(...) Apesar da política de tolerância do governo português para com os revolucionários chineses a administração colonial permanecia tanto atenta quanto podia aos seus movimentos e actuava mesmo quando as suas acções ultrapassavam os limites considerados aceitáveis de modo a não porem em risco as relações entre Portugal e a China. Encarregava-se da vigilância do mundo chinês a Repartição dos Assuntos Sínicos (RAS), um departamento administrativo do governo que podia considerar-se como uma espécie de serviços secretos de Macau. Dotada de um quadro de agentes chineses e de intérpretes tradutores a RAS complementava os serviços de polícia, os quais mantinham também uma secção de investigação, permanecendo, tanto quanto podia, atenta essencialmente aos fenómenos políticos internos que iam desde a censura aos jornais teatros e cinemas até ao controlo dos comícios e de figuras suspeitas de actividades subversivas.
A RAS era directamente tutelada pelo próprio governador que decidia sempre em última instância, sobre os processos em curso. Na sua actividade de manutenção da estabilidade e dos instáveis equilíbrios que se verificavam no seio da comunidade chinesa, tendo sempre em atenção a vizinha e poderosa China a RAS confrontava-se com um volume demasiado grande de serviço burocrático acabando por despender grande parte dos seus esforços no domínio da tradução de documentos, licenciamentos e fiscalizações rotineiras. Restava-lhe, assim, pouco tempo para um efectivo controlo político da comunidade chinesa.
A situação manteve-se todavia sob relativo controlo até ao final do século XIX momento em que a agitação revolucionária se incrementou com a decidida ascensão dos republicanos de Sun Yat-sen no seio do movimento revolucionário chinês e o consequente isolamento dos reformistas cujas teses perdiam terreno à medida que a irredutibilidade do governo central de Pequim se acentuava rejeitando quaisquer veleidades constitucionais. O corte radical entre reformistas e republicanos seria selado em 1900, na sequência da segunda tentativa de Sun Yat-sen para derrubar o governo de Cantão e proclamar a independência das províncias gémeas de Guangdong e Guanxi.
A tentativa revolucionária de Sun Yat-sen, no Veräo de 1900 mais uma vez contou com o apoio da Tríade que se dividia por quantos bandos de piratas cruzavam o rio das Pérolas, muitos dos quais mantinham os seus quartéis generais em Macau. Através de Macau passavam também as espingardas e munições que armavam esses grupos cujo número chegava a ser de 200 a 300 homens em pequenas armadas que assolavam a província de Guangdong. A suspeita levantada já em Macau em Maio de 1896 de que tais “quadrilhas armadas se poderiam combinar sob um chefe forte para derrubar o governo” confirmava-se três anos depois quando, Sun decide reactivar a sua organização revolucionária em Hong Kong e Macau empenhando-a na arregimentarão desses bandos para uma operação semelhante a insurreição fracassada de 1895.
Encarregou-se do recrutamento dos insurrectos Cheng Shi-liang que estabeleceu quartel general em San Chou-tien, uma ilha conhecida por ser abrigo de piratas, situada no rio das Pérolas a cerca de dez quilómetros da costa chinesa e a menos de 20 da fronteira dos Novos Territórios de Hong Kong. A revolta aproveitava o estado de confusão reinante no país pelo pronunciamento dos Boxers no norte, que tinha lançado a China no caos e servido os apetites colonialistas das potências ocidentais que ameaçavam dividir o velho continente em várias esferas de influencia desintegrando o trono. As hesitações de Sun Yat-sen que chegou a considerar, juntamente com o governador de Cantão, Li Hung-chang, a hipótese de proclamar a independência das províncias do sul, levaram a que as movimentações dos rebeldes em San Chou-t’ien chegassem ao conhecimento das autoridades imperiais o que fez com que o exército improvisado de Cheng Shi-liang fosse obrigado a pronunciar-se marchando sobre a capital distrital. ali, num confronto com um destacamento imperial, obteve uma decisiva vitória que lhe permitiu ganhar aderentes e continuar em direcção a Cantão objectivo designado pelo próprio Sun Yat-sen.
Esse exército cresceu rapidamente para cerca de dez mil homens, conquistando as vilas e aldeias que se interpunham no percurso em direcção à capital provincial. Quando se encontravam porém a pouca distância das muralhas de Cantão receberam ordens de Sun Yat-sen para alterarem os planos e marcharem para norte com o objectivo de capturar Amoy. A razão para tal alteração prendia-se com o facto de o Japão ter prometido assegurar apoio militar aos revoltosos se estes dirigissem os seus esforços contra a capital fuquinense onde os japoneses se pretendiam instalar também a partir das suas bases em Taiwan. As forças revoltosas foram então reagrupadas marchando com destino ao novo objectivo a 17 de Outubro. Logo no dia 20 porém confrontavam-se com um batalhão do exército imperial comandado pelo capitão Wu Hsiang-ta que lhes infligia a primeira e fatal derrota. Três dias depois Sun Yat-sen que se encontrava em Taiwan informava Cheng Shi-liang de que afinal não poderia contar com qualquer auxílio japonês. Ciente então da inutilidade dos seus esforços Cheng decidiu finalmente desmobilizar as tropas e pôr termo à insurreição que durara duas semanas e meia. Desta vez os acontecimento de Guangdong reflectiram-se no entanto com mais intensidade em Macau onde chegavam várias famílias de refugiados. A população civil chegou mesmo a ser armada enquanto a guarnição militar era reforçada por destacamentos vindos da metrópole. A defesa marítima intensificava-se também com a chegada do Cruzador Adamastor.
O clima de tensão explodiu em Julho de 1900 com um incidente nas Portas do Cerco que provocou viva troca de tiros entre as guarnições portuguesa e chinesa através da fronteira durante dois dias consecutivo. Apesar dos confrontos não se registaram movimentações de tropas de qualquer dos lados e a vida continuou por isso a decorrer com alguma normalidade na cidade que rapidamente voltaria ao sossego absoluto.
O regresso da paz, permitiu ao governador Horta e Costa, que havia chegado no Cruzador da Armada Portuguesa reassumir o posto que tinha ocupado já anteriormente (1894/1896) e dedicar-se às tarefas administrativas internas mais urgentes: urbanização nova da cidade, saneamento básico e erradicação das epidemias cíclicas que afectavam o pequeno território. A insurreição do Verão de 1900 teve no entanto importantes repercussões. Nos anos seguintes, o governo de Guangdong enveredaria pelo caminho das reformas seguindo as orientações de Pequim o que provocou uma cismo inelutável entre os reformistas de Kang Iu-vai que se passavam declaradamente para o campo da dinastia Ching (a qual na prática abraçava as suas propostas reformistas) e as correntes anti- manchu entre as quais se contavam os correligionários de Sun Yat-sen, então ainda um nacionalista indeciso e os republicanos. Em Macau, os reformistas mantiveram ainda por algum tempo uma certa influência que no entanto se foi desvanecendo. (...)
Excerto de um artigo da autoria de João Guedes publicado na Revista de Cultura (ICM)
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