1937 em Macau - Dança do Leão: em cantonense Mou Si; em mandarim Wu Shi
O Bairro de San Kiu estava em festa.
Pelas ruas, a população agitava-se. - Chi-si lei lá! Chi-si lei lá!
De longe chegava até nós a percussão do ritmo dos sete estrelas e o cheiro acre da pólvora de panchões a arder. Corria uma brisa ligeira de Setembro. Havia festa num dos templos locais em homenagem do seu orago.
E não poderia haver festa sem a evolução do leão acordado, acordado, antes, por fortes pinceladas de cinábrio nos seus grandes olhos de cartão, papel e seda sobre armação de bambu. Era o leão de Chong Fei com a sua capa negra debruada a branco que reflectia o Sol em pequenas faíscas dos múltiplos espelhos que a decoravam, que se exibia em plena rua.
Foi a primeira vez que vi em Macau a popular evolução do leão, em patuá local conhecida por brinco do leão.
Fiquei parada no passeio, fascinada pelo que via. Máquina fotográfica na mão, a minha pequena máquina 4x4 que o meu pai me oferecera muitos anos antes e que me acompanhara na viagem até Macau.
Aquela pequena caixinha, que ainda possuo, era um brinquedo nas minhas mãos. Mais valiosa, aliás, nas mãos de meu marido, muito mais hábil do que eu a utilizá-la.
Comecei a disparar um pouco à toa e de longe até esgotar o rolo.
Nasceu, porém, ali, uma curiosidade imensa em perceber o que via, fruto da surpresa e do encantamento. Eu começara, há pouco tempo, a tentar aprender a falar cantonense popular. Daí à paixão pela cultura chinesa foi um passo; um pequeno primeiro passo, seguido duma longa caminhada de mais de quarenta anos de estudo sempre à procura de saber mais.
Inevitável, foi procurar uma Associação de Artes Marciais chinesas em busca dum informante, dum mestre, dum especialista com quem pudesse aprender. Encontrei a simpatia e a arte incomparável do Mestre Pun Sü Sam da Associação Ló Léong, meu Mestre a quem presto mais uma vez, aqui, a minha modesta homenagem.
E foi nessa Associação que aprendi tudo quanto sei sobre artes marciais chinesas e sobre o verdadeiro ritual que é a exibição dum leão por ginastas chineses, encarado, hoje, no Ocidente como um mero espectáculo folclórico.
Porém, para todos aqueles que conseguiram perceber e, mais do que perceber, sentir as raízes mais profundas do kungfu e das evoluções dum leão acordado, assistir a estas exibições ultrapassa a emoção que se sente ao ouvir uma bela peça de música clássica, ao contemplar uma obra de arte que nos transmite a sua essência.
Reencontrei o espírito dessa escola, muito mais tarde, em Portugal, no Porto, dirigida pelo Mestre Paulo Araújo que foi também discípulo do mesmo Grande Mestre que eu.
O quotidiano dessa sua escola remete-me, pois, a Macau, à década de 1960 da minha juventude.
E, ao evocá-la, passam-me pela memória as imagens do Mestre e dos seus hábeis discípulos, das panóplias com armas presas nas paredes, dos muitos galhardetes coloridos, atestados da sua genialidade, do altar doméstico em honra de Kuan Kong, o Marte chinês e das grandes cabeças de leão, armadas sobre bambu, que pareciam vivas nas mãos daqueles atletas.
Em primeiro plano revejo, então, a primeira exibição do leão acordado a que assisti, algures, no Bairro de San Kiu. E parece-me ouvir o estalejar dos panchões e a alegria dos gritos da criançada: Chi-si lei lá ! Chi-si lei lá !
N. A. As palavras em chinês estão romanizadas em cantonense, porque foi o idioma em que as ouvi pela primeira vez em Macau
Texto da Prof. Drª Ana Maria Amaro Macau, 1959.
Chama-se Brinco do Leão na «dóci língu di Macau» ou «macaísta chapado» a Dança do Leão. A palavra brinco, nos dialectos luso-asiáticos, refere-se a diversão ou espectáculo jocoso. Em chinês, «é conhecido, em língua falada, por mou si, leão dançando ou dança do leão, ao passo que, na linguagem escrita, é denominado seng si, leão acordado». E leão acordado porque, antes de cada exibição procede-se à cerimónia do acordar do leão, «que consiste em pincelar de vermelho, com cinábrio pastoso, os olhos e a língua do pretenso animal. O leão é, assim, despertado da sua quietude, podendo iniciar, as suas rítmicas evoluções».
