Ana Maria Amaro é um nome incontornável entre os que se dedicaram a investigar a história de Macau e da China. Chegou em 1957 “com os restos do tufão ‘Glória’” e regressou a Portugal em 1972 mas nunca cortou a sua relação com o Território, “essa terra fascinante” onde iniciou a carreira docente. Hoje é Professora Catedrática Jubilada e presidente do Instituto Português de Sinologia. Nesta entrevista fala-se de tudo isto, de livros, dos que escreveu e dos que aguardam edição e recorda-se ainda a viagem a bordo do paquete “Índia” na já longínqua década de 1950 do século passado.
Entrevista de João Botas publicada no JTM a 8.1.2010
– Saudades de Macau?
Sim. Saudades que doem como de algo que ficou para trás irrepetível; do tempo feliz que vivi com o meu marido em Macau.
– Chegou em 1957. Como surgiu a oportunidade de rumar ao Território?
Casei-me em 1956 e acompanhei o meu marido que, como oficial miliciano, foi colocado em Macau.
- Foi amor à primeira vista?
Não, esse amor foi-se construindo à medida que fui conhecendo e compreendendo essa terra fascinante.
– Recorda-se da viagem a bordo do “Índia”?
Sim. Saudades que doem como de algo que ficou para trás irrepetível; do tempo feliz que vivi com o meu marido em Macau.
– Chegou em 1957. Como surgiu a oportunidade de rumar ao Território?
Casei-me em 1956 e acompanhei o meu marido que, como oficial miliciano, foi colocado em Macau.
- Foi amor à primeira vista?
Não, esse amor foi-se construindo à medida que fui conhecendo e compreendendo essa terra fascinante.
– Recorda-se da viagem a bordo do “Índia”?
A viagem a bordo do “Índia” durou cerca de um mês. Foi uma viagem inesquecível. O navio não tinha condições óptimas. Tinha sirocos que não conseguiam projectar ar fresco principalmente ao chegarmos ao Suez. Os camarotes ditos de 1ª classe eram desconfortáveis. Mas tudo fazia parte de uma grande aventura. Éramos novos e não fazíamos a mínima ideia do sítio para onde íamos nem como íamos nem talvez porque íamos. Calhou Macau na lista de colocações.
Quanto à viagem fomos pelo Suez. Passámos à vista da Ilha do Gozo e da Ilha de Malta. Chegámos por fim ao maravilhoso azul do Mediterrâneo Oriental. Saímos em Porto Said e inscrevemo-nos para uma excursão ao Cairo enquanto o “Índia” descia o Mar Vermelho. Foi difícil obter autorização para sair porque os passageiros eram todos militares com excepção do Reitor do Liceu de Goa que viajava com a mulher e dois filhos.
O Egipto estava num caos. Os ingleses tinham acabado de sair mas os resultados dos confrontos estavam à vista. A estátua do Lesseps estava no fundo do canal. Havia rolos de arame farpado, aquartelamentos vazios, sacos de areia pelos passeios e nos pequenos oásis que haviam sido casas de chá ou sítios de paragem naquela travessia de uma terra tão árida, meios destruídos e pilhados, restavam grades de Coca-Cola e de outros refrescos. Foi nessas grades que nos sentamos e foi aí, em Agosto de 1957 que provei pela primeira vez (e gostei) a famosa Coca-Cola do tio Sam. Tínhamos almoçado num restaurante de Porto Said. Serviram-nos bifes de camelo panados com um molho de paladar exótico mas muito saboroso. A carne de camelo é muito branca e houve quem tivesse tido a triste ou jocosa ideia de sugerir que eram bifes de inglês. A sobremesa era também uma delícia. Era tudo diferente, tudo novidade. A viagem entre Porto Said e o Cairo foi feita em bons automóveis que seguiam a mais de 100km à hora. Guiados por egípcios que ressumavam ódio aos ingleses. Os carros tinham rádio que emitia música egípcia cujo ritmo era acompanhado pelos batimentos das mãos dos motoristas no volante. Quando se passava por um aquartelamento abandonado o motorista que cantava e batia o compasso sobre o volante levantava as mãos como quem saudava Alá e gritava como um íman no Alto da Mesquita: “English finished”. (...)
