meu irmão saímos de bicicleta e andávamos por todo o lado, voltávamos a casa muito sujos e por vezes magoados”. “Era o terror das avós” acrescenta José Maneiras. “Havia uma brincadeira que a criançada fazia na rampa de São Paulo. Era uma espécie de bodyboard sobre a pedra. Poliam uma tábua de madeira e depois desciam a rampa sentados em cima da tábua.”
O Contexto
A actual Rua de D. Belchior Carneiro chamava se Rua da Horta da Companhia. Foi no ano de 1969, por ocasião do 4º Aniversário da Santa Casa da Misericórdia, que se lhe mudou o nome para Rua D. Belchior Carneiro, o nome do primeiro bispo de Macau. Em Chinês, o nome da rua não sofreu alterações, ainda se chamando hoje Kou Im Kai, isto é, Rua da Horta Alta. Na zona de São Paulo, na década de 50, os arruamentos não eram como hoje os conhecemos, lembra o arquitecto José Maneiras. Atrás das Ruínas existia um terreiro em terra batida e uma horta. Havia a rua que ladeia as Ruínas; entre a Estrada do Repouso e a Rua da Entena havia um caminho em terra batida e o resto era mata. Desde a Fortaleza do Monte aos Prédios da Rua D. Belchior Carneiro existiam socalcos de terra batida toscamente rematados, preenchidos com farta vegetação. Em frente aos prédios localizava- se o Pátio de Espinho, que se desenvolvia do lado oposto da estrada. Ali se vivia, como ainda hoje, numa espécie de comunidade, entre casas e pequenos quintais, numa aldeia dentro da cidade. Para a direita do Pátio de Espinho, e até à Travessa Tomás Vieira estendia-se um conjunto de pequenas casas chinesas, de lotes muito profundos, com pequenos jardins nas traseiras, varanda, janelas de vidros coloridos, revestidas a Shanghai plaster.
Rua D. Belchior Carneiro na rodagem de um filme com Bruce Lee
No alinhamento dos prédios situava-se a casa da família Souza, comerciante dedicado a negócios de importação e exportação. Era uma grande casa, cujos limites correspondiam por um lado, às casas da Rua D. Belchior Carneiro, e por outro à rua dos artilheiros. A casa terminava no contraforte da Fortaleza do Monte. Se caminharmos pela rua dos artilheiros ainda hoje podemos ver uma pequena moradia verde da década de 70, segundo o arquitecto José Maneiras ao estilo das que ocupavam toda aquela zona. Eram casas pequenas de um ou dois pisos, na sua maioria unifamiliares. Caminhámos até à Estrada do Repouso que liga o bairro ao Porto Interior e consequentemente à Calçada dos Artilheiros – o caminho mais antigo que ali existe.
É esta calçada que liga o bairro à fortaleza por um lado, ao Tap Seac e à Rua do Campo por outro. “A construção dos prédios da Rua D. Belchior Carneiro constituiu um pólo de desenvolvimento do bairro. Na sequência da sua construção foram abertas ruas que ainda hoje existem, o espaço foi organizado. A construção destes prédios abriu a rua que os turistas hoje percorrem e que permite o acesso às Ruínas e à Fortaleza”, remata o arquitecto.
O futuro
José Maneiras defende “uma progressiva pedonalização da zona. A ligação de São Lázaro, à Estrada do Repouso, à Calçada dos Artilheiros, à Rua D. Belchior Carneiro, às Ruínas de São Paulo e à Fortaleza do Monte e ao Leal Senado de Macau. As grandes zonas turísticas, na maior parte dos países, um pouco por todo o mundo, tendem a ser pedonalizadas. Só assim será possível atenuar a agressão que o trânsito provoca sobre a cidade e seus habitantes, sejam autocarros ou simples automóveis e motorizadas”. Ainda segundo o arquitecto José Maneiras: “A criação de um parque de estacionamento nesta zona vai permitir o estacionamento de entre 15 a 17 autocarros, agravando substancialmente o congestionamento de tráfego, a poluição ambiental e sonora que já se verifica na zona. Sacrificar estas casas para aqui se construir um parque de estacionamento, parece-me uma política desadequada. Até porque os moradores da zona estão cansados dos autocarros, da poluição e do barulho”.
Carlos Marreiros tem igualmente defendido publicamente a pedonalização progressiva do centro histórico, nomeadamente do Tap Seac às Ruínas de São Paulo. No passado dia 13 de Março, o arquitecto Vizeu Pinheiro questionou o porquê de não se aproveitar melhor o parque de estacionamento construído no Tap Seac e considerou não ser essa a melhor opção porque os autocarros significam mais barulho, mais poluição e menos espaço útil para os turistas, como jardins. Na mesma data, um morador afirmou: “Moro na Rua D. Belchior Carneiro e já vejo muitos autocarros estacionados por lá. Sinto-me sufocado!” Um outro residente declarou: “Tenho 65 anos de idade e levo dez minutos para chegar do Tap Seac às Ruínas de São Paulo”.
Reutilização dos Prédios e Pedonalização do Centro Histórico
A reutilização dos restantes prédios da Rua de D. Belchior Carneiro não oferece particular dificuldade: poderão ser transformados em ateliers para artistas e oficinas de indústrias criativas. Mantendo a tipologia esquerdo direito, as galerias traseiras, e um certo espírito comunitário que favorece a criatividade e interdisciplinaridade artística. Os pátios prestam-se à realização de trabalhos em grande escala e à realização de pequenos workshops, colocando a criação contemporânea ao Centro Histórico de Macau. Os ateliers e oficinas seriam alugados pelo governo, por quantias módicas, e os criativos que ali se instalassem teriam a obrigação de apresentar o seu trabalho aos turistas, mediante marcação prévia, e dentro de certos limites, naturalmente.
Entre o Tap Seac, onde estão já instaladas associações dedicadas às indústrias criativas e algumas lojas de criativos locais, e as Ruínas de São Paulo, existiria mais um ponto de atracção turística, os prédios da Rua D. Belchior Carneiro. O passeio entre o Tap Seac e o Leal Senado de Macau, passando pelas Ruínas de São Paulo seria todo feito a pé, sem o barulho e sem o fumo dos autocarros, para satisfação de turistas e cidadãos.
Para pensar
Alguns aspectos merecem reflexão. Primeiro, por que razão não foi explicado, claramente e em detalhe, a todos os cidadãos que tipo de achados arqueológicos se prevê encontrar naquele local?
Segundo, de acordo com as explicações dos painéis do Museu de Macau, a ala Norte e a ala Nascente do antigo Colégio de São Paulo coincidem apenas com os prédios no. 20 e 22, que já foram demolidos. Por que razão se prevê então a demolição dos restantes? Terceiro, se os achados arqueológicos que se prevêem encontrar naquela zona são de tão grande valor que justificam a simples demolição dos prédios, apesar de existirem métodos menos agressivos de prospecção arqueológica, como é que se pode imaginar a utilização daquele espaço como parque de estacionamento de autocarros turísticos? Finalmente, por que razão insiste o governo da RAEM em tomar decisões que vão contra os desejos, as necessidades e a saúde dos cidadãos, contra as opiniões de arquitectos e urbanistas, e contra as tendências internacionais de pedonalização dos centros históricos?
Artigo da autoria de Margarida Saraiva - Mestre em Planeamento e Politicas Culturais Europeias – publicado no jornal Hoje Macau a 27-04-2010
Fotografias de Keith Fong (não são as que ilustraram o artigo no jornal)
Belas fotos! Sempre!
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