As suas histórias individuais são mais do que só isso: são pedaços da história de Macau. São portugueses, mas há várias décadas que trocaram o luso solo por uma terra que lhes abriu os braços e que, na maioria dos casos, não desejam abandonar.
Aqui vieram parar pelos mais diferentes motivos: por amor ou casamento, para cumprir o serviço militar, ou então apenas à procura de destino diferente daquele que Portugal lhes reservava.Macau não era a cidade que é hoje. Era uma pequena vila onde todos se conheciam, onde se andava de riquexó, onde se dormia ao som da ventoinha, quando se tinha o privilégio de ter uma, onde ir à praia de Cheoc Wan era uma aventura para todo um fim de semana. A vida era pacata, todos os portugueses sabiam tudo de todos e a sociedade era altamente estratificada e moralista. Quase todos aqueles com que falámos pensam que a vida em Macau melhorou bastante e não são saudosistas em relação ao passado mas admitem que quando a bandeira das cinco quinas descer vão sentir um nó no peito. Alguns como Alberto Alecrim, preferem não assistir ao evento. «Já viste chau min temperado com alecrim?», pergunta, com o humor que lhe é bem conhecido. «Não tenho coração para ver descer a bandeira», diz enquanto sorve um golo de whisky pela chávena do café. Partiu recentemente para Portugal mas não sem a ameaça de cá voltar, tanto mais que a mulher com quem vive há anos aqui permanecerá. Mas terá de evitar o momento em que os chineses que Macau, este secular porto de abrigo, acolheu há uma geração ou duas, de pé descalço, venham gritar «abaixo a humilhação colonialista», um dos slogans já estabelecidos pela Agência Nova China. «São esses, não os chineses de Macau, que agora irão dar vivas à China», pensa o jornalista e animador de rádio que chegou a Macau em 1965. Trabalhou na Emissora nacional colaborou nos jornais e fez parte dos quadros do Gabinete de Comunicação Social até se reformar em 1995. Alecrim fez o serviço militar em Goa onde chegou a estar preso seis meses, após a ocupação indiana. De volta a Portugal pediu a colocação na radio emissora de Angola mas um conhecimento arranjou-lhe emprego na emissora de Macau, «a mais antiga de todas».«Sempre tinha ouvido dizer que Macau era o paraíso», diz Alecrim. Quando chegou não ficou decepcionado se bem que o paraíso já não fosse o que era: já não existiam as pei pa chan e as casas de ópio na Rua da Felicidade nem o Hotel Central, marcos da vida mundana de Macau. Mas a Horta e Costa era ainda uma zona de vivendas, onde as pessoas iam passar férias. Foi ali que foi morar a princípio mas depois mudou-se para a Calçada das Verdades onde pagava 250 patacas de renda. «muito dinheiro, naquela altura em que ganhava 1.134 patacas por mês!»Luis Gonzaga Gomes, «um homem introvertido e autodidata», apresentou-lhe a cidade, em longos passeios.A altura mais conturbada que viveu em Macau foi o «1,2,3» a guerra do chau min como gosta de lhe chamar. Durante cerca de dois meses, no final de 1966, a Revolução Cultural entrou pelas Portas do Cerco adentro. Os portugueses eram expulsos dos autocarros, as mercearias recusavam-se a fornecer-lhes alimentos, os policias eram despidos e agredidos e as manifestações de jovens de livro vermelho na mão sucediam-se. Alecrim, mesmo assim aventurava-se na Praça do Leal Senado, onde viu derrubarem a estátua do coronel Mesquita, para ir até ao edifício dos correios onde ficava a emissora. «Os meus amigos chineses iam-me buscar comida e o Seng Cheong fornecia os portugueses à socapa», conta. O que pensa que salvou a situação foi o facto de os comunistas serem muito organizados. «Se assim não fosse penso que teriam matado toda a gente». A atitude do governador Nobre de Carvalho, chegado em plena crise, foi também importante. «Portugal disse para entregarem isto mas ele, que era um diplomata, resolveu a situação».O 25 de Abril foi outra fase interessante que Alecrim viveu em Macau. Soube do golpe pelo cantor Rui de Mascarenhas, que nessa altura cantava no restaurante Portas do Sol. Depois recebeu os telexes da France Press e da Reuters, que, antes de divulgar, entregou ao então major Lages Ribeiro que controlava a informação oficial. Surgiram