Depois do Egipto desembarcámos em Aden, fomos ver a cidade velha. Foi também uma novidade, seguiu-se Mormogão e uma estadia cerca de uma semana em Goa. Vistamos Goa, fomos recebidos pelo reitor na sua residência e ofereceu-nos um caril delicioso. Por fim tentou convencer-me a ficar no liceu de Goa, uma vez que não ia contratada para o liceu de Macau. Goa estava em pé de guerra mas não se sentia hostilidade, gostamos muito e foi uma tentação a hipótese de ficar por lá. Na estrada que liga o porto de Mormogão a Bongmaló, onde havia um aquartelamento perto de uma praia maravilhosa encontramos na estrada o menino mais bonito que eu vi na minha vida, uns olhos lindos; um sorriso doce vinha cumprimentar-nos sempre que ali passávamos. Na pequena casa onde vivia havia um Tuloss que assinalava a sua residência hindu. A permanência em Goa daria muitas páginas de relato. Quando saímos de Mormogão rumámos a Singapura cidade que nessa altura também visitámos.
Finalmente foi Hong Kong onde chegámos na asa do tufão Glória. O porto estava fechado à entrada havia barcos naufragados sobre as rochas. Mas o nosso comandante entrou e no dia seguinte chegámos a Macau onde o “Índia” fundeou na rada. Foi de batelão que desembarcámos em Macau e no Porto Exterior não havia ninguém á nossa espera. Macau apresentava um aspecto assustador. Árvores arrancadas pela raiz, hortas alagadas, suínos mortos ao longo da estrada e tudo cinzento envolto em neblina.
– Nesse final da década de 1950, como era Macau?
Dizer como era Macau nos anos 50/60 do século XX daria um livro. São tantas as memórias, tantas as ocorrências e para mais ter que começar por fazer uma abordagem dos três grupos que se ombreavam em Macau: os “portugueses de Portugal” (que comi bem e págà mal) no dizer da terra, os “filhos da terra” e os chineses, uns muito ricos outros muito pobres refugiados de vários pontos da China que eu conheci nas hortas. Alguns apontamentos encontram-se no meu livro “Aguarelas de Macau: cenas de rua e histórias de vida” (Macau 1998) que não é ficcionado apenas tem os nomes das pessoas trocados.
– Só dois anos depois de chegar (1959) é que se estreou como professora no liceu...
Entrei no liceu em 1958 mas já a meio do ano lectivo como eventual. Só no ano seguinte é que surgiu uma vaga para a qual concorri e comecei a dar aulas. Foi uma experiência que não foi grande novidade porque tinha passado parte da minha vida a dar explicações e a dar aulas no colégio primário da minha mãe que tinha o Curso Superior de Piano por Londres (mas que abandonou a carreira quando casou). Os alunos macaenses eram alunos excepcionais. Nunca tive turmas tão boas como as que tive em Macau. Alguns desses alunos ainda são meus amigos. Ainda dei aulas no liceu velho no Tap Seac. A minha primeira aula foi com uma turma do quinto ano.
– Entretanto era inaugurado o novo edifício do Liceu na Praia Grande...
As instalações eram boas. Apenas era um liceu com menores dimensões do que os novos liceus de Lisboa.
– Quando e como começou o interesse pela História de Macau? Foi Macau que lhe fez despertar o gosto pela história da China?
A história de Macau assim como a história da China servem-me apenas de suporte à Etno-História que é aquilo que eu gosto de estudar. Aliás eu tenho duas licenciaturas: Biologia (Fitossistemática e Etnobotânica) e Antropologia Cultural e Social (civilizações orientais: China/Macau) que foi a área em que me apresentei em doutoramento na Universidade Nova. Eu tinha acabado o curso de Biologia e o curso de Ciências Pedagógicas em 1954. A seguir trabalhei na escola da minha mãe e sempre me interessei pelo Fitossistemática e pela Etnobotânica mas só em Macau é que tive tempo e motivação para investigar aquilo que não conhecia no desejo de perceber onde estava e não me sentir analfabeta e surda, isto é, não saber ler nem compreende o que os chineses escreviam e diziam.
– E os livros. Como começou?
