No séc. XIX o Governador e Capitão-Geral do Território dependia do Vice-Rei de Goa e superintendia um Senado que, por sua vez, deveria executar a gestão pública e apresentar contas àquele representante real. No entanto, iremos ver que esta cadeia hierárquica, por vezes, é apenas aparente ou mesmo claramente quebrada. Com a pretensão da «real governação» em que o Governador venha a ter uma cada vez maior acção sobre o Senado, nem sempre ele é da confiança do Vice-Rei e mesmo a sua nomeação e a de outros altos funcionários escapam-se-lhe e só as assume por recurso. Exemplos flagrantes serão as nomeações e substituições tanto de Bernardo Aleixo de Lemos e Faria e Lucas José de Alvarenga, como da recondução, em 1811, do Ouvidor Arriaga.
Na verdade, pressente-se uma luta surda, principalmente no tempo do Conde de Sarzedas, entre este Vice-Rei e a Corte no Rio de Janeiro. O próprio estatuto de Macau favorece estes desencontros. Terra longínqua, incrustada num mundo de velhos mitos e informações fantasiosas, de tradicional má imagem na Corte como se vê nas Provisões Régias de D. Maria, de 1783, assinadas por Martinho de Melo e Castro e muito acenadas por Lucas Alvarenga, enviava, ao mesmo tempo, chorudos empréstimos dos negociantes macaenses a uma Coroa falida, que viriam a ser pagos em comendas e outros títulos.
1808 map of Macao, Canton, Lantau and parts of Hong Kong by Chretien-Louis-Joseph de Guignes |
A situação não de colónia assumida mas, de administração dúbia com as autoridades chinesas e com a existência de um Senado poderoso que, até finais do séc. XVIII deixava apenas para o Governador as atribuições de Capitão-Geral das tropas, tudo isto seria permitido a troco da inexistência de prejuízos que atingissem gravosamente o tesouro real mas, criava obviamente, situações equívocas no que respeita ao escalonamento dos poderes. O Senado não só se assumia como o verdadeiro poder da cidade, em diversos acordos que estabelecia com os mandarins e o Vice-Rei (Suntó) de Cantão, como preferia manter correspondência directa com a Corte, situação que não deveria desagradar ao governo central porque as rivalidades e desconfianças em relação a Goa não deveriam escassear e dai a manutenção dessa linha directa com Macau.
1844 |
Mapa levantamento hidrográfico de 1804 |
Nas suas relações com a China, isto é, com o Suntó de Cantão, representante do Imperador e com os mandarins, seus representantes aqui em Macau com diversas jurisdições autónomas, como já se disse, a situação caracterizava-se por um equilíbrio instável. Datam apenas de 1784 as preocupações oficiais portuguesas em comprovar a legítima posse do território2. Tanto antes como depois, no entanto, a corrente oficial chinesa era a da usurpação inicial tendo-se permitido aos portugueses, graças a posteriores acordos temporários, irem-se fixando, apenas, para fins comerciais e em condições bem específicas.
Era complexo o protocolo com as autoridades do Império do Meio, não só pela necessidade permanente de uma política de apaziguamento com os mandarins de diferentes graus instalados na periferia da cidadela portuguesa, como principalmente, com o da Casa Branca, em Mong Ha, delegado local do Governador da Província de Cantão. As interferências na política da cidade eram permanentes. Tendo já sido criada, em 1688, uma alfândega chinesa em Macau, em 1736 com a criação do referido mandarinato especial de Mong Ha estabeleceram-se ali, quase, as atribuições de governador.
