sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A maior das festividades

“A festa tradicional que para os chineses se reveste de maior importância e animação, é a que levam a efeito pelo Ano Novo, conforme o seu velho calendário subordinado ao movimento da Lua. Antigamente, o início dos anos lunares variava segundo as dinastias reinantes, mas, cento e quatro anos antes de Cristo, foi fixado no dia da primeira Lua Nova a seguir à entrada do Sol no Aquário, data que fica compreendida entre 21 de Janeiro e 19 de Fevereiro. O primeiro Governo da República, em 1912, decretou a abolição do Ano Chinês, estabelecendo a ´Festa da Primavera´ em substituição das cerimónias usuais por ocasião do Ano Novo, mas a tradição encontrava-se de tal maneira no espírito do povo que este, embora em alguns casos adoptasse o calendário ocidental, continuou a reger-se pelos anos lunares, mantendo as grandes solenidades do princípio do ano, que apresentam simultaneamente características religiosas, familiares e comerciais. Em Macau, já muitos dias antes o Porto Interior se começa a encher de embarcações chinesas, que paralisam todas as suas actividades para gozarem o único descanso de um ano de labuta; arrumam-se muito juntinhas, procurando agrupar-se com as dos parentes e formando longas fileiras separadas umas das outras por estreitos corredores aquáticos que semelham pequenas ruas de um estranha cidade flutuante com mais de sessenta mil habitantes!
Na véspera do Ano Novo, bandeiras vermelhas são içadas nos mais elevados mastros das embarcações, enquanto os panchões estoiram ruidosamente no mar e em terra, afugentando apressadamente os espíritos malignos, que nestes dias festivos se vêem forçados a procurar esconderijo bem longe dos povoados… Pelas portas, janelas e paredes encontram-se afixados papéis vermelhos exprimindo votos de felicidade, e muitas lojas e residências ostentam ricos panos carmesim em vistosas decorações; nas ruas, numerosos chineses aproveitam a oportunidade para exibirem cabaias e fatos novos como prova da sua abastança. Sequeira, interessado pelo exotismo da festa que constitui o maior acontecimento da vida social chinesa, mas cujas solenidades particulares são absolutamente vedadas aos olhos de europeus, pediu à Mary Wong que fosse sua companheira naquela noite de desusada animação e o elucidasse sobre os milenários costumes da China em data tão solene. Lado a lado, como um casalinho de namorados, percorreram a Rua da Felicidade, ornamentada com inúmeros balões de feitios esquisitos e atapetada com os papéis vermelhos dos panchões que não cessaram de rebentar.
 – Como esta festa deveria ser animada e interessante – pensava o médico – se não estivéssemos em guerra e a miséria não fosse tanta!
 E, de facto, o que se passava em Macau constituía uma pálida amostra das comemorações dos anos anteriores. Não havia jogo pelas ruas nem iluminações no Bazar; apenas o Bairro da Felicidade, onde as `pipa-chai´ são rainhas, pretendia mostrar ainda um pouco de alegria própria da mocidade. Numa rua do Mercado de S. Domingos, em numerosas barracas armadas propositadamente e com luz a jorros, os horticultores e floristas expunham à venda as plantas e flores tradicionais da época como símbolos de felicidade, tangerineiras anãs carregadas de frutos, ramos de pessegueiros, pereiras e ameixieiras a florescer, jacintos, dálias e crisântemos. Enorme multidão, sempre renovada, adquiria os seus perfumados e decorativos talismãs, que deviam enfeitar o lar antes de soar a meia-noite.


Klu-klu e fan-tan
Ao entrar no Hotel Central, Sequeira encontrou o átrio repleto de chineses jogando o ´klu-klu´ em volta de duas mesas, ouvindo-se de vez em quando o grito convidativo do ´croupier´ berrando em altos sons ´hoi, hoi´ (abro, abro) enquanto acariciavam uma caixinha de base plana e circular, onde assentavam três dados fechados superiormente por uma cúpula de vidro, que uma tampa preta apropriada eximia à vista do público. Esperando um pouco, o banqueiro retirou a cobertura da redoma e surgiram os dados mostrando um 4, um 3 e um 2, no total de nove, ´pequeno´, que ele anunciou logo em voz cantante: ´Si, sâm, i, kao, sai´ (4, 3, 2, 9, pequeno). Todos os ´pontos´ que tinham jogado naqueles números e no ´pequeno´, receberam os seus lucros, depois do que, fechando de novo a caixa e agitando-a três vezes para revolver os dados, a pousou sobre a mesa aguardando que mais apostas fossem efectuadas. Sequeira verificou que os oleados colocados sobre as mesas e onde os jogadores dispunham o dinheiro que arriscavam, estavam divididos em numerosos rectângulos, com os números 4 a 17 escritos em fila e desenhos de combinações dos algarismos gravados em cada dado (1 a 6), além de dois espaços maiores, um para o ´grande´, números de 11 a 17, e outro para o ´pequeno´, de 4 a 10. Três dados iguais constituíam o ´partido´ da banca, mas os ´pontos´ também podiam tentar a sorte nesses números, o que não evitava que aquele jogo não deixasse de ser uma espécie de ´banca francesa´ em que o banqueiro tinha a colossal vantagem de ficar com seis ´partidos´… – Que diabo – monologou o Sequeira – Nem doutra maneira se podia admitir que os concessionários do jogo pagassem anualmente de impostos à Colónia cerca de dois milhões de patacas, a brincadeira de mais de doze mil contos!
Metendo-se no elevador com a Mary Wong, o médico parou no sexto andar, dirigindo-se para o cabaret onde duas orquestras tocavam alternadamente músicas de actualidade para baile. Em volta do recinto destinado à dança, numerosas ´taxi-girls´ aguardavam sentadas pelos fregueses que as levariam para o rodopio, enquanto na restante parte da sala à meia luz, numerosas mesas se encontravam apinhadas de frequentadores ansiosos por divertir-se.

Não resistindo à tentação duma rumba sensual, Sequeira tomou nos braços a apetitosa bailarina e pretendeu executar alguns passos de dança, em breve reconhecendo que não estava dia para essas fantasias, pois os pares comprimiam-se de tal forma em recinto tão apertado que se via em sérios embaraços para não pisar o seu par ou os pés vizinhos.
Foi então tomar conhecimento com outro jogo desconhecido, o ´fan-tan´, que se praticava numa sala ao lado e constituía uma espécie de jogo do ´monte´, mas sem cartas: sobre a mesa revestida de oleado escuro apenas se lobrigava um quadro metálico com os algarismos 1 a 4 escritos nos lados e uma grande quantidade de botões brancos, que o banqueiro separava em grupos de quatro manejando uma vareta. Terminada a jogada, o banqueiro pegou numa espécie de malga com a boca virada para baixo e cobriu repentinamente uma porção de botões, que desviou para o lado, indicando em seguida que podiam começar as apostas.”
Excerto do livro "Eu estive em Macau durante a guerra", da autoria de António de Andrade e Silva escrito nos primeiros anos da década de 1940 mas que só veio a ser editado em 1991 pelo ICM e Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau.

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