"Paisagens da China e do Japão", é um livro da autoria de Wenceslau de Moraes (1854-1929), editado em Lisboa em 1906.
A obra é composta por 17 crónicas literárias e contos, escritos sobre a realidade da China, de Macau, e do Japão, país que Wenceslau de Moraes escolheu para passar o resto da sua vida e onde já estava quando este livro foi publicado.
O texto é ilustrado com gravuras. Algumas são desenhos originais do próprio outras são seleccionadas por ele.
Para este post seleccionei excertos de três artigos sobre Macau.
O livro é dedicado a duas pessoas que W. de Moraes conheceu em Macau. "Nos baldões da vida bohemia, na confusa successão dos dias e das scenas, acontece que os factos, as coisas, os individuos, invocados pela pobre memoria exhausta, vão perdendo pouco a pouco as suas qualidades intensivas, as suas côres, os seus contornos, a sua feição propria, emancipando-se do real, como uma pagina de aguarella desmerece, solta e perdida no espaço e voando com as brisas; diluindo-se por fim n'uma emoção generica, vaga, indifinivel, - a saudade. A essas duas grandes saudades, Camillo Pessanha e João Vasco, dedico hoje este livro. Kobe, 10 de Abril de 1901. Wenceslau de Moraes.
Excertos:
Ano Novo chinês
Temos festa hoje, aqui. A alma chineza manifesta-se, evidencea-se, domina, hoje; offusca, pela grande maioria dos rabichos, o pallido reflexo da civilisação do Occidente que logrou chegar a este Macau, a este exiguo penedo asiatico, onde Portugal implantou a sua bandeira. Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de alem dos bazares, o ruido da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarcações fundeadas no porto o clamor ovante das bategas, vibradas pelas mãos rudes das companhas. Que irá lá por esses bazares, a estas horas, santo Deus!... Eu não me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas suggestiona, contamina todos. Bem sei que não se dorme hoje; que não ha chapéo de côco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pellucia com laçarotes de setim e seu competente passaro empalhado, de menina, que não vá correr as viellas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gosar com elles. Mas está tanto frio, e as bagas de agua zurzem-me tão desapiedadamente os vidros das janellas... E, peor do que isto, é o frio da alma, é a apathia enervante do meu espirito, é o sorriso amargo que me enruga os labios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me retêem e me impedem de tambem ir galhofar.
Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a d'aqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabaias negras ensopadas dos chuvascos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, accendendo nas poças, pelo reflexo... grandes labaredas ephemeras, ziguezagueando. As lojas estão escancaradas ao publico; fructos, flôres, doces, carniças, bonecos, coisas santas, estendem-se pelos caminhos em prodigiosas theorias, em coloridos quasi estonteantes; e é comprar, e comprar já, porque não tarda em romper o glorioso dia de descanço, o unico na China em que o camponez, o artifice, o vendilhão, todos, cruzam os braços, não trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de phosphoros, qualquer infimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, offerecem-se, tentam a onda; e até pelas ruas o taboleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um accrescimo de peculio não esperado! O china adora o jogo―era preciso que elle adorasse alguma coisa!―mas hoje todos jogam, todos são chinas, e é isto um exemplo interessante da influencia suggestiva das grandes maiorias; a mão mais circumspecta de funccionario, a mão mais mimosa de dama (de nhônha, em dialecto vulgar d'esta colonia) avançam sem pejo, arriscam á sorte varia umas pratinhas...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adorações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papeis mysticos, e se accenderam pivetes odorificos; quando em plena rua um brado de alleluia os echos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, ]já mercas feitas, já bolsas esvasiadas; e vae surgir um grande dia votado inteiro ao descanço, votado á glorificação dos deuses, cuja magnanima assistencia se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!... (...)
