A Procissão de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos é quase tão antiga como esta cidade e sempre se tem celebrado com grande solenidade, muita concorrência e profunda devoção.
E quando há dois séculos e meio, ou seja, em 1717, deixou de se celebrar pela ausência dos frades de S. Agostinho, que haviam sido expulsos para Goa, houve tão grande carestia que os gentios se dirigiram ao Procurador da Cidade a pedir que fizesse sair à rua «aquele homem de madeiro às costas», que eles pagariam todas as despesas. Assim se fez e cessou a carestia. Estamos, pois, em presença dum espectáculo que tem comovido e impressionado todos os portugueses, chineses e estrangeiros que aqui viveram ou por aqui passaram nestes 400 anos.
A procissão do Senhor dos Passos marca o inicio da Quaresma em Macau |
As tochas odoríferas, levadas pelos Irmãos da Confraria, de opas rochas, espalhavam jorros de luz muito mais brilhante que a fraca luz dos candeeiros que iluminaram as ruas.
Já se celebrava esta Procissão três séculos antes da fundação de Hong Kong. E quando milhares de portugueses foram procurar na nova colónia britânica meios de vida, vinham eles todos os anos, quase em massa, associar-se ao seu querido Bom Jesus. E quando os Irmãos da Confraria de Macau alegaram que não tinham forçapara levar aos ombros a pesadíssima estátua do Senhor, pretendendo levar outra menor, os portugueses de Hong Kong protestaram com toda a veemência, oferecendo-se para transportar aos seus ombros a antiga estátua e pagar todas as despesas da procissão. Os de Macau não cederam esse privilégio aos de Hong Kong, como veremos abaixo.
Outrora a procissão dos Passos era mais longa, pois havia passos à entrada das igrejas da Sta. Casa, de S. Domingos, de S. Francisco e da Capela do Bom Jesus, construída em 1743 por Francisco Xavier Doutel, no Monte do Bom Jesus. Quanto ao Passo da Rua Formosa, a revista Religião e Pátria de 10-3-1957 informa: «A Baronesa de Portalegre, madrinha de José Joaquim de Azevedo, Major de Infantaria, deu, por sua morte, a capelinha da Rua Formosa a este senhor. O Sr. Major, por sua morte, ocorrida por 1889 (cfr. o túmulo à entrada do Cemitério de S. Miguel, à direita), deixou a capelinha a sua esposa, D.ª Engrácia Maria Braga de Azevedo, que faleceu por 1907. D.ª Engrácia entregou a capelinha ao cuidado da sua filha, D.ª Paquita de Azevedo Cardoso, viúva do Cap. Cardoso, falecido em 1952; nesse ano tomou conta desse Passo D. Mily Catela».
Ljungstedt descreve assim esta procissão em Historical Sketch of the Portuguese Settlements, p. 1551: «Passemos agora da alegre procissão (de S. António) para a mais séria e melancólica de todas. O Domingo da Cruz — a julgar pelos emblemas exibidos nesta procissão — representa a transição do paganismo para o cristianismo. O Redentor — uma imagem do tamanho dum homem — revestido com um manto de púrpura, levando na cabeça uma coroa de espinhos e ao ombro uma pesada cruz, dobra um dos joelhos sobre o fundo dum andor, transportado por oito dos mais distintos cidadãos. O bispo com o clero secular e regular, o governador, os ministros, a nobreza, os militares e toda a população católica romana, pode dizer-se, assistem, profundamente comovidos por uma cena que prognostica o divino sacrifício que se vai realizar para reconciliar o homem com o seu Criador. Crianças — de rostos claros e escuros — revestidas de vestidos de anjos, com lindas asas de musselina nos ombros, levam os instrumentos em miniatura, que serviram para a crucifião. Esta procissão percorre quase toda a cidade; ao terminar, a imagem é depositada no seu santuário no Convento de S. Agostinho».
