No prefácio ao livro “Portugueses das Sete Partidas”, Aquilino Ribeiro deixou as seguintes palavras: “A Ásia, cuja odisseia se venceu há quatro séculos, continua a ser o nosso exuberante teatro de maravilhas. Quanto mais se explora mais tem a oferecer-nos”.
Com o desaparecimento da professora Ana Maria Amaro (1929-2015) ficamos todos mais sós nesse palco do teatro de maravilhas, de que nos falava o Mestre Aquilino. Quem mais teve essa capacidade epistemológica para cruzar saberes, saindo das pautas canónicas e do corpus hermeticum, para casar a etnologia com a botânica, a antropologia com a história, a sinologia com a literatura ou a biologia com a linguística? No passado recente, talvez só José Gomes da Silva e Almerindo Lessa. Chegou a Macau em 1957, acompanhando o marido, Fernando Amaro, aí colocado no cumprimento do serviço militar obrigatório e que foi ajudante de campo do Governador Jaime Silvério Marques e secretário do Governador Lopes dos Santos.
Num escrito autobiográfico, “Histórias de Encanto e Desencanto”, Ana Maria Amaro recorda o seguinte: “Setembro de 1957. O tufão Glória varrera o mar próximo de Hong-Kong e Macau sentiu a sua força ficando vestida de destroços. Foi assim trajada, com os cabelos verdes das grandes árvores de gondão sobre os passeios, raízes emergentes de caldeiras desventradas mostrando terra nua, grandes lagos cobrindo as hortas dos aterros, madeiras velhas e mastros quebrados flutuando, arremessados pela ondulação sobre os paredões litorais, em destroços, que a cidade nos recebeu”. Mas, outros problemas se avizinhavam, não conhecendo a língua e os costumes sentiam-se “completamente estranhos e, pior do que isso, surdos-mudos e analfabetos. Foi uma história de desencanto a da nossa chegada a Macau, tal como de desencanto foi a história do nosso regresso.
Mas, entre estas duas histórias, outras houve de encantamento e muitas delas passadas no Liceu”. No Liceu de Macau, inicialmente no velho e charmoso edifício no Tap Seac e depois nas novas instalações no Porto Exterior, onde leccionou durante quinze anos, foi uma professora inesquecível para diversas gerações de alunos. Precursora da escola cultural, mobilizou a comunidade educativa para récitas, para o teatro, para o jornalismo, sobretudo para o experimentalismo científico em trabalhos de campo. Parecia que o conhecimento de Macau também entrava pelo currículo dentro.
Graciete Batalha no seu diário “Bom Dia, S’Tora”, dizia que Ana Maria Amaro tinha “sem dúvida o génio das festas escolares e que costuma ensaiar com eles coisas engraçadíssimas”. Tinha duas licenciaturas, uma em Biologia e outra em Antropologia Cultural e Social para além do Curso de Ciências Pedagógicas, por isso leccionava Ciências Naturais e Geografia. A primeira aula ficou gravada na sua memória: “Lembro-me da minha estreia diante dos alunos, na sua maioria macaenses. Era um 5º Ano. A sala ficava ao fundo, no rés do chão e dava para um pátio ou quintal, para onde se abriam grandes portas envidraçadas. Vesti para a ocasião o meu vestido azul, embora já sem o plissado original que o tufão Glória desfizera e cujas bolas brancas anilara ligeiramente. Eu só tinha dois vestidos de verão. Aquele era o melhor. Com ele desembarcara. Olhei para os alunos, que se levantaram e que eu mandei sentar. Lembro-me do Júlio Branco, muito ruivo, da Maria Adelina Magalhães, da Ana Maria Silva e de tantos outros rostos bonitos e pares de olhos brilhantes, atentos, fixos em mim. Eu preparara bem a lição, que o director de ciclo me dissera ser a que continuava a matéria dada até ali. No entanto, sentia-me de certo modo angustiada, como a actriz principiante que então era, chamada pelo contra-regra para entrar em cena.(…) Tentava recordar as lições de pedagogia que estudara na Faculdade de Letras, à procura da resposta para como actuar. Optei por ser eu própria e deixar correr, ao sabor da maré, aquele meu barco cheio de esperança, onde punha à prova a minha capacidade de fazer aprender. Foi um encantamento o meu encontro com os alunos macaenses. Através deles, consegui encontrar o fio que me conduziu à identidade cultural dos filhos-da-terra e deixar-me conquistar, e ser conquistada, pelo inegável fascínio de Macau. Eu sentia-me bem no Liceu. Gostava dos alunos. Gostava de preparar as aulas e de tentar transmitir alguma coisa, de mim, àquele punhado de adolescentes que me eram confiados”.