então uma série de associações cívicas. Alecrim simpatizava com a ADIM de Carlos Assumpção. «Ninguém é imprescindível mas ele era».Com o seu humor típico, Alecrim não pára de contar histórias de outros tempos e de fazer considerações sobre o papel de governadores e de administradores. «A China nunca nos deu nada, só imigrantes de pé descalço, mas depois de se acordar a transferência, os chineses começaram finalmente a investir», diz sobre um país que acha que sem um regime comunista dificilmente poderia existir. Quanto a Portugal, «nunca mandou um avo para aqui, foi sempre Macau que deu para as outras colónias».Enquanto sorve mais um golo de whisky Alecrim faz planos relativamente aos móveis e outros pertences, que se prepara para embalar para Lisboa, ao fim de uma vida de 35 anos em Macau. Aqui lhe morreu a esposa e um filho, lhe nasceu uma das suas duas filhas e três netos. Em Portugal estará mais perto deles. Mas como a sua companheira fica em Macau, promete voltar brevemente. Talvez o chau min ainda venha a ter alecrim...
Aqui vieram parar pelos mais diferentes motivos: por amor ou casamento, para cumprir o serviço militar, ou então apenas à procura de destino diferente daquele que Portugal lhes reservava.Macau não era a cidade que é hoje. Era uma pequena vila onde todos se conheciam, onde se andava de riquexó, onde se dormia ao som da ventoinha, quando se tinha o privilégio de ter uma, onde ir à praia de Cheoc Wan era uma aventura para todo um fim de semana. A vida era pacata, todos os portugueses sabiam tudo de todos e a sociedade era altamente estratificada e moralista. Quase todos aqueles com que falámos pensam que a vida em Macau melhorou bastante e não são saudosistas em relação ao passado mas admitem que quando a bandeira das cinco quinas descer vão sentir um nó no peito. Alguns como Alberto Alecrim, preferem não assistir ao evento. «Já viste chau min temperado com alecrim?», pergunta, com o humor que lhe é bem conhecido. «Não tenho coração para ver descer a bandeira», diz enquanto sorve um golo de whisky pela chávena do café. Partiu recentemente para Portugal mas não sem a ameaça de cá voltar, tanto mais que a mulher com quem vive há anos aqui permanecerá. Mas terá de evitar o momento em que os chineses que Macau, este secular porto de abrigo, acolheu há uma geração ou duas, de pé descalço, venham gritar «abaixo a humilhação colonialista», um dos slogans já estabelecidos pela Agência Nova China. «São esses, não os chineses de Macau, que agora irão dar vivas à China», pensa o jornalista e animador de rádio que chegou a Macau em 1965. Trabalhou na Emissora nacional colaborou nos jornais e fez parte dos quadros do Gabinete de Comunicação Social até se reformar em 1995. Alecrim fez o serviço militar em Goa onde chegou a estar preso seis meses, após a ocupação indiana. De volta a Portugal pediu a colocação na radio emissora de Angola mas um conhecimento arranjou-lhe emprego na emissora de Macau, «a mais antiga de todas».«Sempre tinha ouvido dizer que Macau era o paraíso», diz Alecrim. Quando chegou não ficou decepcionado se bem que o paraíso já não fosse o que era: já não existiam as pei pa chan e as casas de ópio na Rua da Felicidade nem o Hotel Central, marcos da vida mundana de Macau. Mas a Horta e Costa era ainda uma zona de vivendas, onde as pessoas iam passar férias. Foi ali que foi morar a princípio mas depois mudou-se para a Calçada das Verdades onde pagava 250 patacas de renda. «muito dinheiro, naquela altura em que ganhava 1.134 patacas por mês!»Luis Gonzaga Gomes, «um homem introvertido e autodidata», apresentou-lhe a cidade, em longos passeios.A altura mais conturbada que viveu em Macau foi o «1,2,3» a guerra do chau min como gosta de lhe chamar. Durante cerca de dois meses, no final de 1966, a Revolução Cultural entrou pelas Portas do Cerco adentro. Os portugueses eram expulsos dos autocarros, as mercearias recusavam-se a fornecer-lhes alimentos, os policias eram despidos e agredidos e as manifestações de jovens de livro vermelho na mão sucediam-se. Alecrim, mesmo assim aventurava-se na Praça do Leal Senado, onde viu derrubarem a estátua do coronel Mesquita, para ir até ao edifício dos