quarta-feira, 17 de abril de 2019

O Cartório e a Livraria do Colégio da Madre de Deus

Em 1742 o Vice-Provincial da China, Pe. Domingos Pinheiro (1741-1745), ordenou ao Irmão leigo João Álvares que transcrevesse os manuscritos de livros, cartas, relações, compilações e outros documentos, cujos originais se encontravam no Arquivo do Colégio da Madre de Deus, e que, directa ou indirectamente, versavam sobre a obra missionária dos Jesuítas no Extremo-Oriente. Julga-se que essa ordem foi motivada pelo desejo manifestado pela Santa Sé de examinar melhor as fontes jesuíticas sobre a tão debatida questão dos Ritos chineses. Provavelmente também influiu nessa decisão a instabilidade da situação política de Macau, após a conquista da China pelos Manchús e o pressentimento da iminência da perseguição pombalina.
O Irmão Álvares lançou-se ao trabalho árduo, auxiliado por sete copistas, desde 1744 a 1748 (Real Biblioteca da Ajuda, códice 49-V-29,f.121). Cremos que não se copiou senão aquilo que era mais importante. Além das transcrições, o Irmão Álvares organizou, completou e anotou listas dos nomes de jesuítas e doutras autoridades e várias colecções que podiam ser úteis aos que necessitassem de consultar esses documentos.
Pelos anos de 1748 ou 1749, os códices foram mandados para Portugal e guardaram-se numa das Casas dos jesuítas em Lisboa. Aí se achavam ainda, ao tempo da expulsão desses beneméritos pelo Marquês de Pombal. A 13 de Dezembro de 1758, cercou-lhes ele de tropas as casas da Capital, depois as restantes do reino e das missões. A 3 de Setembro de 1759, publicou contra eles um decreto de extermínio, confiscando-lhes todos os bens, encerrando-os nas prisões e expulsando-os do solo da Pátria. E tudo isto sem processo...
A 21 de Julho de 1773, foi assinado em Roma o Breve de supressão da Companhia de Jesus em todo o mundo, breve que foi redigido no seu original pelo ministro dos Estrangeiros de Espanha, Aranda, e imposto pela coligação das lojas maçónicas da França, Itália, Espanha e Portugal ao Papa Clemente XIV Para evitar males maiores, Sua Santidade assinou.
A 9 de Setembro do mesmo ano, o Breve "Dominus ac Redemptor" era notificado aos jesuítas encarcerados no forte de S. Julião da Barra, em Lisboa. As livrarias dos jesuítas foram enriquecer a biblioteca do novo Palácio Real, construído na Ajuda, anos após o terremoto de 1755. Aí foram parar também os códices oriundos de Macau. A catalogação demorou muitos anos a completar-se. Aqueles valiosos documentos caíram, entretanto, em completo esquecimento. Apenas em fins do século passado, se veio a saber que, na Biblioteca Real da Ajuda, havia "mais de 50 volumes das cartas escritas da Índia, da China e do Japão pelos Missionários Jesuítas ao seu Geral".
Na 2a. edição do seu livro "Saint Xavier, sa vie et ses lettres", Paris, 1900, o Pe. L. J. M. Cross, S.J., foi o primeiro erudito que correu levemente o véu que escondia o tesoiro desses códices. Pouco tempo depois, Jordão de Freitas, sábio Director da Biblioteca, principiou a aproveitar, numa série de artigos, alguns deles publicados no Archivo Histórico Portuguez, e folhetos, o copioso e inédito material.
Seguidamente, outros historiadores estrangeiros e portugueses estudaram e divulgaram parte das riquezas imensas desses códices. Foram eles Cristóvão Aires, Magalhães Sepúlveda, A. Braancamp Freire, Sousa Viterbo, Augusto da Silva Carvalho, Vítor Ribeiro, Teófilo Braga, J. A. Abranches Pinto, G. Schurhamer, S.J., D.Schilling, S.J., Schutte, S.J., Oschar Nachod, Carlos (Charles) Boxer e outros.
Em 1929, Yoshitomo Okamoto visitou vários arquivos de Portugal, entre os quais o da Ajuda, descrevendo e resumindo, no seu livro Porutogaru Wo Tazuneru ("Visitando Portugal"), de 223 páginas, entre outras colecções, os "Jesuitas na Ásia".
No N.º 428 de Novembro de 1939, ps.188-215, do Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, o Prof. Boxer e o Sr. J. M. Braga publicaram um estudo de 30 páginas, baseado no trabalho de Okamoto, sem contudo lhe reproduzir os comentários.
Em 1952, o Sr. J. M. Braga conseguiu ir à Europa e organizar um catálogo completo dos Códices que este investigador vem publicando, com notas valiosas, no referido Boletim Eclesiástico, a partir de Janeiro do presente ano.
A primeira parte desta colecção, "Jesuitas na Ásia", compõe-se de transcrições de livros escritos por jesuítas portugueses ou estrangeiros, que missionaram o Extremo-Oriente. Alguns desses livros foram impressos, antes da supressão da Companhia, outros depois da sua restauração em 1814, e muitos conservam-se ainda manuscritos. A maioria dos documentos são cartas e relatos, principalmente dos jesuítas, mas também de outros escritores. Os jesuítas franceses publicaram tudo o que se lhes refere. Da parte portuguesa está quase tudo inédito.
Os originais que ficaram em Macau foram confiscados, em 1762, após a expulsão dos jesuítas. O Colégio da Madre de Deus transformou-se, então, em caserna.
Em 1828, o Coronel José Aquino Guimarães e Freitas alude à livraria desse Colégio, dizendo: "O convento (aliás Colégio), onde houve uma copiosa e escolhida livraria, serve agora de habitação a robustíssimos ratos, enquanto que os livros e os documentos no velho colégio de Macau continuaram a apodrecer e a serem comidos pela traça."
No incêndio que, em 1835, queimou o Colégio e a Igreja da Madre de Deus, arderam também todos esses importantíssimos originais de livros e manuscritos. Perda irreparável, devida sobretudo à incúria e falta de espírito patriótico dos governantes de então.
Felizmente, a Providência quis que se salvassem, a tempo, as cópias guardadas nos Códices da Ajuda. Esperamos que, nos próximos anos, essa documentação vastíssima da Ajuda será desenterrada do cemitério do esquecimento, para que possamos erguer, ressuscitada à sua glória original, a acção missionária e cultural dos Jesuítas em Macau e no Extremo-Oriente. Parece-nos que o Governo desta Província se devia interessar ao máximo por fotocopiar esses códices de Lisboa e adquirir todas as obras que, com eles, se relacionam. Como para a fundação e o desenvolvimento do Brasil, assim para Macau foi absolutamente essencial a acção missionária, cultural e diplomática dos jesuítas. E esta uma verdade que nada, nem ninguém, que conheça um pouco a história de Macau, conseguirá destruir ou minimizar.
Texto da autoria de Benjamim Videira, S. J. (também ele jesuíta).

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