Graciete Batalha no seu diário “Bom Dia, S’Tora”, dizia que Ana Maria Amaro tinha “sem dúvida o génio das festas escolares e que costuma ensaiar com eles coisas engraçadíssimas”. Tinha duas licenciaturas, uma em Biologia e outra em Antropologia Cultural e Social para além do Curso de Ciências Pedagógicas, por isso leccionava Ciências Naturais e Geografia. A primeira aula ficou gravada na sua memória: “Lembro-me da minha estreia diante dos alunos, na sua maioria macaenses. Era um 5º Ano. A sala ficava ao fundo, no rés do chão e dava para um pátio ou quintal, para onde se abriam grandes portas envidraçadas. Vesti para a ocasião o meu vestido azul, embora já sem o plissado original que o tufão Glória desfizera e cujas bolas brancas anilara ligeiramente. Eu só tinha dois vestidos de verão. Aquele era o melhor. Com ele desembarcara. Olhei para os alunos, que se levantaram e que eu mandei sentar. Lembro-me do Júlio Branco, muito ruivo, da Maria Adelina Magalhães, da Ana Maria Silva e de tantos outros rostos bonitos e pares de olhos brilhantes, atentos, fixos em mim. Eu preparara bem a lição, que o director de ciclo me dissera ser a que continuava a matéria dada até ali. No entanto, sentia-me de certo modo angustiada, como a actriz principiante que então era, chamada pelo contra-regra para entrar em cena.(…) Tentava recordar as lições de pedagogia que estudara na Faculdade de Letras, à procura da resposta para como actuar. Optei por ser eu própria e deixar correr, ao sabor da maré, aquele meu barco cheio de esperança, onde punha à prova a minha capacidade de fazer aprender. Foi um encantamento o meu encontro com os alunos macaenses. Através deles, consegui encontrar o fio que me conduziu à identidade cultural dos filhos-da-terra e deixar-me conquistar, e ser conquistada, pelo inegável fascínio de Macau. Eu sentia-me bem no Liceu. Gostava dos alunos. Gostava de preparar as aulas e de tentar transmitir alguma coisa, de mim, àquele punhado de adolescentes que me eram confiados”.
Precipitou-se então nesse abismo de conhecimentos sobre Macau e os seus costumes, sobre a identidade cultural dos macaenses e sobre a cultura chinesa, sublevando-se contra a indolência, a inércia e a indiferença. E o resultado foi uma imensa e multímoda obra, demonstrando que a macaulogia era assimilável aos olhos europeus e da qual deixo este registo sumário: “Relíquias Botânicas de Macau”, 1961; “Catálogo Provisório das Espécies Mais Comuns da Flora de Macau”, 1961; “Vendilhões Chineses de Macau”, 1966; “Alguns Aspectos do Artesanato em Macau”, 1967; “O Jardim de Lou Lim Ioc”, 1967; “Alguns Aspectos da Medicina Tradicional Chinesa”, 1972.
Regressa a Portugal em 1972 para nunca mais retornar a Macau. Doutorou-se no Instituto de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa, defendendo uma tese sobre “A Medicina Popular em Macau” (inacreditavelmente ainda não publicada), iniciando uma nova carreira docente da qual se jubilará como professora catedrática. Desenvolveu uma intensa actividade científica em torno de Macau e dos estudos chineses. Fundou o Fórum de Sinologia, o Centro de Estudos Chineses e presidiu ao Instituto Português de Sinologia. A obra desta fecunda etapa da sua vida é muito extensa, e da qual retenho os seguintes títulos: “Aguarelas de Macau: Cenas de Rua e Histórias de Vida”, 1998; “Estudos Sobre a China”, 1998-2006, 8 volumes; “O Mundo Chinês: um longo diálogo entre culturas”, 1998; “Das Cabanas de Palha às Torres de Betão: assim cresceu Macau”, 1998; “Filhos da Terra”, 1993; “Introdução da Medicina Ocidental em Macau e as Receitas de Segredo da Botica do Colégio de São Paulo”, 1992; “Três Jogos Populares de Macau: Chonca, Tabu, Bafá”, 1984; “O Traje da Mulher Macaense: da Saraça ao Dó das Nhonhonha de Macau”, 1989; “Adivinhas Populares de Macau”, 1975; “Jogos, Brinquedos e outras Diversões de Macau”, 1972.
Seria muito importante, para a memória das gerações futuras, que fosse feito um roteiro biográfico e bibliográfico desse vulto cimeiro da macaulogia e da sinologia de matriz portuguesa que foi a professora Ana Maria Amaro. Vale a pena mencionar esta discreta faceta benemerente de Ana Maria Amaro. Após o falecimento do marido, Fernando Amaro, antigo professor de matemática no Liceu Gil Vicente, decide oferecer a sua valiosa biblioteca particular, constituída por milhares de volumes, com especial incidência sobre Macau, a China, o Oriente e África à Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, em Leiria, que justamente inaugurou a “Sala Fernando Amaro”, em 27 de Julho de 2013. Em arquivo ficaram importantes núcleos documentais [Liceu Infante D. Henrique; Liceu Central de Macau; Leal Senado; Consulado Geral de Portugal em Cantão; Comarca de Macau] susceptíveis de interessar aos investigadores de Macau. Um belo exemplo de amor à cultura, para louvar e imitar, se possível. Fernando Amaro também nos deixou alguns estudos sobre o Território, que nos cabe recordar: “Fundições e Fundidores Artilheiros Portugueses na Ásia e em África”, 1960; “História Militar de Macau”, 1961; “Achegas para a reconstituição histórica da fábrica jesuíta de São Paulo de Macau”, 1961. No termo dos “Filhos da Terra” Ana Maria Amaro colocou esta questão radical cujo sentido continua muito pertinente: “No final do século XX, que rumo seguirá a sociedade macaense e em que medida os macaenses conservarão os seus antigos padrões culturais hibridados?”. Parece que ainda é cedo para podermos responder.
Texto da autoria de António Aresta. Imagens seleccionados por JB com agradecimento a Rebeca Alves pelo fotografia dos tempos do liceu.
Texto da autoria de António Aresta. Imagens seleccionados por JB com agradecimento a Rebeca Alves pelo fotografia dos tempos do liceu.
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