Um aparente ato espontâneo de Mário Soares, dado às fugas ao protocolo, durante uma visita a Macau, teve um resultado inesperado: ao consolar uma criança, deu um empurrão à legalização de 50 mil pessoas.
O jornalista João Guedes, já então repórter da TDM (Teledifusão de Macau), recorda-se de quando, em 1989, Soares visitou Macau e foi abordado por um grupo de trabalhadores ilegais chineses, que pediam a regularização da sua situação -- um problema que se arrastava há anos "mas ninguém tinha coragem" de resolver.
O Jornal Tribuna de Macau descreveu como Mário Soares foi confrontado com uma "pequena manifestação" que incluía "quatro crianças empunhando um cartaz com inscrições chinesas" que pediam "a intervenção do Presidente para a obtenção dos documentos de identificação de Macau para as suas mães".
As crianças "abriram um pano onde se lia a frase 'Por favor dá o bilhete de identidade à minha mãe'", escreve o jornal, explicando que as mães estavam ilegalmente em Macau, casadas com maridos em situação legal e com filhos já nascidos no território, "devidamente documentados".
"Ao notar a presença de cidadãos de etnia chinesa que insistentemente o pretendiam interpelar junto ao Palácio da Praia Grande, Mário Soares cruzou a avenida para apurar o que se estava a passar. Quando (...) se aproximou do local, um cidadão de etnia chinesa (...) prostrou-se no chão aos pés de Soares pedindo a sua intervenção para resolver a situação da sua mulher", escrevia o Tribuna na edição de 03 de março de 1989.
Soares, "visivelmente chocado com a situação e com o choro das crianças, (...) prometeu resolver a situação". Tendo em conta que a mulher corria risco de ser repatriada para a China, o Presidente declarou que "as crianças não podem ser separadas da mãe". "Vamos tratar disso", afirmou.
O jornalista João Guedes, já então repórter da TDM (Teledifusão de Macau), recorda-se de quando, em 1989, Soares visitou Macau e foi abordado por um grupo de trabalhadores ilegais chineses, que pediam a regularização da sua situação -- um problema que se arrastava há anos "mas ninguém tinha coragem" de resolver.
O Jornal Tribuna de Macau descreveu como Mário Soares foi confrontado com uma "pequena manifestação" que incluía "quatro crianças empunhando um cartaz com inscrições chinesas" que pediam "a intervenção do Presidente para a obtenção dos documentos de identificação de Macau para as suas mães".
As crianças "abriram um pano onde se lia a frase 'Por favor dá o bilhete de identidade à minha mãe'", escreve o jornal, explicando que as mães estavam ilegalmente em Macau, casadas com maridos em situação legal e com filhos já nascidos no território, "devidamente documentados".
"Ao notar a presença de cidadãos de etnia chinesa que insistentemente o pretendiam interpelar junto ao Palácio da Praia Grande, Mário Soares cruzou a avenida para apurar o que se estava a passar. Quando (...) se aproximou do local, um cidadão de etnia chinesa (...) prostrou-se no chão aos pés de Soares pedindo a sua intervenção para resolver a situação da sua mulher", escrevia o Tribuna na edição de 03 de março de 1989.
Soares, "visivelmente chocado com a situação e com o choro das crianças, (...) prometeu resolver a situação". Tendo em conta que a mulher corria risco de ser repatriada para a China, o Presidente declarou que "as crianças não podem ser separadas da mãe". "Vamos tratar disso", afirmou.
Soares em Macau. Novembro de 1990. Foto de Alfredo Cunha |
Segundo João Guedes, este episódio desencadeou uma operação de legalização, cerca de um ano mais tarde, preparada "entre os maiores segredos", tentando evitar que multidões acorressem a Macau para conseguir um documento de identificação. Esta é uma ligação comum na memória de quem vivia na cidade na altura.
"O governador [Carlos Melancia] ficou à rasca, toda a gente ficou à rasca e é quando o governador não tem alternativa se não virar-se para o comandante das forças de segurança e dizer 'Legalize-me toda a gente que está em Macau'. E pronto, legaliza 50 mil pessoas", conta à Lusa.
O jornalista refere-se à "Operação Dragão", em março de 1990, que começou com um anúncio das autoridades de que seriam legalizados os pais indocumentados de cerca de 4.200 crianças. A notícia gerou tal afluência que acabou por resultar na legalização de "um número mais avultado do que se imaginaria", escreve o Tribuna.