correios onde ficava a emissora. «Os meus amigos chineses iam-me buscar comida e o Seng Cheong fornecia os portugueses à socapa», conta. O que pensa que salvou a situação foi o facto de os comunistas serem muito organizados. «Se assim não fosse penso que teriam matado toda a gente». A atitude do governador Nobre de Carvalho, chegado em plena crise, foi também importante. «Portugal disse para entregarem isto mas ele, que era um diplomata, resolveu a situação».O 25 de Abril foi outra fase interessante que Alecrim viveu em Macau. Soube do golpe pelo cantor Rui de Mascarenhas, que nessa altura cantava no restaurante Portas do Sol. Depois recebeu os telexes da France Press e da Reuters, que, antes de divulgar, entregou ao então major Lages Ribeiro que controlava a informação oficial. Surgiram então uma série de associações cívicas. Alecrim simpatizava com a ADIM de Carlos Assumpção. «Ninguém é imprescindível mas ele era».Com o seu humor típico, Alecrim não pára de contar histórias de outros tempos e de fazer considerações sobre o papel de governadores e de administradores. «A China nunca nos deu nada, só imigrantes de pé descalço, mas depois de se acordar a transferência, os chineses começaram finalmente a investir», diz sobre um país que acha que sem um regime comunista dificilmente poderia existir. Quanto a Portugal, «nunca mandou um avo para aqui, foi sempre Macau que deu para as outras colónias».Enquanto sorve mais um golo de whisky Alecrim faz planos relativamente aos móveis e outros pertences, que se prepara para embalar para Lisboa, ao fim de uma vida de 35 anos em Macau. Aqui lhe morreu a esposa e um filho, lhe nasceu uma das suas duas filhas e três netos. Em Portugal estará mais perto deles. Mas como a sua companheira fica em Macau, promete voltar brevemente. Talvez o chau min ainda venha a ter alecrim...
Memórias e dominó
No bar da Obra Social da Polícia de Segurança Pública, grupos de idosos jogam ora dominó, ora majong, conforme a cultura. Alguns bebem uma cervejinha ou um chá, conforme o estado de saúde, e conversam. Tratam-se pelas alcunhas que herdaram do serviço militar que os trouxe a Macau antes de ingressarem na polícia. Deixar Macau não parece estar nos planos da maioria. Alguns andam entre Portugal e Macau conforme a estação do ano. Quando lá é Inverno vêm para aqui, onde faz menos frio, mas no Verão refugiam-se da humidade no clima mais temperado do país de onde são naturais. Quase todos concordam que se Portugal é bonito e a comida muito melhor, também é verdade que aqui se gasta menos dinheiro, a vida é mais calma e tudo fica mais perto.A transferência não os assusta, é só mais uma etapa na vida de quem já viu muitas mudanças em Macau.«Eu cá faço vida de turista ando entre cá e lá», afirma José Manuel Duarte também conhecido por «Velhinho». Chegou a Macau em 1962. «Quando cá cheguei, a minha vontade era ir-me embora, isto era só barracas e hortas», diz. Mas não foi. Casou-se e teve filhos, que o ligaram para sempre à terra que a princípio tanto o desiludiu.Adriano Pinto não só casou, como o fez três vezes desde o ano em que chegou, 1949. «E ainda estou para as curvas», ironiza antes de perguntar se conheço o seu filho, o Miro que é cantor. Daniel Pereira que chegou a Macau em 1957 tem quatro filhos e se bem que vá a Portugal todos os anos prefere viver em Macau. «Que faria lá? Ia-me sentar num banco de jardim? Para isso sento-me num banco de jardim aqui», diz, referindo os impostos que em Portugal se pagam sobre as pensões. Daniel Pereira lembra tempos em que em Macau havia menos crimes e mais respeito pela lei e lamenta a mudança dos costumes. «Antigamente se fossemos apanhados a fumar levávamos um grande castigo. Hoje até telefone portátil levam para as rondas...». O guarda reformado não lamenta ter cá feito a sua vida. Se tivesse voltado após a tropa esperava-o a vida dura do campo na zona de Alcácer do Sal onde andava à jorna a 14 escudos por dia.Era também esse o destino do «Espanhol», Bernardino Azevedo, se tivesse regressado. «Esperava-me a enxada, mais nada», admite o polícia que ganhou a alcunha na Guerra Civil de Espanha. Chegou a Macau há 57 anos e foi aqui que aprendeu a ler.
