quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Macau nas "Paisagens da China e do Japão": 2ª parte

Amores
Uma impressão de Macau.
O que faria aquelle bando de leprosos, que a policia da colonia surprehendeu e agarrou? O que faria aquelle bando de leprosos, além no meio do rio, sobre um miseravel barco, pela noite velha, tenO que faria aquelle bando de leprosos, que a policia da colonia surprehendeu e agarrou? O que faria aquelle bando de leprosos, além no meio do rio, sobre um miseravel barco, pela noite velha, tenebrosa e fria, ora pairando e deslisando ao grado da corrente, ora remando manso, de margem para margem, em vigia?...
Elles eram uns ossudos filhos das aldeias, dando-nos de longe uma impressão de robustez de musculos, de gente affeita á enxada e á vida de lavoira. Vistos de perto, resaltava horrivelmente o ferrete de peçonha do seu sangue; eram indiscriptiveis seres inuteis, abjectos, quasi sem mãos, quasi sem pés, porque os dedos lhes iam caindo podres aos pedaços; rostos medonhos lavrados pelo mal, sem narizes, com os beiços roidos, com as faces chagadas; ainda mais sinistros pela infamia estampada nas feições e nos olhares, denunciando perversidades de alma de infimo quilate, por certo derivadas da suprema degradação do seu viver. Vestiam farrapos immundos, sem fórma definida e sem côr reconhecivel; e escondiam as frontes, talvez envergonhadas, sob as abas enormes dos chapeus de rota, em uso nas aldeias.
Pescavam? por aquellas horas da noite e n'aquelle paradeiro, não era admissivel esta supposição; nem no misero barco, onde se amontoavam alguns trapos, se deu fé de anzoes ou de outras artes de pescar.
2ª edição: 1938
Mendigavam? menos possivel ainda que assim fosse. A taes horas, dormem todos, incluindos os mendigos. O rio dormia, silencioso, lugubre pelo aspecto das suas aguas negras, dos cascos alterosos das grandes lórchas juntas em magotes, desenhando-se vagamente junto ás margens os barquitos em cardumes, presos ás varas de bambú encravadas no lodo. Apenas de espaço a espaço algum raro tanka atravessava d'um lado para outro, chape-chape, remos movidos lentamente pelas mãos das raparigas somnarentas, fartas da lida do dia,―coisa de ir levar ao seu albergue algum retardatario, de volta do jogo ou das orgias.―Não era dos nocturnos viajeiros, e menos dos pobres tankareiras, que o bando de leprosos lograria um punhado de sapecas, que compensasse o esforço da vigilia. Nem a sua miseria, realmente, era tal, que os levasse a tão duros extremos. É certo que o leproso se encontra excluido dos povoados. Em paragens mais rusticas, matam-n'o á pedrada, se o encontram; em Macau, porém, a brandura dos costumes regeita em regra esta medida, tenha embora o miseravel de viver pelos esteiros, em barcos podres, ou sobre os lodos, escondido das gentes como um bicho peçonhento. No entretanto, o esteiro fornece-lhe peixes vis, e caranguejos, e molluscos, e vermes; os cäes vadios encontram de quando em quando, nos despejos, um punhado de arroz cosido, e o leproso tambem o encontra, como elles. Na altivez da sua pasmosa abjecção, o leproso não vem expôr-se ao asco, ao opprobrio; sorri ao mundo com desdem, acoita-se no antro, come immundicies, bebe agua pôdre; e os fados são-lhe bastante complacentes em geral, para matal-os da molestia antes que arrebentem pela fome... Averiguou-se finalmente o que fazia aquelle bando de leprosos.
Aquelles infimos párias passavam a existencia isoladamente, cioso cada qual do seu covil, dos seus farrapos, devorando sem partilha o que o acaso lhe offerecia nos enxurros. Conheciam-se certamente, pela visinhança dos antros, sobre a mesma vasa que se alastra na margem fronteira á de Macau, e a fatalidade commum estabelecia de direito affinidades, allianças tacitas de tribu, entre elles; mas, como não carecessem uns dos outros para soffrerem, para odiarem a natureza creadora, para jazerem no ninho da trapagem, para morrerem, não se procuravam.

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