Durante anos, recorda João Guedes, surgiam rumores, periodicamente, de que Macau ia legalizar a população em situação irregular, cerca de 15% à época. "Eram nuvens de chineses a tentar chegar a Macau das formas mais imaginosas. Havia rumores, o pessoal vinha por vários meios, a nado ou em sampanas, havia até passadores chamados 'cabeças de cobra'", explica. Apesar de os rumores nunca se concretizarem, os ilegais -- empregadas domésticas, trabalhadores da construção -- iam-se acumulando.
"Era uma questão que se pressentia como necessária, mas ninguém tinha coragem para pôr isso em andamento. Até essa coisa do Soares", explica o jornalista, lembrando que já decorriam preparativos para a transferência de administração de Macau de Portugal para a China (em 1999) e era necessário saber exatamente quantas pessoas havia na cidade.
Surge, então, este anúncio, indicando os locais onde as pessoas se deviam reunir para iniciar os procedimentos. "Um dos pontos era o canídromo", onde se deu "uma grande bronca", devido à concentração de uma "multidão enormíssima" junto aos portões da pista de corridas de cães, recorda Guedes. O jornalista encontrava-se no alto do forte de Mong-Ha com um operador de câmara. "Tinha uma vista perfeita para o canídromo e assisti àquilo, estivemos a transmitir em direto", conta.
O Tribuna de Macau descreve como "milhares de imigrantes" vieram "a salto para Macau", atraídos por "boatos" de "uma possível amnistia que lhes possibilitasse manterem-se no território".
"A multidão não arredou pé, exigindo que o Governo lhes desse garantias quanto à legalização. (...) Ao princípio da noite o caso encontrava-se num beco sem saída, com alguns manifestantes a avançarem com a ideia de greve de fome", descreve o jornal.
O Governo chegou a anunciar a suspensão das legalizações e mandou 'limpar' a cidade, mas voltaram a criar-se grupos: "Cerca das duas horas da manhã a situação foi-se deteriorando com a chegada de mais centenas e centenas de ilegais (...) A situação manteve-se tensa durante largas horas, com a multidão aos gritos a exigir ser também registada, uma multidão que ia engrossando à medida que o tempo passava".
Com dificuldade em controlar a multidão, as autoridades "decidiram fazer a listagem" dos ilegais, sendo conduzidos para o Campo da Polícia, nas Portas do Cerco, e o Estádio do Canídromo. Neste último "estabeleceu-se o pânico", com disparos para o ar pela polícia e pessoas "no chão espezinhadas", "chegando a haver rumores, não confirmados, que uma criança teria sido morta".
Nesta operação foram registados mais de 50 mil ilegais, escreveu a Lusa na altura.
O macaense Miguel Senna Fernandes diz "não ter dúvidas" de que esta operação foi uma consequência da reação de Soares aos manifestantes em 1989. "Naturalmente é um gesto humanitário de Mário Soares para uma política consentânea à realidade de Macau e das suas gentes. Seja como for, a visita de Soares em 1989 teve um efeito praticamente direto quanto à Operação Dragão, não aconteceu antes porque, enfim, tinha de se ver a logística e oportunidade", disse à Lusa.
José Rocha Diniz, antigo diretor e agora administrador do Tribuna, considera que a operação "evidentemente que teve" relação com a visita de Soares, já que "foi por causa disso que apareceram as pessoas".
"Dizer que diretamente há uma relação é difícil de provar, mas eu estou convencido que houve uma relação causa efeito", conclui.
Artigo de Inês Santinho Gonçalves, agência Lusa 7.1.2017
"O governador [Carlos Melancia] ficou à rasca, toda a gente ficou à rasca e é quando o governador não tem alternativa se não virar-se para o comandante das forças de segurança e dizer 'Legalize-me toda a gente que está em Macau'. E pronto, legaliza 50 mil pessoas", conta à Lusa.
O jornalista refere-se à "Operação Dragão", em março de 1990, que começou com um anúncio das autoridades de que seriam legalizados os pais indocumentados de cerca de 4.200 crianças. A notícia gerou tal afluência que acabou por resultar na legalização de "um número mais avultado do que se imaginaria", escreve o Tribuna.
Durante anos, recorda João Guedes, surgiam rumores, periodicamente, de que Macau ia legalizar a população em situação irregular, cerca de 15% à época. "Eram nuvens de chineses a tentar chegar a Macau das formas mais imaginosas. Havia rumores, o pessoal vinha por vários meios, a nado ou em sampanas, havia até passadores chamados 'cabeças de cobra'", explica. Apesar de os rumores nunca se concretizarem, os ilegais -- empregadas domésticas, trabalhadores da construção -- iam-se acumulando.