Não escrevi muito livros. Artigos os mais diversos em revistas portuguesas e estrangeiras isso sim. Sinceramente não sei dizer quantos, o meu CV tem mais de 60 páginas e não está actualizado desde 2006. Como comecei? Comecei precisamente por um artigo no Boletim Eclesiástico da diocese de Macau onde comecei a publicar os resultados da minha investigação sobre o mundo verde de Macau. Sempre gostei de Fitossistemática tive um excelente professor, o professor Carlos Tavares director do Instituto Botânico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que me ajudou sempre que encontrei dúvidas na identificação daquelas plantas que povoavam Macau e que eu desconhecia. Servi-me de várias floras que existiam na biblioteca do liceu e das velhas lupas do laboratório de Ciências Naturais.
– Algum livro lhe merece especial destaque?
Merecem-me especial destaque os dois que estão inéditos à espera de Editor ou de apoios financeiros das Fundações interessadas em estudos sobre Macau/China. Um é sobre as hortas periféricas de Macau, foi o meu trabalho de licenciatura em Antropologia: “Prática Agrícola em Espaço Urbano, as Hortas de Macau”. Nesse livro eu apresento toda a técnica chinesa no aproveitamento dos aterros salgados a partir de adjuvantes naturais.
O segundo livro é a minha tese de Douramento sobre Medicina Popular de Macau, tem cerca de três mil páginas dactilografadas e a par de várias técnicas e “mezinhas” usadas pela população chinesa e luso-asiática, a recolha de cerca de 600 receitas quase completamente identificadas em relação a todos os seus componentes essencialmente vegetais. Sem orientador e apresentada só a partir da nota de licenciatura, teve a classificação máxima.
– Tem ainda um outro livro já pronto...
É a segunda parte do livro “Jogos, Brinquedos e outras Diversões de Macau” cuja primeira parte foi publicada em 1956 mas nos anos 80 já estava esgotada. Este segundo livro tem dois volumes e o primeiro deles está a ser impresso pago por mim. O segundo volume ficará muito dispendioso porque precisa de várias imagens a cores e eu não poso suportar por mim o resto da edição. Os outros dois estiveram no Instituto Cultural de Macau e chegaram a ser preparados para serem impressos mas passaram muitos anos desde que eu enviei os manuscritos acompanhados da disquetes. Quando se falou na transição de Macau para a China fui aconselhada por algumas pessoas entre elas um funcionário do ICM a pedir a devolução dos originais por livro tão dispendioso e não comerciáveis não seriam publicados, por isso, eu tenho os originais comigo mas as disquetes algumas perderam-se.
– No livro “Filhos da Terra” tem uma definição muito própria sobre o que é ser macaense... diferente da de outros, por exemplo, o Monsenhor Manuel Teixeira...
- Continuo a manter a minha definição de filho da terra como macaense baseada em dados antropológico e não meramente históricos, políticos ou sociais. Macaense é todo o natural de Macau por uma questão de jus soli. Contudo Macaense como etnónimo que substituiu a palavra macaísta ou maq’ista que se tornou depreciativa por “gozo” de alguns portugueses estranhos à terra. Estes macaenses são luso-descendentes com identidade cultural muito própria com tendência a esbater-se com o decorrer do tempo. Pessoalmente gostaria que a mantivessem.
– Concerteza viveu muitos momentos ‘marcantes’ em Macau...
Foram muitos mas posso talvez destacar dois. Pela negativa os Riots de 1966 (levantamento dos guardas vermelhos). Pela positiva, eu tinha realizado um estudo do Jardim de Lou Lim Yok que foi publicado num Boletim Luís de Camões no princípio dos anos 60. Fiz a proposta da sua recuperação porque estava condenado a ser destruído e substituído por prédios de vários andares. O processo de recuperação do Jardim foi moroso. Quando chegou a Macau o governador Nobre de Carvalho, conheci e tornei-me amiga da esposa D. Julieta. Levei-a a visitar o jardim que era, de facto, o meu “jardim de Alice”. A D. Julieta tem uma enorme sensibilidade artística e isso deve ter influenciado o Sr. Governador seu marido a interessar-se e a conseguir a recuperação do jardim. Poucos meses antes de nós regressarmos a Portugal nos fins de 1972 encontrava-me eu no templo de Mong Há (Kun Yam Tong) a estudar os baixos-relevos das mesas e dos nichos além dos dísticos das colunas quando entrou o Sr. Roque Choi e disse-me ao ver-me que o Jardim de Lou Lim Yok ia ser recuperado. Já estavam ultrapassadas todas as dificuldades. Para mim foi uma notícia muito gratificante. Pena foi que a recuperação não tivesse respeitado inteiramente a antiga traça.
