(Continuação do post de ontem)
Como é sabido, os acontecimentos precipitar-se-iam nos meses seguintes, e num sentido que obrigaria o governo português a ter de equacionar os termos do seu relacionamento com o regime comunista de Pequim. Apesar de bolsas de resistência subsistirem ainda em vários pontos do território, a vitória de Mao parecia mais sólida do que aquilo que Calvet antecipara. Com o seu sentido pragmático, este passaria então a advogar um ajustamento da posição portuguesa às novas realidades. Apesar de não subestimar o peso do factor ideológico na conduta dos comunistas chineses – o qual, entre outras coisas, se traduziria no seu alinhamento com a URSS a partir de Fevereiro de 1950 (celebração do tratado de amizade e aliança sino-soviético) – vai todavia elencar um conjunto de razões que aconselhariam Portugal a enveredar pelo reconhecimento da RPC. Esse ajuste de agulhas justificava-se por vários motivos. A despeito da inclinação de Mao a favor de Moscovo, havia boas razões para supor que dissensões começassem a surgir entre as duas potências, e que os dirigentes comunistas mais realistas se rendessem à evidência de que uma cooperação com o Ocidente seria indispensável para levarem por diante a reconstrução económica do seu país.
Tratava-se, porém, de uma questão dilemática para um regime como o de Salazar, que à data não mantinha relações diplomáticas nem com a URSS nem com qualquer estado comunista. A posição extremamente vulnerável de Macau, porém, terá levado a que esse passo fosse ponderado em Lisboa. O próprio Salazar o terá admitido, desde que feito em concertação com outras potências ocidentais, nomeadamente aquelas que se haviam tornado parceiras de Portugal na NATO desde Abril de 1949. Essa concertação diplomática, contudo, acabaria por não ter lugar. As perseguições e vexames infligidos pelos comunistas a funcionários consulares americanos e o apoio de Pequim a Ho Chi Minh obstaram a que potências como os EUA, a França e até alguns membros da Commonwealth acompanhassem a Grã-Bretanha na sua política de reconhecimento.
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O início da Guerra da Coreia (Junho de 1950) veio contudo exacerbar as divisões ideológicas entre os dois campos e agudizar as recriminações acerca da “perda da China” em países como os EUA, cada vez mais os parceiros indispensáveis de Portugal em matéria de defesa. Apesar de tudo isto, Calvet (à semelhança de Ferreira da Fonseca, ministro de Portugal na China até à queda do Kuomintang) manteve a sua posição inicial: para a defesa diplomática de Macau ser viável, Lisboa deveria dispor de canais directos com Pequim, a fim de evitar “enredos e mal-entendidos que fatalmente se formam numa região tão propícia à intriga política e aos negócios mais ou menos escuros”. A alternativa seria ficar refém dos “representantes dos interesses comerciais da colónia” – ou seja, daqueles que historicamente se tinham revelado menos fiáveis para Portugal. Escrevendo novamente sobre o assunto em Junho de 1951, admitia que o conflito na Coreia não só impossibilitava uma reaproximação luso-chinesa, como até trazia perigos acrescidos. Não seria de descartar, por exemplo, no caso de a China averbar um revés na península coreana, que os seus líderes se sentissem tentados, em jeito de compensação, a empreender um assalto a Macau. Mas esse cenário, argumentava, apenas tornaria mais premente um diálogo com Pequim através dos agentes e canais apropriados. E, neste ponto, a sua faceta “orientalista” exprimia-se sem qualquer ambiguidade:
Sempre que a mentalidade oriental predominou na nossa administração, a colónia entrou em crise; quando essa mentalidade foi tenazmente combatida por homens públicos da têmpera e patriotismo de Ferreira do Amaral, vimos a nossa soberania reafirmada nessa nossa minúscula relíquia do nosso império oriental.
Tendo trocado o consulado em Cantão por uma colocação como segundo secretário em Paris, em 1951, nem por isso Calvet deixou de seguir de muito perto os assuntos respeitantes à China. Na realidade, o mais provável é que a sua nomeação tivesse sido motivada pelo desejo do MNE em contar com alguém com sólidos conhecimentos da situação na China e no Extremo-Oriente para representar Portugal na Comissão de Coordenação dos Controlos de Exportações para o Bloco Soviético e na Comissão da China, os dois órgãos que deveriam zelar pela imposição de um embago estratégico ocidental às duas grandes potências comunistas. Ora, permanecendo precária e incerta a presença portuguesa em Macau, rapidamente se tornou claro que o preço que os portugueses teriam de pagar para garantir a benevolência das autoridades comunistas era fazerem vista grossa ao contrabando de produtos de que a China continental carecia, desde o petróleo ao alumínio, através de Macau.
No auge da guerra da Coreia, Calvet estava pois incumbido do papel ingrato de ter de dar a cara pelos “desvios macaenses” ao embargo ocidental – em suma, uma charada diplomática largamente ditada pela difícil conciliação de dois desideratos maiores da política externa portuguesa, a pertença a um pacto de segurança anti-comunista (a NATO) e a defesa da soberania colonial. Apesar da dificuldade que tal incumbência lhe trazia, Calvet parecia retirar um verdadeiro prazer desse tipo de missões espinhosas, nas quais determinadas aptidões dos agentes diplomáticos eram postas à prova de uma maneira muito clara. (...)
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