O polícia jardineiro
Origens semelhantes tem o «General», que apesar dos seus 76 anos, 54 em Macau, se conserva activo. Francisco Azevedo toma conta dos deficientes mentais que se encontram no Posto da PSP junto ao canídromo, trata dos equipamentos dos grupos desportivos da polícia e dos jardins de três esquadras. «Dantes também tinha aqui uma horta», observa, apontando para as traseiras do belo edifício do Posto nº2. «Cheguei a oferecer mais de 100 couves portuguesas por alturas do Natal». O «Jardineiro» seria uma alcunha mais bem achada para este policia reformado, mas o bigode retorcido e bem tratado valeu-lhe o cognome militar.Como meio de transporte não prescinde do seu motociclo. É nele que à frente do pelotão, envergando o colete nº1, lidera a maratona de Macau. O «General» fez o serviço militar durante a II Guerra Mundial. Em Junho de 1946 o seu batalhão foi destacado para Macau. Nessa altura ia-se facilmente à China, buscar materiais e até passear. «Em 1947 foi enviada uma delegação militar a Cantão e em 1948 a filha de Chiang Kai Chek veio de visita a Macau, num barco de guerra», relembra o então soldado raso. Porém em 1949, após os comunistas assumirem o poder, fecharam-se as Portas do Cerco. Nessa altura a única rua alcatroada era a Av. Almeida Ribeiro e a Areia Preta era um porto de abrigo. «Só havia pequenos negócios, de peixe salgado, panchões, ou fósforos, algumas lojas que vendiam de tudo e casas de chá», recorda. Transportes, só as carreiras para a China e os riquexós. «Entrei uma vez num mas ao fim de 200 metros saí. Tive pena do homem, a puxar descalço, arreado como um animal», conta. Nunca mais andou de riquexó.Os portugueses eram quase todos militares e os macaenses empregados da administração pública. Os divertimentos eram poucos, segundo o guarda reformado. «No Hotel Central e no Hotel Xavier havia jogo e dança mas só lá entravam os oficiais.»«Um soldado ganhava 30 patacas e um guarda 200», especifica. Quando entrou para a polícia em 1950 começou por receber 245 patacas e fardamento. «Dava para viver mal». Mesmo assim, nesse ano, casou-se com uma senhora chinesa. «A princípio mal conseguíamos falar mas com o tempo ela aprendeu a língua e a cozinha portuguesas». Também ele aprendeu a falar cantonense, em parte nos cursos que eram obrigatórios para os guardas portugueses. Hoje usa a língua com destreza e rapidez, como se fosse um falante nato.Sempre ligado ao desporto, era a Francisco Azevedo que competia cuidar do campo de futebol por trás do Posto nº2, o que fazia ajudado por um grupo de presos, «pakfanistas», deficientes e outros indigentes que estavam a cargo da PSP antes do IASM assumir essa responsabilidade. «Sempre lidei bem com eles e os outros polícias não se importavam com o que lhes acontecesse», justifica. Hoje, trata ainda de um grupo de oito indigentes, que comem e dormem ao lado do jardim da esquadra.Para além do «1,2,3» um dos momentos mais marcantes da história de Macau foi, segundo o «General», o ataque dos chineses na fronteira, em 1952. Quando um soldado de Macau entrou em terra de ninguém para fechar as portas, ao anoitecer, foi atingido numa perna por um tiro do lado chinês. Esvaiu-se em sangue antes de ser socorrido. O governo pediu voluntários para fechar a porta e quando estes o foram fazer os chineses lançaram granadas. «Nessa altura havia cerca de cinco mil soldados em Macau», diz o polícia reformado. A resposta à provocação não tardou «Morreu muita gente do lado de lá sobretudo, civis que viviam em barracas junto à fronteira», relata o «General» que esteve «agarrado» a uma metralhadora no terraço do Posto nº2. Mais tarde houve conversações e Macau pediu uma indemnização para as famílias dos falecidos. «Já nessa altura se falava em entregar Macau, mas os chineses não quiseram», conta.A partida dos portugueses não o assusta. «Sempre tive mais amigos chineses que portugueses». Apesar de não ter filhos, a esposa tem cá a família, nomeadamente a mãe que vive em Cantão e tem mais de cem anos de idade. «Penso que não haverá grandes desacatos. Talvez algumas rixas provocadas pelos pés descalços levados pela propaganda». Mas, até ver, vai ficando, se bem que não prescinda de umas visitas a Santo Tirso onde toda a sua família se dedica à agricultura e horticultura.