Pelas ruas, a população agitava-se. - Chi-si lei lá! Chi-si lei lá!
De longe chegava até nós a percussão do ritmo dos sete estrelas e o cheiro acre da pólvora de panchões a arder. Corria uma brisa ligeira de Setembro. Havia festa num dos templos locais em homenagem do seu orago.
E não poderia haver festa sem a evolução do leão acordado, acordado, antes, por fortes pinceladas de cinábrio nos seus grandes olhos de cartão, papel e seda sobre armação de bambu. Era o leão de Chong Fei com a sua capa negra debruada a branco que reflectia o Sol em pequenas faíscas dos múltiplos espelhos que a decoravam, que se exibia em plena rua.
Foi a primeira vez que vi em Macau a popular evolução do leão, em patuá local conhecida por brinco do leão.
Fiquei parada no passeio, fascinada pelo que via. Máquina fotográfica na mão, a minha pequena máquina 4x4 que o meu pai me oferecera muitos anos antes e que me acompanhara na viagem até Macau.
Aquela pequena caixinha, que ainda possuo, era um brinquedo nas minhas mãos. Mais valiosa, aliás, nas mãos de meu marido, muito mais hábil do que eu a utilizá-la.
Comecei a disparar um pouco à toa e de longe até esgotar o rolo.
Nasceu, porém, ali, uma curiosidade imensa em perceber o que via, fruto da surpresa e do encantamento. Eu começara, há pouco tempo, a tentar aprender a falar cantonense popular. Daí à paixão pela cultura chinesa foi um passo; um pequeno primeiro passo, seguido duma longa caminhada de mais de quarenta anos de estudo sempre à procura de saber mais.
Inevitável, foi procurar uma Associação de Artes Marciais chinesas em busca dum informante, dum mestre, dum especialista com quem pudesse aprender. Encontrei a simpatia e a arte incomparável do Mestre Pun Sü Sam da Associação Ló Léong, meu Mestre a quem presto mais uma vez, aqui, a minha modesta homenagem.
E foi nessa Associação que aprendi tudo quanto sei sobre artes marciais chinesas e sobre o verdadeiro ritual que é a exibição dum leão por ginastas chineses, encarado, hoje, no Ocidente como um mero espectáculo folclórico.
Porém, para todos aqueles que conseguiram perceber e, mais do que perceber, sentir as raízes mais profundas do kungfu e das evoluções dum leão acordado, assistir a estas exibições ultrapassa a emoção que se sente ao ouvir uma bela peça de música clássica, ao contemplar uma obra de arte que nos transmite a sua essência.
Reencontrei o espírito dessa escola, muito mais tarde, em Portugal, no Porto, dirigida pelo Mestre Paulo Araújo que foi também discípulo do mesmo Grande Mestre que eu.
O quotidiano dessa sua escola remete-me, pois, a Macau, à década de 1960 da minha juventude.
E, ao evocá-la, passam-me pela memória as imagens do Mestre e dos seus hábeis discípulos, das panóplias com armas presas nas paredes, dos muitos galhardetes coloridos, atestados da sua genialidade, do altar doméstico em honra de Kuan Kong, o Marte chinês e das grandes cabeças de leão, armadas sobre bambu, que pareciam vivas nas mãos daqueles atletas.
Em primeiro plano revejo, então, a primeira exibição do leão acordado a que assisti, algures, no Bairro de San Kiu. E parece-me ouvir o estalejar dos panchões e a alegria dos gritos da criançada: Chi-si lei lá ! Chi-si lei lá !
N. A. As palavras em chinês estão romanizadas em cantonense, porque foi o idioma em que as ouvi pela primeira vez em Macau
Texto da Prof. Drª Ana Maria Amaro Macau, 1959.
Chama-se Brinco do Leão na «dóci língu di Macau» ou «macaísta chapado» a Dança do Leão. A palavra brinco, nos dialectos luso-asiáticos, refere-se a diversão ou espectáculo jocoso. Em chinês, «é conhecido, em língua falada, por mou si, leão dançando ou dança do leão, ao passo que, na linguagem escrita, é denominado seng si, leão acordado». E leão acordado porque, antes de cada exibição procede-se à cerimónia do acordar do leão, «que consiste em pincelar de vermelho, com cinábrio pastoso, os olhos e a língua do pretenso animal. O leão é, assim, despertado da sua quietude, podendo iniciar, as suas rítmicas evoluções».
A partir do livro de Ana Maria Amaro, O Brinco do Leão. Edição da DST de Macau, 1984
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