- Que memórias guarda de Macau?
As memórias que guardo de Macau são muitas. Imensas. As mais marcantes constam do meu livro aguarelas de Macau. Muitas outras prefiro não falar nelas.
– Regressou a Portugal em 1972. Como era Macau nessa altura?
Macau em 1972 estava a começar a crescer. Esboçava-se a primeira ponte que ligou a Península à Ilha da Taipa. Aproximavam-se os anos 80 e a explosão do crescimento na vertical e a conquista dos aterros. De resto, do ponto de vista social, pouco diferia dos anos 60.
– Foi para Portugal mas sem cortar o cordão umbilical com Macau, se assim se pode dizer...
É certo. Vivi intensamente os anos em que residi em Macau entre a comunidade macaense dos filhos da terra e a comunidade chinesa. Impossível esquecer esse tempo.
– Como surge o Centro de Estudos Chineses do ISCSP?
O Centro de Estudos Chineses surge em 1999 na sequência do sucesso de 1º curso de Língua e Cultura Chinesas que criei através da Associação de Estudantes. Este curso de três anos foi estruturado à semelhança do que se ministrava na Universidade de Londres (SOAS). Tive o apoio do nosso Presidente do Conselho Directivo Professor Doutor Óscar Soares Barata, pessoa esclarecida, inteligente e que se apercebeu da importância de nos debruçarmos sobre a realidade chinesa. Este curso foi criado em 1996. Em 1999 o curso passou a ser integrado no ISCSP e coordenado pelo Centro de Estudos Chineses que também organizava anualmente uma Semana Cultural da China, publicava um livro com os trabalhos apresentados nesses congressos e, também, trabalhos de professores e alunos do Curso de Língua e Cultura Chinesa. Destes livros designados “Estudos sobre a China” foram publicados oito volumes alguns deles duplos.
– Em 2007 criou o Instituto Português de Sinologia...
Em 2006, quando o Professor Doutor Óscar Soares Barata se jubilou e o Conselho Directivo passou a ser presidido por outro Professor, o Centro de Estudos Chineses foi extinto e recusada a prossecução das suas actividades. Repetidas vezes pedi para ser esclarecida acerca dos motivos desta resolução. Nunca recebi resposta. Aliás, foi-me dito em conversa informal, que estas actividades não eram lucrativas. Foi assim, para não perder o trabalho de tantos anos, que criei com um grupo de estudiosos da História e da Cultura Chinesas, o Instituto Português de Sinologia. Sem interesses lucrativos, sem quotas porque não é uma associação (os membros são aceites por currículo mas não pagam nem quotas nem jóia). Vivemos dos apoios das Fundações sendo de citar a Fundação para a Ciência e Tecnologia, a Fundação Macau e a Fundação Jorge Álvares. Os nossos objectivos são, fundamentalmente, a divulgação da Língua e da Cultura Chinesas através de palestras, colóquios, exposições, workshops e a organização anual de fóruns internacionais cuja 5ª edição está prevista para Fevereiro/Março de 2010 (www.ipsinologia.com). Também publicamos a Revista Zhongguo Yanjiu (Revista de Estudos Chineses) cujos nº 4 e 5 estão no prelo. O IPS também dá apoio a investigadores portugueses e chineses que se dediquem a estudos sobre a China.
- Que relação mantém actualmente com Macau?
Tenho ainda alguns amigos em Macau com os quais me correspondo e mantenho relações cordiais. Tenho tido sempre o apoio generoso da Fundação Macau e do Instituto Internacional de Macau.
- Tem lá voltado?
Tive vários convites para ir a Macau. Mas não voltei. Agradeço sempre esses convites mas não voltarei a Macau porque quero manter a imagem do Macau que eu conheci e que me parece ter pouco ou nada que ver com Macau dos nossos dias.
- Como é que vai tendo conhecimento sobre o que lá se passa?