Silveira Machado: um Macau divertido
Aos 81 anos Silveira Machado, professor, escritor e poeta conta estórias da história de Macau como ninguém. Sempre charmoso, sobretudo para as senhoras, não é difícil puxar-lhe um conto ou mesmo um poema sobre esta terra que o acolheu há 66 anos.Apesar de aqui ter passado a II Guerra Mundial acha que os piores momentos que aqui viveu foram os do «1,2,3». «Nessa altura já tinha quatro filhos enquanto durante a guerra era solteiro», explica. O pior eram os boatos como aquele sobre o envenenamento do reservatório de água. «Os altifalantes transmitiam informações como por exemplo que os portugueses estavam a roubar o arroz a Macau para enviar para Angola», conta o professor reformado. No entanto, admite que havia portugueses que abusavam do poder, «sobretudo os macaenses e os polícias».Mas, com o seu espírito optimista Silveira Machado arranja até maneira de se lembrar de histórias engraçadas do «1,2,3». Todos os portugueses foram mobilizados e a ele coube-lhe guardar o Banco Nacional Ultramarino. «A maioria nem sabia pegar numa arma», ri-se. Antes da noitada iam buscar um lanchinho e algumas garrafas de vinho a casa e a vigília acabava em paródia. «Dormíamos em cima das secretárias e revezávamo-nos para dormir no gabinete do director do BNU que era o único que tinha alcatifa», recorda com um sorriso.Quanto ao período da grande guerra, acabou por ser «divertido». Era jovem e, graças ao seu pendor noctívago, todos os dias ia dançar e namorar. Mas não se esqueceu do outra face desses tempos. «É aquele lado que nos custa contar... mas lembro-me de ver uma mulher a preparar um rato para comer... outros iam aos excrementos dos animais procurar grãos...», relata com relutância. Porém, nega que se comessem bebés, como já se disse. «Carne humana sim, das pessoas que morriam, mas não se assassinava para comer», diz peremptório. Foi nessa altura que os funcionários públicos começaram a usar camisa larga em vez de fato e gravata e sandálias em vez de sapatos. Não havia nem materiais nem dinheiro para mais.«Nesses tempos a população chinesa de Macau era muito laboriosa; hoje procura fazer dinheiro por artes mágicas», observa, sobre a mudança de costumes trazida pelas vagas de imigrantes. Silveira Machado sempre esteve ligado à cultura e às artes. Fez parte do grupo cénico da Acção Católica dirigido pelo actor profissional José Soveral. E foi um dos fundadores do Clarim. «Os jornais antigamente eram muito diferentes. Havia várias secções, havia críticas de cinema e teatro, contos e poesia», conta. O ambiente era também diferente, havia mais convívio e muitas festas e bailes. Mas nem todos eram bem vindos em qualquer festa. «O Clube Militar era para a elite, o Clube Macau para os tenentes e primeiros oficiais e o Clube 1º de Junho para os sargentos», explica. «Boas festas que em todos eles se faziam», lembra o homem cujo segredo de longevidade é ter privado muito com gente jovem, «para além de nunca ter tido inveja ou sido muito ambicioso».Silveira Machado chegou a Macau em 1933, por mar. Recorda todo o itinerário, o nome dos navios e os rios por onde passou. «O barco de Hong Kong para Macau demorava mais de três horas e parecia uma feira, com vendedores e jogadores». Tinha então 15 anos. O regime severo do Seminário de São José para onde veio estudar não lhe dava grande liberdade mas aos fins de semana ia até à ilha da Lapa ou à China, fazer piqueniques. Tinha 20 anos quando um colega lhe roubou um poema e o distribuiu pela escola. Um poema de amor, claro...