Para o anno novo, tudo se prepara com antecedencia, em prodigiosa azafama; é para todos uma occupação incessante e desusada, durante as ultimas semanas do anno que vae findar. Lavam-se os covis, lavam-se as podres mobilias. É o pó d'um anno que se sacode, é a lama d'um anno que se deita fóra, é o piolho e é a pulga d'um anno que se afogam na onda das barrelas; porque, durante os labores de cada dia, nunca a idéa de limpeza preoccupou os espiritos durante um só instante. Tudo é providencial neste mundo, ao que parece. Na chafurda typica d'estas povoações chinezas, tão frequentemente visitadas por todas as pragas―cholera, peste, lepra,―embebidas no lodo dos canaes, no ambiente das emanações dos estrumes pachorrentamente acogulados e dos despejos que apodrecem pelas ruas, custa a crêr como a gentalha pollula, e como os consorcios fructificam em ninhadas de garotos; e parece á gente que um sopro qualquer destruidor, de calamidade immensa, irá em breve prostrar esses enxames, sem que deixe de pé um só vivente nos albergues. Puro engano: as povoações eternizam-se. No parecer de alguns investigadores, que taes exotismos interessam, se os miasmas putridos convidam as epidemias a entrar e a vindimar providencialmente as muitas vidas que superabundam, estes mesmos miasmas, sobrecarregados de vapores de ammoniaco, de exhalações corrosivas de fermentos, se encarregam de ferir tambem mortalmente os virus morbidos, poupando o resto do povo. Chegamos ao facecioso paradoxo de ser na China a immundicie o purificador por excellencia, um como que elixir de longa vida, indispensavel a todas as familias, feito da mais estupenda alchimia de dejectos. (...)
Pau-Man-Chen
Scena domestica. Lá está o meu cosinheiro a bater cabeça, como se diz n'este Macau; lá está elle rezando aos seus deuses protectores. Que lhe preste! Acabou de me roubar nas contas, como bom chinez que é, serenamente aggressivo em tudo ao europeu; e passou a entregar-se a esta outra occupação não menos meritoria.
Sendo seus os aposentos inferiores, é ali rei, ou pelo menos mandarim; faz o que quer. Os altares aos deuses anicham-se pelas paredes, aos cantos do sobrado, sobre as mesas; e até junto ao fogão, onde se guisa o meu jantar, se presta culto a supinas divindades.
Mysteriosos ritos. São papeis encarnados, contendo cabalisticos dizeres; são figuras de horriveis monstros, coloridas pelas tintas mais surprehendentes, nas disposições mais grotescas, despertando quasi o riso, despertando quasi o medo, a quem não vive em graça em tal Olympo. Alli o cosinheiro, em humildes genuflexões de crente, vem depôr suas offertas, minhas offertas, pois sou eu que pago a festa,―offertas de laranjas, de doces, de chá, de porco assado e de outras iguarias.―Alli ardem lumes mysticos; e frequentemente, pela noite, como agora, se queimam pivetes, cirios rubros, rezinas e papeis, de tudo emanando um fumo atróz, que invade em torvelino a casa toda, que chega sem respeito ao sitio onde me encontro, e me soffoca. Paciencia! Paciencia é o unico codigo de conducta para o aventureiro que escolheu para exilio um canto exotico, longe, muito longe do torrão onde nasceu, e no qual a civilisação disparatada, a feição propria das gentes com quem lida, hão-de fatalmente apresentar-se, dominantes.
Os deuses, com quem por assim dizer vivo em contacto, e a cuja sublime protecção, posto que indirectamente, me confio, são muitos, um enxame. É todo o Olympo buddhista e o inteiro mytho primitivo, amalgamados em crendices; legiões de espiritos. Naturalmente, ha uns mais preferidos, que se invocam no lar com mais piedoso amor; n'este numero, segundo informações recentes que colhi, deve contar-se Pau-Man-Chen; e é a sua historia maravilhosa que me proponho narrar, como puder.
O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o immenso imperio, tem uma face branca e tem uma face preta. Na China não ha effectivamente ninguem que não o adore, que não lhe preste no altar domestico, o culto merecido; a elle, que tudo sabe e tudo pode, que possue a sciencia do bem e a sciencia do mal, que com um olho contempla os ceus e as grandes coisas puras, e com o outro mira O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o immenso imperio, tem uma face branca e tem uma face preta. Na China não ha effectivamente ninguem que não o adore, que não lhe preste no altar domestico, o culto merecido; a elle, que tudo sabe e tudo pode, que possue a sciencia do bem e a sciencia do mal, que com um olho contempla os ceus e as grandes coisas puras, e com o outro mira a terra profunda até aos antros lobregos dos demonios, adevinha-lhes os maleficos designos. O deus Pau-Man-Chen tem uma face branca e tem outra face preta... (...)
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