Através dos jornais. Recebo, regularmente, como oferta generosa que muito me penhora “O Clarim” e leio online tudo quanto consigo encontrar. Também tenho visto vídeos e pequenos documentários.
- Este ano assinala-se o 10º aniversário da transferência de soberania. Que balanço faz, ainda que há distância…
Pelo que ouço parece-me que Macau está a progredir. As pessoas estão felizes? Será que a proliferação dos casinos e do jogo como factor de progresso é progredir? Não acentua assimetrias?
- Acha que a realidade de Macau é suficientemente abordada na sociedade portuguesa? Como é que acha que Portugal vê Macau actualmente?
Acho que a realidade de Macau não é sequer conhecida na sociedade portuguesa e há muito poucas pessoas interessadas em conhecê-la. A maior parte das pessoas interessadas são macaenses ou antigos habitantes de Macau.
- Perspectivas sobre o futuro de Macau…
Penso que Macau vai continuar a prosperar sob o fulgor do néon dos casinos. Mas não acredito na continuidade da língua e da presença portuguesa a longo prazo.
- Numa frase ou numa palavra… o que é para si Macau?
Macau é uma recordação agridoce.
Quanto à viagem fomos pelo Suez. Passámos à vista da Ilha do Gozo e da Ilha de Malta. Chegámos por fim ao maravilhoso azul do Mediterrâneo Oriental. Saímos em Porto Said e inscrevemo-nos para uma excursão ao Cairo enquanto o “Índia” descia o Mar Vermelho. Foi difícil obter autorização para sair porque os passageiros eram todos militares com excepção do Reitor do Liceu de Goa que viajava com a mulher e dois filhos.
O Egipto estava num caos. Os ingleses tinham acabado de sair mas os resultados dos confrontos estavam à vista. A estátua do Lesseps estava no fundo do canal. Havia rolos de arame farpado, aquartelamentos vazios, sacos de areia pelos passeios e nos pequenos oásis que haviam sido casas de chá ou sítios de paragem naquela travessia de uma terra tão árida, meios destruídos e pilhados, restavam grades de Coca-Cola e de outros refrescos. Foi nessas grades que nos sentamos e foi aí, em Agosto de 1957 que provei pela primeira vez (e gostei) a famosa Coca-Cola do tio Sam. Tínhamos almoçado num restaurante de Porto Said. Serviram-nos bifes de camelo panados com um molho de paladar exótico mas muito saboroso. A carne de camelo é muito branca e houve quem tivesse tido a triste ou jocosa ideia de sugerir que eram bifes de inglês. A sobremesa era também uma delícia. Era tudo diferente, tudo novidade. A viagem entre Porto Said e o Cairo foi feita em bons automóveis que seguiam a mais de 100km à hora. Guiados por egípcios que ressumavam ódio aos ingleses. Os carros tinham rádio que emitia música egípcia cujo ritmo era acompanhado pelos batimentos das mãos dos motoristas no volante. Quando se passava por um aquartelamento abandonado o motorista que cantava e batia o compasso sobre o volante levantava as mãos como quem saudava Alá e gritava como um íman no Alto da Mesquita: “English finished”. (...)
Depois do Egipto desembarcámos em Aden, fomos ver a cidade velha. Foi também uma novidade, seguiu-se Mormogão e uma estadia cerca de uma semana em Goa. Vistamos Goa, fomos recebidos pelo reitor na sua residência e ofereceu-nos um caril delicioso. Por fim tentou convencer-me a ficar no liceu de Goa, uma vez que não ia contratada para o liceu de Macau. Goa estava em pé de guerra mas não se sentia hostilidade, gostamos muito e foi uma tentação a hipótese de ficar por lá. Na estrada que liga o porto de Mormogão a Bongmaló, onde havia um aquartelamento perto de uma praia maravilhosa encontramos na estrada o menino mais bonito que eu vi na minha vida, uns olhos lindos; um sorriso doce vinha cumprimentar-nos sempre que ali passávamos. Na pequena casa onde vivia havia um Tuloss que assinalava a sua residência hindu. A permanência em Goa daria muitas páginas de relato. Quando saímos de Mormogão rumámos a Singapura cidade que nessa altura também visitámos.