"Era uma questão que se pressentia como necessária, mas ninguém tinha coragem para pôr isso em andamento. Até essa coisa do Soares", explica o jornalista, lembrando que já decorriam preparativos para a transferência de administração de Macau de Portugal para a China (em 1999) e era necessário saber exatamente quantas pessoas havia na cidade.
Surge, então, este anúncio, indicando os locais onde as pessoas se deviam reunir para iniciar os procedimentos. "Um dos pontos era o canídromo", onde se deu "uma grande bronca", devido à concentração de uma "multidão enormíssima" junto aos portões da pista de corridas de cães, recorda Guedes. O jornalista encontrava-se no alto do forte de Mong-Ha com um operador de câmara. "Tinha uma vista perfeita para o canídromo e assisti àquilo, estivemos a transmitir em direto", conta.
O Tribuna de Macau descreve como "milhares de imigrantes" vieram "a salto para Macau", atraídos por "boatos" de "uma possível amnistia que lhes possibilitasse manterem-se no território".
"A multidão não arredou pé, exigindo que o Governo lhes desse garantias quanto à legalização. (...) Ao princípio da noite o caso encontrava-se num beco sem saída, com alguns manifestantes a avançarem com a ideia de greve de fome", descreve o jornal.
O Governo chegou a anunciar a suspensão das legalizações e mandou 'limpar' a cidade, mas voltaram a criar-se grupos: "Cerca das duas horas da manhã a situação foi-se deteriorando com a chegada de mais centenas e centenas de ilegais (...) A situação manteve-se tensa durante largas horas, com a multidão aos gritos a exigir ser também registada, uma multidão que ia engrossando à medida que o tempo passava".
Com dificuldade em controlar a multidão, as autoridades "decidiram fazer a listagem" dos ilegais, sendo conduzidos para o Campo da Polícia, nas Portas do Cerco, e o Estádio do Canídromo. Neste último "estabeleceu-se o pânico", com disparos para o ar pela polícia e pessoas "no chão espezinhadas", "chegando a haver rumores, não confirmados, que uma criança teria sido morta".
Nesta operação foram registados mais de 50 mil ilegais, escreveu a Lusa na altura.
O macaense Miguel Senna Fernandes diz "não ter dúvidas" de que esta operação foi uma consequência da reação de Soares aos manifestantes em 1989. "Naturalmente é um gesto humanitário de Mário Soares para uma política consentânea à realidade de Macau e das suas gentes. Seja como for, a visita de Soares em 1989 teve um efeito praticamente direto quanto à Operação Dragão, não aconteceu antes porque, enfim, tinha de se ver a logística e oportunidade", disse à Lusa.
José Rocha Diniz, antigo diretor e agora administrador do Tribuna, considera que a operação "evidentemente que teve" relação com a visita de Soares, já que "foi por causa disso que apareceram as pessoas".
"Dizer que diretamente há uma relação é difícil de provar, mas eu estou convencido que houve uma relação causa efeito", conclui.
Artigo de Inês Santinho Gonçalves, agência Lusa 7.1.2017
"As autoridades policiais do Território montraram esta madrugada uma gigantesca operação de legalização de imigrantes ilegais que, em número que rondará os 50 afluíram em massa, logo após a meia-noite, à zona das Portas do Cerco. A multidão que se aglomerou naquela área provocou mais de cem feridos por espezinhamento, dois dos quais, pelo menos, estão neste momento internados, em estado considerado grave, no hospital Conde S. Januário. O clima de tensão bem evidente durante largas horas, de início no centro da cidade e depois junto à fronteira, foi-se esbatendo com o correr da manhã, à medida que os clandestinos iam sendo registados pelas autoridades que montaram “quartel general” nos campos do Canídromo e da Polícia, onde acabou por se concentrar a grande maioria dos indocumentados que desde terça-feira à rua para exigirem a atribuição de cédulas de identificação policial. Adivinha-se, pois, um desfecho justo e razoável num caso que, resolvido doutra forma, poderia ter consequências dramáticas. A concentração de clandestinos nas ruas de Macau teve início às 18 horas de terça-feira, logo após a divulgação, em conferência de Imprensa, de um comunicado das Forças de Segurança de Macau (FSM) que anunciava a intenção das autoridades de legalizar os pais em situação irregular de cerca de 4200 menores que, em Janeiro do ano passado, receberam documentos de identificação, numa iniciativa que ficou conhecida no Território por “Operação Dragão”. O comunicado das FSM garantia que todas as mães e pais documentados cujos os filhos foram legalizados em consequência da “Operação Dragão” seriam contemplados com cédulas de identificação policial e solicitava aos clandestinos para comparecerem no serviço de identificação da PSP “apenas no dia constante da convocatória que vão receber”. A notícia espalhou-se rapidamente pela cidade, levando muitas famílias de clandestinos não contempladas no citado plano de legalização a descer à rua para exigirem igualdade de tratamento.
