Excertos de “Macau – Da Cidade Antiga à Arquitectura Recente”, artigo publicado na revista
“Arquitectura Portuguesa”, Lisboa, 1987-88. Da autoria de José Manuel Fernandes, catedrático de História da Arquitectura e do
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de
Lisboa
“Macau possui no seu tecido urbano, ainda hoje bem visível uma
estrutura urbana provecta, de origem quinhentista, tão consolidada como
preciosa, que traduz bem este tipo de malha urbana, que referimos e que
se procurou caracterizar como o da ‘Cidade de Matriz Portuguesa da
Expansão Marítima’, ou o ‘Modelo da Cidade Lusa no Mundo’ – malha
orgânica, regrada, estruturante e orientadora, mas de feição adaptativa e
irregular, que, implantada em Macau, é de tipo análogo à que no Recife
se procurou reerguer após os meados de Seiscentos. Essa estrutura
constitui como que um longo ‘cordão’, disposto no sentido
sudoeste-nordeste, articulando as duas colinas principais e fortificadas
(a da Barra–Penha à do Monte), enquadrada por elas, e tendo de permeio a
curvilínea baía da Praia Grande, as silhuetas dos dois Nam Van Lakes souberam reinventar e
visualmente preservar).”
“Descendo, sentimos que a norte as ruas vão ‘escorregando’ para
esse lado chinês (é a Rua do Quebra-Costas, por exemplo, que lá nos pode
levar), enquanto para sul são o colonial Hotel Bela Vista, actual
consulado português, e a romanticamente arborizada Avenida da Praia
Grande que nos atraem a atenção. Decidimo-nos pelo meio, seguindo esse
cordão umbilical que, entre vários nomes, denuncia o jeito que tem para
ser rua direita, e desembocamos no Largo de Li-Lau, encantadora mistura
de árvores, pórticos de arruinadas casas chinesas e pequenos almoços de
chá e torradas ao ar livre e refrescante da manhã. Caminhando pela Rua Padre António, chega-se ao quarteirão formado
pela Igreja de São Lourenço, onde uma primeira bifurcação importante nos
fará optar ou pela Rua da Alfândega (resíduo toponímico da antiga área
de desembarque e inspecção das mercadorias, quando a linha de costa ali
chegava?), ou pela rua que, passando a Imprensa Nacional, derivava por
sua vez para São Domingos e para a Sé…
Entre as ruas de Inácio Baptista e de S. José, em frente à entrada
para a igreja do Seminário, uma velha casa de dois pisos (…) – hoje
provavelmente demolida – evoca claramente o solar urbano de raiz
portuguesa – com o pormenor precioso dos vãos superiores possuírem ainda
as lâminas feitas de conchas marinhas (que na Índia se chamam
‘karepas’, substâncias translúcidas que substituem o vidro nos caixilhos
– e atestam a provável influência da arquitectura goesa nesta minúscula
península) (…) o grandioso – embora desfigurado – conjunto
arquitectónico do velho Colégio Jesuíta, cujo espaço conventual (…)
integra igreja, zonas escolares, jardins e claustros (…) é ainda o maior
conjunto de arquitectura religiosa existente em Macau, cuja
centralidade e extensão em relação à malha urbana da cidade antiga
atesta a importância tida noutros tempos.
Pelas ruelas à nossa direita vão-se adivinhando as árvores da
Avenida da Praia Grande, quando de repente iniciamos a subida da Calçada
do Teatro (um romântico edifício que titula, bem a propósito, ‘de D.
Pedro V’ e chegamos à Igreja de Santo Agostinho. A maior parte dos
templos cristãos de Macau são como este: impecavelmente limpo, pintado e
cuidado, se por um lado atesta na fachada os vestígios da sua fundação
quinhentista ou seiscentista, por outro foi amplamente remodelado com
gostos ecléticos (e com uma originalidade aparentemente muito
‘oriental’) desde Setecentos…
Agora, descendo pela Calçada do Tronco Velho, é no Largo do Leal
Senado que desembocamos; ou, voltando à Rua Central, e atravessando o
‘corte’ moderno introduzido pela Rua-Avenida Almeida Ribeiro,
atingiremos a Sé (a mais descaracterizada de todas as igrejas
macaenses). Continuando por aqui, chegaremos ao ponto extremo nascente
da baía (com a antiga linha de costa), onde se implantam os ‘restos’ da
instalação franciscana que, como é da praxe, está o mais afastada
possível dos Jesuítas e do bulício urbano (hoje rodeada por um gracioso
jardim – e vem à memória idêntico destino, do edifício franciscano no
Funchal) (…).
O Largo do Leal Senado é, talvez, actualmente o espaço urbano com
mais carácter e vivência, de entre todos os pertencentes à ‘cidade
velha’. Tradicionalmente constituía o pólo civil e administrativo da
urbe, por oposição à zona atrás referida (São
Lourenço/Colégio/Agostinhos) e à que se lhe segue, no percurso que
escolhemos (São Domingos e São Paulo), ambas com eminente sentido
religioso.
A Misericórdia e a Câmara, até 1999 designada por ‘Leal Senado’,
actual ‘Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais’, são os seus
dois elementos arquitectónicos principais, que dão o sentido funcional à
praça, situada além disso no âmago da estrutura linear que descrevemos,
o que aumenta ainda mais o seu significado. Os edifícios de
acompanhamento, com características arcadas em três pisos, pintados em
cores vivas, evocam indiscutivelmente o prédio do município de Margão,
no território goês: essa analogia não será possivelmente obra do acaso,
mas sim das relações entre Obras Públicas, serviço do Estado português, e
seus autores, no quadro dos contactos Goa – Macau na transição do
século XIX para o XX.
Outra força deste largo provém de ter sido ‘rasgado’ pela nova
avenida rectilínea e modernizante que foi a Almeida Ribeiro, e que o
transformou num espaço aberto, de ligação entre o porto interior e os
novos aterros da Praia Grande. (…) há que concluir o périplo iniciado; e
regressando ao Leal Senado, já se vislumbra ao fundo a silhueta da
Igreja de São Domingos, que abre para a rua do mesmo nome (outro núcleo
comercial fervilhante) e para a Rua de São Paulo, que leva às famosas
ruínas. (…)
A seca escadaria que leva às ruínas, desinteressante e cheia de
‘hóóós!’ de turistas japoneses, era dantes ladeada por casinhas, com
esquinas e beirais, como as gravuras oitocentistas de Chinnery deixam
entrever; (…) Desenhos antigos reconstituem também as bolbosas torres
que se erguiam para trás da portentosa fachada de dragões e caravelas
(fruto de uma mistura artífice nipo-portuguesa que as idas quinhentistas
ao país do Sol Nascente propiciaram), a qual é ainda hoje imagem
longínqua que torna reconhecível o centro da cidade, para quem vem pelo
mar…”
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