Finalmente foi Hong Kong onde chegámos na asa do tufão Glória. O porto estava fechado à entrada havia barcos naufragados sobre as rochas. Mas o nosso comandante entrou e no dia seguinte chegámos a Macau onde o “Índia” fundeou na rada. Foi de batelão que desembarcámos em Macau e no Porto Exterior não havia ninguém á nossa espera. Macau apresentava um aspecto assustador. Árvores arrancadas pela raiz, hortas alagadas, suínos mortos ao longo da estrada e tudo cinzento envolto em neblina.
– Nesse final da década de 1950, como era Macau?
Dizer como era Macau nos anos 50/60 do século XX daria um livro. São tantas as memórias, tantas as ocorrências e para mais ter que começar por fazer uma abordagem dos três grupos que se ombreavam em Macau: os “portugueses de Portugal” (que comi bem e págà mal) no dizer da terra, os “filhos da terra” e os chineses, uns muito ricos outros muito pobres refugiados de vários pontos da China que eu conheci nas hortas. Alguns apontamentos encontram-se no meu livro “Aguarelas de Macau: cenas de rua e histórias de vida” (Macau 1998) que não é ficcionado apenas tem os nomes das pessoas trocados.
– Só dois anos depois de chegar (1959) é que se estreou como professora no liceu...
Entrei no liceu em 1958 mas já a meio do ano lectivo como eventual. Só no ano seguinte é que surgiu uma vaga para a qual concorri e comecei a dar aulas. Foi uma experiência que não foi grande novidade porque tinha passado parte da minha vida a dar explicações e a dar aulas no colégio primário da minha mãe que tinha o Curso Superior de Piano por Londres (mas que abandonou a carreira quando casou). Os alunos macaenses eram alunos excepcionais. Nunca tive turmas tão boas como as que tive em Macau. Alguns desses alunos ainda são meus amigos. Ainda dei aulas no liceu velho no Tap Seac. A minha primeira aula foi com uma turma do quinto ano.
– Entretanto era inaugurado o novo edifício do Liceu na Praia Grande...
As instalações eram boas. Apenas era um liceu com menores dimensões do que os novos liceus de Lisboa.
– Quando e como começou o interesse pela História de Macau? Foi Macau que lhe fez despertar o gosto pela história da China?
A história de Macau assim como a história da China servem-me apenas de suporte à Etno-História que é aquilo que eu gosto de estudar. Aliás eu tenho duas licenciaturas: Biologia (Fitossistemática e Etnobotânica) e Antropologia Cultural e Social (civilizações orientais: China/Macau) que foi a área em que me apresentei em doutoramento na Universidade Nova. Eu tinha acabado o curso de Biologia e o curso de Ciências Pedagógicas em 1954. A seguir trabalhei na escola da minha mãe e sempre me interessei pelo Fitossistemática e pela Etnobotânica mas só em Macau é que tive tempo e motivação para investigar aquilo que não conhecia no desejo de perceber onde estava e não me sentir analfabeta e surda, isto é, não saber ler nem compreende o que os chineses escreviam e diziam.
– E os livros. Como começou?
Não escrevi muito livros. Artigos os mais diversos em revistas portuguesas e estrangeiras isso sim. Sinceramente não sei dizer quantos, o meu CV tem mais de 60 páginas e não está actualizado desde 2006. Como comecei? Comecei precisamente por um artigo no Boletim Eclesiástico da diocese de Macau onde comecei a publicar os resultados da minha investigação sobre o mundo verde de Macau. Sempre gostei de Fitossistemática tive um excelente professor, o professor Carlos Tavares director do Instituto Botânico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que me ajudou sempre que encontrei dúvidas na identificação daquelas plantas que povoavam Macau e que eu desconhecia. Servi-me de várias floras que existiam na biblioteca do liceu e das velhas lupas do laboratório de Ciências Naturais.
– Algum livro lhe merece especial destaque?
Merecem-me especial destaque os dois que estão inéditos à espera de Editor ou de apoios financeiros das Fundações interessadas em estudos sobre Macau/China. Um é sobre as hortas periféricas de Macau, foi o meu trabalho de licenciatura em Antropologia: “Prática Agrícola em Espaço Urbano, as Hortas de Macau”. Nesse livro eu apresento toda a técnica chinesa no aproveitamento dos aterros salgados a partir de adjuvantes naturais.