“Cédulas para todos” e o “Governo tem de tratar todos da mesma maneira” foram, desde essa altura, as palavras de ordem entoadas em chinês pela multidão de indocumentados com filhos em situação legal no Território e que apenas tiveram a desdita de, por mera coincidência, não constar do lote abrangido pela “Operação Dragão”. No início da manhã de ontem, as escadarias exteriores do Palácio estavam totalmente ocupadas pela multidão, o que forçou, ao longo do dia, o Governador Carlos Melancia e a maior parte dos membros do executivo a utilizarem um acesso nas traseiras para entrar e sair do edifício. A meio da tarde, cerca de trinta manifestantes entraram em greve de fome para pressionarem as autoridades, enquanto os agentes da polícia, de megafone em punho, faziam apelos à calma.
Apesar da tensão, que ali se viveu e dos naturais congestionamentos de trânsito naquela área, situada em pleno coração da cidade, nunca chegou a registar-se qualquer confronto violento entre as forças da ordem e a multidão de imigrantes, entre os quais se encontravam muitas crianças. Uma reunião realizada, ao fim da manhã, entre uma delegação com seis manifestantes e o chefe do Gabinete do Governador revelara-se inconclusiva, o mesmo vindo a suceder nos contactos esboçados com o comandante das Forças de Segurança, coronel Proença de Almeida, que comunicou aos clandestinos que não dialogaria com eles enquanto a manifestação não dispersasse. Os imigrantes, por seu turno, afirmavam que não abandonariam as imediações do palácio enquanto as autoridades não lhes garantissem a emissão de cédulas de identificação policial. À medida que as horas iam decorrendo, a multidão estacionada no palácio da Praia Grande engrossava lentamente o que levou, por fim, à intervenção das forças policiais. Ao mesmo tempo, as FSM reforçavam a vigilância na fronteira, com receio de uma eventual entrada maciça de clandestinos em Macau. Nos últimos dois dias, os traficantes de clandestinos, mais conhecidos por “cabeças de cobra”, terão introduzido no Território um número de imigrantes muito superior aos 120 que, em média, afluem diariamente a Macau."
In JTM e Jornal de Macau 31.3.1990
“Cédulas para todos” e o “Governo tem de tratar todos da mesma maneira” foram, desde essa altura, as palavras de ordem entoadas em chinês pela multidão de indocumentados com filhos em situação legal no Território e que apenas tiveram a desdita de, por mera coincidência, não constar do lote abrangido pela “Operação Dragão”. No início da manhã de ontem, as escadarias exteriores do Palácio estavam totalmente ocupadas pela multidão, o que forçou, ao longo do dia, o Governador Carlos Melancia e a maior parte dos membros do executivo a utilizarem um acesso nas traseiras para entrar e sair do edifício. A meio da tarde, cerca de trinta manifestantes entraram em greve de fome para pressionarem as autoridades, enquanto os agentes da polícia, de megafone em punho, faziam apelos à calma.
Apesar da tensão, que ali se viveu e dos naturais congestionamentos de trânsito naquela área, situada em pleno coração da cidade, nunca chegou a registar-se qualquer confronto violento entre as forças da ordem e a multidão de imigrantes, entre os quais se encontravam muitas crianças. Uma reunião realizada, ao fim da manhã, entre uma delegação com seis manifestantes e o chefe do Gabinete do Governador revelara-se inconclusiva, o mesmo vindo a suceder nos contactos esboçados com o comandante das Forças de Segurança, coronel Proença de Almeida, que comunicou aos clandestinos que não dialogaria com eles enquanto a manifestação não dispersasse. Os imigrantes, por seu turno, afirmavam que não abandonariam as imediações do palácio enquanto as autoridades não lhes garantissem a emissão de cédulas de identificação policial. À medida que as horas iam decorrendo, a multidão estacionada no palácio da Praia Grande engrossava lentamente o que levou, por fim, à intervenção das forças policiais. Ao mesmo tempo, as FSM reforçavam a vigilância na fronteira, com receio de uma eventual entrada maciça de clandestinos em Macau. Nos últimos dois dias, os traficantes de clandestinos, mais conhecidos por “cabeças de cobra”, terão introduzido no Território um número de imigrantes muito superior aos 120 que, em média, afluem diariamente a Macau."
In JTM e Jornal de Macau 31.3.1990
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