«O prefeito disse-me que quem gostava de mulheres não podia ser padre e expulsou-me». Esperava-o o serviço militar. Mas após 40 dias no hospital acabou por ser novamente dispensado. Iniciou-se então na função pública e noutras actividades, como a escrita e o teatro, mais apropriadas a um homem de espírito livre.Ao longo destes anos viu passar por Macau muitos governadores e dirigentes. Guarda boas memórias de Pedro José Lobo, mas pensa que o problema das administrações foi sempre acabarem com o que as anteriores tinham começado, em vez de lhe dar continuação. O governador Carlos Melancia não foi muito mau. «Foi ele que de facto começou o que agora se vê construido», diz.Partir, não está nos seus planos, apesar de ter as filhas em Portugal. «Comprei um andar em Algés, onde caí de paraquedas». É açoriano e tem poucos amigos em Lisboa. «A mentalidade de quem nunca saiu de Portugal é muito diferente», explica Silveira Machado.
Macau, por amor
Nem todos os portugueses que se acolheram a Macau há várias décadas vieram por motivos de trabalho, tropa ou estudos religiosos. Alguns vieram por amor. É caso de Linete Mendes que chegou há 30 anos. Conheceu o marido, João Mendes, em casa da família chinesa deste que vivia na Amadora, onde ela trabalhava num colégio. «Primeiro vim cá ver se gostava», diz. Tal como se tinha apaixonado à primeira vista pelo macaense, apaixonou-se também pela terra deste. «Foram muitas horas de avião até Hong Kong e depois quase quatro de barco», conta. A princípio estranhou alguns dos hábitos chineses, «como os bacios nos restaurantes que afinal serviam apenas para deitar o chá». Mas gostou logo da comida chinesa e da cidade pacata. «À noite íamos de carro passear e comer chau min, na rua». Divertimentos simples de tempos menos complicados. Ao fim de três meses de namoro, casou-se.Tem duas filhas Daniela e Xana que foram ambas miss Macau. Quando eram pequenas não ia muito a festas, mas, aos fins de semana, Coloane era um dos destinos preferidos da família, onde pernoitavam, nas casas de campo de amigos. Ou então levava as miúdas ao jardim, ou ia tomar café e conversar com as amigas para o Hotel Estoril.Aprendeu a cozinhar receitas macaenses e tornou-se perita nalguns pratos, como minci, tacho ou galinha à Macau. Quanto à língua, só fala «chinês de rua» mas tem pena de não a ter aprofundado. «Agora que muitas das minhas amigas macaenses e portuguesas se foram embora podia ter uma relação mais estreita com algumas senhoras chinesas...», lamenta.Quanto a partir, nem pensar. «Gosto muito de estar aqui, gosto do ambiente e dos chineses. No fundo posso dizer que vivi a maior parte da minha vida aqui», reflecte.«Da última vez que fui a Portugal passar férias já estava farta e desejosa de voltar», confessa. Para isso contribui o facto de tudo ser tão distante e dispendioso em Lisboa e também o facto de as filhas e o neto estarem em Macau.E a transição? «Sinto-me um pouco triste por Macau não ser mais nosso, mas não penso que a vida mude muito; vai tudo correr bem», diz, optimista. Apesar da nostalgia, nos dias 19 e 20 de Dezembro vai passear, ver os festejos.«Os chineses sempre me trataram muito bem. Não vejo motivo para que não continuem a tratar os portugueses de uma boa maneira», afirma.Histórias de vidas passadas numa terra acolhedora e generosa.
* Artigo da autoria da jornalista Clara Gomes publicado na Revista Macau em Dezembro de 1999
Excelente artigo!
ResponderEliminar