O segundo livro é a minha tese de Douramento sobre Medicina Popular de Macau, tem cerca de três mil páginas dactilografadas e a par de várias técnicas e “mezinhas” usadas pela população chinesa e luso-asiática, a recolha de cerca de 600 receitas quase completamente identificadas em relação a todos os seus componentes essencialmente vegetais. Sem orientador e apresentada só a partir da nota de licenciatura, teve a classificação máxima.
– Tem ainda um outro livro já pronto...
É a segunda parte do livro “Jogos, Brinquedos e outras Diversões de Macau” cuja primeira parte foi publicada em 1956 mas nos anos 80 já estava esgotada. Este segundo livro tem dois volumes e o primeiro deles está a ser impresso pago por mim. O segundo volume ficará muito dispendioso porque precisa de várias imagens a cores e eu não poso suportar por mim o resto da edição. Os outros dois estiveram no Instituto Cultural de Macau e chegaram a ser preparados para serem impressos mas passaram muitos anos desde que eu enviei os manuscritos acompanhados da disquetes. Quando se falou na transição de Macau para a China fui aconselhada por algumas pessoas entre elas um funcionário do ICM a pedir a devolução dos originais por livro tão dispendioso e não comerciáveis não seriam publicados, por isso, eu tenho os originais comigo mas as disquetes algumas perderam-se.
– No livro “Filhos da Terra” tem uma definição muito própria sobre o que é ser macaense... diferente da de outros, por exemplo, o Monsenhor Manuel Teixeira...
- Continuo a manter a minha definição de filho da terra como macaense baseada em dados antropológico e não meramente históricos, políticos ou sociais. Macaense é todo o natural de Macau por uma questão de jus soli. Contudo Macaense como etnónimo que substituiu a palavra macaísta ou maq’ista que se tornou depreciativa por “gozo” de alguns portugueses estranhos à terra. Estes macaenses são luso-descendentes com identidade cultural muito própria com tendência a esbater-se com o decorrer do tempo. Pessoalmente gostaria que a mantivessem.
– Concerteza viveu muitos momentos ‘marcantes’ em Macau...
Foram muitos mas posso talvez destacar dois. Pela negativa os Riots de 1966 (levantamento dos guardas vermelhos). Pela positiva, eu tinha realizado um estudo do Jardim de Lou Lim Yok que foi publicado num Boletim Luís de Camões no princípio dos anos 60. Fiz a proposta da sua recuperação porque estava condenado a ser destruído e substituído por prédios de vários andares. O processo de recuperação do Jardim foi moroso. Quando chegou a Macau o governador Nobre de Carvalho, conheci e tornei-me amiga da esposa D. Julieta. Levei-a a visitar o jardim que era, de facto, o meu “jardim de Alice”. A D. Julieta tem uma enorme sensibilidade artística e isso deve ter influenciado o Sr. Governador seu marido a interessar-se e a conseguir a recuperação do jardim. Poucos meses antes de nós regressarmos a Portugal nos fins de 1972 encontrava-me eu no templo de Mong Há (Kun Yam Tong) a estudar os baixos-relevos das mesas e dos nichos além dos dísticos das colunas quando entrou o Sr. Roque Choi e disse-me ao ver-me que o Jardim de Lou Lim Yok ia ser recuperado. Já estavam ultrapassadas todas as dificuldades. Para mim foi uma notícia muito gratificante. Pena foi que a recuperação não tivesse respeitado inteiramente a antiga traça.
- Que memórias guarda de Macau?
As memórias que guardo de Macau são muitas. Imensas. As mais marcantes constam do meu livro aguarelas de Macau. Muitas outras prefiro não falar nelas.
– Regressou a Portugal em 1972. Como era Macau nessa altura?
Macau em 1972 estava a começar a crescer. Esboçava-se a primeira ponte que ligou a Península à Ilha da Taipa. Aproximavam-se os anos 80 e a explosão do crescimento na vertical e a conquista dos aterros. De resto, do ponto de vista social, pouco diferia dos anos 60.
– Foi para Portugal mas sem cortar o cordão umbilical com Macau, se assim se pode dizer...
É certo. Vivi intensamente os anos em que residi em Macau entre a comunidade macaense dos filhos da terra e a comunidade chinesa. Impossível esquecer esse tempo.
