Na véspera do Ano Novo, bandeiras vermelhas são içadas nos mais elevados mastros das embarcações, enquanto os panchões estoiram ruidosamente no mar e em terra, afugentando apressadamente os espíritos malignos, que nestes dias festivos se vêem forçados a procurar esconderijo bem longe dos povoados… Pelas portas, janelas e paredes encontram-se afixados papéis vermelhos exprimindo votos de felicidade, e muitas lojas e residências ostentam ricos panos carmesim em vistosas decorações; nas ruas, numerosos chineses aproveitam a oportunidade para exibirem cabaias e fatos novos como prova da sua abastança. Sequeira, interessado pelo exotismo da festa que constitui o maior acontecimento da vida social chinesa, mas cujas solenidades particulares são absolutamente vedadas aos olhos de europeus, pediu à Mary Wong que fosse sua companheira naquela noite de desusada animação e o elucidasse sobre os milenários costumes da China em data tão solene. Lado a lado, como um casalinho de namorados, percorreram a Rua da Felicidade, ornamentada com inúmeros balões de feitios esquisitos e atapetada com os papéis vermelhos dos panchões que não cessaram de rebentar.
– Como esta festa deveria ser animada e interessante – pensava o médico – se não estivéssemos em guerra e a miséria não fosse tanta!
E, de facto, o que se passava em Macau constituía uma pálida amostra das comemorações dos anos anteriores. Não havia jogo pelas ruas nem iluminações no Bazar; apenas o Bairro da Felicidade, onde as `pipa-chai´ são rainhas, pretendia mostrar ainda um pouco de alegria própria da mocidade. Numa rua do Mercado de S. Domingos, em numerosas barracas armadas propositadamente e com luz a jorros, os horticultores e floristas expunham à venda as plantas e flores tradicionais da época como símbolos de felicidade, tangerineiras anãs carregadas de frutos, ramos de pessegueiros, pereiras e ameixieiras a florescer, jacintos, dálias e crisântemos. Enorme multidão, sempre renovada, adquiria os seus perfumados e decorativos talismãs, que deviam enfeitar o lar antes de soar a meia-noite.
Klu-klu e fan-tan
Ao entrar no Hotel Central, Sequeira encontrou o átrio repleto de chineses jogando o ´klu-klu´ em volta de duas mesas, ouvindo-se de vez em quando o grito convidativo do ´croupier´ berrando em altos sons ´hoi, hoi´ (abro, abro) enquanto acariciavam uma caixinha de base plana e circular, onde assentavam três dados fechados superiormente por uma cúpula de vidro, que uma tampa preta apropriada eximia à vista do público. Esperando um pouco, o banqueiro retirou a cobertura da redoma e surgiram os dados mostrando um 4, um 3 e um 2, no total de nove, ´pequeno´, que ele anunciou logo em voz cantante: ´Si, sâm, i, kao, sai´ (4, 3, 2, 9, pequeno). Todos os ´pontos´ que tinham jogado naqueles números e no ´pequeno´, receberam os seus lucros, depois do que, fechando de novo a caixa e agitando-a três vezes para revolver os dados, a pousou sobre a mesa aguardando que mais apostas fossem efectuadas. Sequeira verificou que os oleados colocados sobre as mesas e onde os jogadores dispunham o dinheiro que arriscavam, estavam divididos em numerosos rectângulos, com os números 4 a 17 escritos em fila e desenhos de combinações dos algarismos gravados em cada dado (1 a 6), além de dois espaços maiores, um para o ´grande´, números de 11 a 17, e outro para o ´pequeno´, de 4 a 10. Três dados iguais constituíam o ´partido´ da banca, mas os ´pontos´ também podiam tentar a sorte nesses números, o que não evitava que aquele jogo não deixasse de ser uma espécie de ´banca francesa´ em que o banqueiro tinha a colossal vantagem de ficar com seis ´partidos´… – Que diabo – monologou o Sequeira – Nem doutra maneira se podia admitir que os concessionários do jogo pagassem anualmente de impostos à Colónia cerca de dois milhões de patacas, a brincadeira de mais de doze mil contos!
Metendo-se no elevador com a Mary Wong, o médico parou no sexto andar, dirigindo-se para o cabaret onde duas orquestras tocavam alternadamente músicas de actualidade para baile. Em volta do recinto destinado à dança, numerosas ´taxi-girls´ aguardavam sentadas pelos fregueses que as levariam para o rodopio, enquanto na restante parte da sala à meia luz, numerosas mesas se encontravam apinhadas de frequentadores ansiosos por divertir-se.
Não resistindo à tentação duma rumba sensual, Sequeira tomou nos braços a apetitosa bailarina e pretendeu executar alguns passos de dança, em breve reconhecendo que não estava dia para essas fantasias, pois os pares comprimiam-se de tal forma em recinto tão apertado que se via em sérios embaraços para não pisar o seu par ou os pés vizinhos.
Foi então tomar conhecimento com outro jogo desconhecido, o ´fan-tan´, que se praticava numa sala ao lado e constituía uma espécie de jogo do ´monte´, mas sem cartas: sobre a mesa revestida de oleado escuro apenas se lobrigava um quadro metálico com os algarismos 1 a 4 escritos nos lados e uma grande quantidade de botões brancos, que o banqueiro separava em grupos de quatro manejando uma vareta. Terminada a jogada, o banqueiro pegou numa espécie de malga com a boca virada para baixo e cobriu repentinamente uma porção de botões, que desviou para o lado, indicando em seguida que podiam começar as apostas.”
Excerto do livro "Eu estive em Macau durante a guerra", da autoria de António de Andrade e Silva escrito nos primeiros anos da década de 1940 mas que só veio a ser editado em 1991 pelo ICM e Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau.
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