Por outro lado, as provisões de 1783 passaram a obrigar que qualquer homicida, em Macau, fosse julgado por tribunal português, proibindo assim que caísse na alçada da lei chinesa. De qualquer dos modos, o tribunal chinês de Tso-Tang continuava com uma vasta jurisdição. Intervinha no estacionamento de estrangeiros na cidade, nas rixas públicas, no controlo e aplicação de tarifas a qualquer barco de comércio que lançasse ferros na rada e ainda no contencioso protocolar que se verificasse com os súbditos imperiais. Ficando o Senado com o restante poder, Macau tornou-se numa «pequena república urbana», de governação mista, tendo-se logo verificado em 1738 as primeiras e infrutíferas tentativas régias para controlo da administração municipal. No entanto, nem mesmo as reformas pombalinas de 1774 tiveram êxito, de que as queixas dirigidas por moradores ao Rei, em 1810, são disso um bom exemplo.
Em relação às mais poderosas potências europeias, Macau enfrentava, igualmente, grandes problemas. Tendo os portugueses, desde o séc. XVI, a primazia do estacionamento para comércio nestas paragens, Macau era, desde há muito, alvo da cobiça de holandeses, franceses e ingleses. Passando por diversas atribulações, à passagem do séc. XVIII para o séc. XIX encontra-se, mais uma vez, numa situação de difícil diplomacia e novamente verificamos um posicionamento tripartido com o grande império vizinho, entre acordos ora mais ora menos claros, com os estrangeiros, entre a hostilidade ou o aproveitamento para negócios, com Goa e a Corte entre a expectativa ou a recusa de apoio, conforme a necessidade de defesa ou a conveniência de autonomia.
Das várias imposições restritivas do comércio dos estrangeiros com a China, ressaltava o impedimento de residência em Cantão. É assim que vários se procuram estabelecer em Macau ou mesmo ganhar a cidadania portuguesa, enquanto os influentes junto ao Senado de Macau, adoptam uma atitude tolerante e conveniente dando permissão de residência a alguns, fazendo mesmo sociedades mas, face à intromissão chinesa que mesmo nesta cidade apenas permitia a estadia até à concretização do negócio, aqueles surgiam, oficialmente, como empregados dos mercadores portugueses. Àquela data, Macau era um ponto estratégico vital para o comércio asiático. Daí a velha Aliança luso-britânica se tornar uma lâmina de dois gumes para a Nação menos poderosa, Portugal. Com o pretexto de ajuda ou protecção, vinha de longa data o nosso saldo negativo como potência imperial face à Inglaterra. A propósito das já faladas pretensões franco-espanholas à Coroa portuguesa, em 1802 há uma efectiva ameaça de ocupação britânica em Macau a que só uma providencial notícia da paz de Amiens, vem pôr cobro. O caso voltar-se-á a repetir em 1808, como veremos, com a protecção inglesa a Portugal quando das invasões napoleónicas. Na verdade, este país, sem meios e sem homens suficientes para formar um exército capaz na Metrópole, muito menos o conseguiria nas colónias.
A organização militar e alguns aspectos demográficos
Em Macau, subsistiam as milícias temporárias ou o recurso às tropas mistas de Goa, onde também muita falta fariam. Já em 1744 o Governador Manuel Pereira Coutinho fizera, por mandado do Vice-Rei, um relatório do estado calamitoso da situação militar8. Esta situação manter-se-ia conforme se pode ver pelos mapas apresentados ao longo dos livros de correspondência do Leal Senado, depositados no Arquivo Histórico de Macau e só a partir de 1810 começarão a chegar de Goa tropas e remessas regulares de armamento.
O comando das forças de defesa pertencia ao Capitão-Geral e Governador mas, a polícia cabia à jurisdição do Senado e mesmo em relação às demais forças nem sempre era muito claro a quem deviam disciplina. No caso das forças marítimas, tendo patentes militares nos comandos dos barcos, era frequente estes prestarem-se a fretes comerciais, muitas vezes aos próprios vereadores. Para além das tropas fixas, a população não deveria diferir muito do que constava, em 1821, numa Representação a D. João VI9. Como primeiro dado a reter, temos o pequeno número de população de ascendência portuguesa, por outro lado não nos são referidos os estrangeiros aqui residentes. Porque não podiam ocorrer em dados oficiais? Talvez. Mas, já vimos, que os que pretendiam negociar em Cantão, geralmente, procuravam aqui acolher-se.
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