– Como surge o Centro de Estudos Chineses do ISCSP?
O Centro de Estudos Chineses surge em 1999 na sequência do sucesso de 1º curso de Língua e Cultura Chinesas que criei através da Associação de Estudantes. Este curso de três anos foi estruturado à semelhança do que se ministrava na Universidade de Londres (SOAS). Tive o apoio do nosso Presidente do Conselho Directivo Professor Doutor Óscar Soares Barata, pessoa esclarecida, inteligente e que se apercebeu da importância de nos debruçarmos sobre a realidade chinesa. Este curso foi criado em 1996. Em 1999 o curso passou a ser integrado no ISCSP e coordenado pelo Centro de Estudos Chineses que também organizava anualmente uma Semana Cultural da China, publicava um livro com os trabalhos apresentados nesses congressos e, também, trabalhos de professores e alunos do Curso de Língua e Cultura Chinesa. Destes livros designados “Estudos sobre a China” foram publicados oito volumes alguns deles duplos.
– Em 2007 criou o Instituto Português de Sinologia...
Em 2006, quando o Professor Doutor Óscar Soares Barata se jubilou e o Conselho Directivo passou a ser presidido por outro Professor, o Centro de Estudos Chineses foi extinto e recusada a prossecução das suas actividades. Repetidas vezes pedi para ser esclarecida acerca dos motivos desta resolução. Nunca recebi resposta. Aliás, foi-me dito em conversa informal, que estas actividades não eram lucrativas. Foi assim, para não perder o trabalho de tantos anos, que criei com um grupo de estudiosos da História e da Cultura Chinesas, o Instituto Português de Sinologia. Sem interesses lucrativos, sem quotas porque não é uma associação (os membros são aceites por currículo mas não pagam nem quotas nem jóia). Vivemos dos apoios das Fundações sendo de citar a Fundação para a Ciência e Tecnologia, a Fundação Macau e a Fundação Jorge Álvares. Os nossos objectivos são, fundamentalmente, a divulgação da Língua e da Cultura Chinesas através de palestras, colóquios, exposições, workshops e a organização anual de fóruns internacionais cuja 5ª edição está prevista para Fevereiro/Março de 2010 (www.ipsinologia.com). Também publicamos a Revista Zhongguo Yanjiu (Revista de Estudos Chineses) cujos nº 4 e 5 estão no prelo. O IPS também dá apoio a investigadores portugueses e chineses que se dediquem a estudos sobre a China.
- Que relação mantém actualmente com Macau?
Tenho ainda alguns amigos em Macau com os quais me correspondo e mantenho relações cordiais. Tenho tido sempre o apoio generoso da Fundação Macau e do Instituto Internacional de Macau.
- Tem lá voltado?
Tive vários convites para ir a Macau. Mas não voltei. Agradeço sempre esses convites mas não voltarei a Macau porque quero manter a imagem do Macau que eu conheci e que me parece ter pouco ou nada que ver com Macau dos nossos dias.
- Como é que vai tendo conhecimento sobre o que lá se passa?
Através dos jornais. Recebo, regularmente, como oferta generosa que muito me penhora “O Clarim” e leio online tudo quanto consigo encontrar. Também tenho visto vídeos e pequenos documentários.
- Este ano assinala-se o 10º aniversário da transferência de soberania. Que balanço faz, ainda que há distância…
Pelo que ouço parece-me que Macau está a progredir. As pessoas estão felizes? Será que a proliferação dos casinos e do jogo como factor de progresso é progredir? Não acentua assimetrias?
- Acha que a realidade de Macau é suficientemente abordada na sociedade portuguesa? Como é que acha que Portugal vê Macau actualmente?
Acho que a realidade de Macau não é sequer conhecida na sociedade portuguesa e há muito poucas pessoas interessadas em conhecê-la. A maior parte das pessoas interessadas são macaenses ou antigos habitantes de Macau.
- Perspectivas sobre o futuro de Macau…
Penso que Macau vai continuar a prosperar sob o fulgor do néon dos casinos. Mas não acredito na continuidade da língua e da presença portuguesa a longo prazo.
- Numa frase ou numa palavra… o que é para si Macau?
Macau é uma recordação agridoce.
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