José da Costa Nunes (1880-1976), açoriano de Calendária do Pico, foi um dos mais ilustres portugueses que jornadearam e trabalharam no Oriente e no Extremo Oriente. Veio para o Território em 1902, ainda estudante finalista do Seminário de Angra, na qualidade de Secretário do recém-nomeado Bispo de Macau, D. João Paulino de Azevedo e Castro, ele próprio açoriano. Ordenado sacerdote em 1903, logo integra como missionário o Padroado Português do Oriente.
É professor no Seminário de S. José e no Liceu de Macau. Muito mais tarde recordará que do “Seminário de S. José saíram gerações de sacerdotes que tanto se distinguiram pelas suas virtudes e pelos serviços prestados à Igreja. Mais. Foi o Seminário-Colégio de S. José que deu a Macau, a Hong Kong, a Xangai, a Cantão e a vários portos da China, abertos ao comércio estrangeiro, levas de macaenses que, pela sua boa preparação comercial, os seus conhecimentos e os seus arraigados sentimentos religiosos, grande lustre deram à Casa que os educou”. Este reconhecimento é justo e não deve ser esquecido.
Um antigo aluno do Liceu, Joaquim Paço d’Arcos, lembra o padre Costa Nunes então professor de Português, nas “Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo”, como um “homem de alto nível intelectual e moral”, dotado de uma “voz quente e persuasiva; era muito claro e lúcido na exposição; ensinava com bondade e grande interesse. Seria ele quem, primeiro de todos, notaria nos meus exercícios de redacção a facilidade e jeito da minha escrita e me traçaria, com segurança profética, o destino de escritor”.
Em 1911 foi incumbido de visitar as Missões dos Estreitos, Malaca e Singapura, e a de Timor. Eram tempos conturbados porque o regime republicano mostrou-se assaz intolerante em relação à Igreja. Em Macau, essa radicalização ideológica era sobretudo protagonizada pelos marinheiros que vinham nos navios da marinha de guerra portugueses. Eram conflitos de torna viagem. José da Costa Nunes impediu, por uma vez, sozinho, a invasão do Paço Episcopal, num lance de temeridade e de valentia.
Fundou a Revista Oriente, em 1915, uma publicação efémera que terminou ao fim de uma dúzia de números. Após o falecimento de D. João Paulino de Azevedo e Castro é nomeado Bispo de Macau e Timor (1920-1940).
Faz uma visita pastoral a Timor em 1937 e reporta ao ministro das Colónias a sua visão cristã e humanista sobre a missão educativa portuguesa: “eu entendo que toda a nossa actividade colonizadora e educativa deve reverter em benefício directo do indígena e não em benefício do branco”. Continua a desenvolver a ideia: “conheço colónias, que se dizem muito desenvolvidas, muito progressivas, muito ricas. São-no, de facto. Mas as riquezas estão nas mãos dalguns europeus, ao passo que a população nativa vegeta no mesmo desconforto e ignorância dos tempos primitivos. Isto não é colonizar; é explorar. E mal vai às nações coloniais, que marcham num tal caminho, numa época, como a que estamos vivendo hoje”. Via na educação um verdadeiro motor do desenvolvimento da sociedade: “as nossas escolas, em número de 46, são frequentadas por 2424 alunos e tendem a desenvolver-se num ritmo que poderia classificar-se de acelerado, caso dispuséssemos de mais pessoal ensinante e mais meios pecuniários”.
O Padre Manuel Teixeira publicará um número especial do ‘Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau’, Nº 406, de Janeiro de 1938, do qual era director e editor, dedicado a essa visita pastoral a Timor. É um impressivo testemunho de tudo quanto se fez, incluindo um precioso registo fotográfico. Uma parte significativa de toda essa obra será destruída pelos japoneses na segunda guerra mundial, quando invadiram Timor.
As preocupações com a educação e com as escolas acompanham-no sempre. Basta mencionar que quando saiu da Diocese de Macau, em 1940, o número de escolas era de 96 (em 1920 existiam 47) e os professores eram 331 (em 1920 eram apenas 124).
A sua carreira eclesiástica será invulgarmente vertiginosa porque D. José da Costa Nunes foi de facto um homem de raras qualidades humanas, pastorais, intelectuais e cívicas.
É nomeado Arcebispo Metropolitano de Goa e Damão (1940-1953), Primaz do Oriente e Patriarca das Índias Orientais (1940) e Arcebispo titular de Cranganor (1940). Foi para Roma com o título de Arcebispo titular de Odessa e Vice-Camerlengo da Santa Sé. O Papa João XXIII fê-lo Cardeal em 1962.
Todos estes cargos, adornados de pompa e brilho é certo, pouco mexeram com a sua maneira de ser, com o seu patriotismo e com a fraternidade cristã de que deu sobejas provas ao longo da sua vida. Dizia que se “quisermos ser grandes, façamo-nos pequenos, confessemos a nossa total dependência do poder absoluto de Deus e reconheçamos que, sem Ele, nada somos, nada podemos e nada conseguimos”.
Em 1964 é-lhe atribuída a distinção de Cidadão Benemérito de Macau, por iniciativa do Leal Senado de Macau. Recebeu a Grã-Cruz do Império Colonial em 1946 e a Grã-Cruz da Ordem de Cristo em 1953.
A pensar na cisão violenta mas inexorável do Império, que começou exactamente na Índia, dirigiu uma mensagem, em 1967, aos portugueses de Goa, Damão e Diu, incutindo-lhes uma dose suplementar de patriotismo e assegurando que a espiritualidade cristã e as raízes telúricas estão sempre onde há portugueses: “quem viaja pelo Oriente tropeça a cada passo com recordações do Velho Portugal, na sua maioria marcadas de cunho religioso. Se as fortalezas de Goa, Damão, Diu, Malaca, Japara, Macáçar e tantas outras falam da heroicidade da gente lusa, mais falam do nosso espírito cristão as igrejas que por lá erguemos; mais acentuam a nota religiosa os descendentes das numerosas cristandades que semeamos pela Índia e Ceilão, pela Birmânia e a Malásia, pela Tailândia e o Camboja, a China e o Japão, as Celebes e as Molucas, as incontáveis ilhas da Pequena Sonda e outras terras da chamada Índia Meridional”.
É o patrono do “Jardim Infantil D. José da Costa Nunes”, desde 1945, em Macau e nos Açores, na Ilha do Pico, da Escola Básica e Secundária da Madalena. Em vida, já tinha doado a sua casa de família, na Calendária, para nela ser instalada uma Escola Infantil e uma obra de assistência. Esquecida tinha ficado a sua obra doutrinária, a obra ética e moral, a obra pastoral, histórica e apostólica, avultando entre elas as “Cartas aos Sacerdotes da Arquidiocese de Goa”, publicadas em 1947. D. José da Costa Nunes foi um prosador de fôlego, um pedagogo esclarecido e um pensador da existência e da acção humana.
A sabedoria adquirida ao longo da sua mundivivência intercontinental pode ser uma fonte de estudo e de ensinamentos e também uma fonte de inspiração para uma moral kantiana do dever. Surge a figura providencial do Padre Tomás Bettencourt Cardoso, que se ocupa da edição dos Textos do Cardeal Costa Nunes, isto é, da Obra Completa, que se alargou em 17 volumes, a saber: Estudante/Jornalista; Escritos; Cartas da China; Documentos Oficiais; Pastorais; Conferências; Viagens; Crónicas; Entre Chineses e Entre Malaios; Cartas ao Padre Ernesto Ferreira; Documentação Oficial; Magistério do Patriarca; Cartas aos Sacerdotes da Arquidiocese de Goa; Cartas aos Jovens Goeses; Cartas aos Católicos de Goa; Cartas de Roma; Últimos Escritos. Faltou apenas uma Fotobiografia. A benemérita Fundação Macau foi a editora deste grande empreendimento cultural.
O Padre Tomás Cardoso idealizou o projecto dos Missionários Açorianos em Macau, “cozinhado nos começos de 1994 e submetido, oportunamente, aos Bispos de Macau e de Angra, ao Governador de Macau, ao Secretário-Adjunto para a Administração, Educação e Juventude e ao Presidente da Fundação Macau – não teríamos ficado tão longo tempo no Oriente, onde chegamos a 30 de Dezembro de 1989, sem nunca ter deixado de dar o nosso possível contributo pastoral à Igreja, nesta Diocese, em especial, ao serviço dos Portugueses na Taipa e Coloane”.
Ao seu labor devemos as reedições ou edições facsimiladas das obras de D. João Paulino de Azevedo e Castro, Padre José Maria Fernandes, D. José Alvernaz, D. Jaime Goulart e D. Arquimínio Rodrigues da Costa. Jorge Rangel publicou um importante estudo, “D. José da Costa Nunes, Cidadão Benemérito de Macau”, sob a chancela do Instituto Internacional de Macau, em 2008, e dele retiro, com a devida vénia, o excerto de um artigo do professor Vitorino Nemésio, originariamente publicado no dia 15 de Novembro de 1955, no ‘Diário Insular’, de Angra do Heroísmo: “A nós outros, que não temos nenhumas das respeitáveis inibições de situação e de cargo que nos limitariam à atitude protocolar e arquimedida diante de um prócere nacional e príncipe da Igreja, o que nos move e comove, ao falar do Senhor D. José da Costa Nunes, é o padre exemplar, o amigo longânime, o português de têmpera e, de tanta sacralidade e honraria, poder ficar chão e indulgente como quem nasceu e é. Interessa-nos o chefe espiritual que pôde, num homem de acção chamado a altos destinos, conservar a cordura da gente da ilha do Pico, o seu espírito de modéstia, de justiça e de valentia, a sua patriarcalidade nativa, generosa e robusta: o homem dos doze quilómetros a pé pelos trilhos asiáticos e europeus, tão diários como a missa matinal, o vigilante de colégios, descobridor de vocações, tutor de meninos órfãos – e, por cima de tudo isto, homem do mundo sem o deixar de ser de Deus”.
Palavras sábias e verdadeiras. Monsenhor Manuel Teixeira, admirador confesso da vida e obra de D. José da Costa Nunes, aponta uma falha que reputa de imperdoável: não ter escrito as suas Memórias! Tinha carradas de razão. Faleceu aos 96 anos de idade em Roma, a Cidade Eterna.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 3-3-2011
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