Sobre esta procissão Carlos Francisco Gracias escreveu em «O Clarim» de 7-3-1965:
«A introdução desta festividade católica em Macau deve-se aos religiosos de Santo Agostinho que vieram da Espanha, por via das Filipinas. À semelhança da Península Ibérica, o culto à Paixão de Cristo tomou aqui forte incremento e os milagres atribuídos estendiam-se muito em breve aos pagãos. O Sr. Jack Braga reproduziu no «Boletim Eclesiástico», recentemente, um códice do séc. 19, encontrado na Biblioteca de Évora, que é uma colectânea de «vários factos» ligados à história de Macau durante o período 1553-1748, e nessa fonte vem relatado um caso interessante: «Aos 14 de Fevereiro de 1721 houve nesta cidade uma grande carestia pela falta de mantimentos e os chineses atribuindo isso ao facto de se não fazer a procissão dos Passos, requereram ao Pro. curador do Senado para que fizesse andar pelas ruas aquele homem de pau às costas (palavras deles), oferecendo-se para os gastos». Com efeito a escassez desapareceu depois de feita a procissão e os chineses, contentes, cumpriram com o acordo.No século passado um abastado comerciante macaense, apelidado Dias, encomendou de Portugal uma imagem de Cristo com a Cruz às costas, para o seu oratório particular; contudo o navio em que a encomenda vinha sofreu um naufrágio e em-breve circulava na cidade a notícia dessa perda já considerada total. Passados dias, foi encontrado na praia um caixote endereçado ao Sr. Dias. A imagem estava em perfeitas condições, e tem sobrevivido até aos nossos dias, hoje, encontrando-se em Lisboa na posse da Sra. Da. Aurelina Dias—até há uma década, residente e funcionária dos C.T.T. de Macau—um dos directos descendentes do aludido comerciante.
Quando nos meados do século passado, os macaenses emigraram para Hong Kong e outros portos da China, a devoção do Senhor dos Passos enraizou-se mais profundamente na vida católica do macaense a ponto de ele instituir essa prática no seu novo local de domicílio. Ainda hoje, perdura esse costume em Hong Kong, onde na Catedral se realiza anualmente a procissão organizada pela respectiva Confraria, no segundo Domingo da Quaresma. Na Igreja do Rosário em Kowloon, uma imagem é exposta à veneração dos fiéis durante uma quinzena (coincidindo com as novenas em Macau e Hong Kong) e segundo velhos residentes esta prática deve ter pelo menos cinquenta anos.
Aqueles emigrantes macaenses que se encontravam com possibilidades de virem a Macau para a novena, estabeleceram desse modo uma peregrinação anual que se tem mantido, embora actualmente se limite apenas a umas escassas dezenas de pessoas. Até há uns anos, era costume de certas famílias de Macau colocarem lanternas de petróleo a pressão, em certos locais do percurso na noite de sábado; na Rua Central, a família Assunção ainda mantém esta prática tão cheia de simbolismo — bem como, algumas famílias de Hong Kong traziam (até há uns cinco anos) tochas de enxofre que eram acesas em frente e aos lados do andor. Quebrou-se assim o elo da cadeia do passado, devido aos inconvenientes que o fumo provocava aos devotos, por se ver que não havia nenhuma utilidade prática. Outro aspecto de grande emoção para todos os fiéis, na procissão de domingo, está naquele cântico de perdão e misericórdia do Povo ajoelhado face ao Senhor no fim da devoção em cada Passo. Muita gente de Macau ainda se recorda dum peregrino de Hong-Kong conhecido por «Joe Sousa Misericórdia», pela sua voz de tenor (ou barítono, como alguns querem). Outrora, o percurso da procissão era diferente da actual; contudo não nos é possível assentar nas variantes havidas, exceptuando os seguintes factos concretos, respigados da mesma fonte histórica acima citada. Num registo datado a 25 de Março de 1708 diz-se que a procissão saiu de Sto. Agostinho e «foi até S. Domingos onde ficou ali», fornecendo-nos ainda o pormenor de que «os irmãos que acompanhavam o Senhor iam com capa branca e murça roxa». Em 1712, aos 14 de Fevereiro, «levaram o Senhor para S. Lourenço, donde saiu a procissão na véspera à noite para a Sé, e se recolheu noutro dia em S. Domingos». Como teria evoluído o trajecto, durante todos esses anos, até ao presente? Infelizmente, só podemos conjecturar, tal como fizeram outros estudiosos das coisas macaenses.
Devido à gentil informação do Sr. Braga, eminente investigador histórico, soube que ele e o falecido Chantre Morais Sarmento procuraram, baseados em dados transmitidos oralmente por pessoas mais idosas, delinear um trajecto com certa aceitação lógica. Repetimos, o traçado, que se segue, é apenas uma conjectura: 1.º Passo —Catedral, em seguida, a igreja da Misericórdia (i. e. da Santa Casa) situada mais os menos onde se encontra actualmente a Travessa da Misericórdia e os seus prédios de numeração par; S. Domingos; Hospital de S. Rafael; aqui, estamos numa encruzilhada, pois teria o Passo da Rua Formosa existido contemporâneamente ao de S. Francisco? Anteriormente à extinção do Convento de S. Francisco, a procissão ia ter até aos degraus da escadaria do Convento, portanto avento a hipótese de que o Passo da Rua Formosa foi trasladado do Convento de S. Francisco; actualmente, temos um passo na Praia Grande, — é bem possível que tivesse vindo da residência do Governador situada aproximadamente no actual Palácio das Repartições; outra alternativa seria o Passo de S. Francisco ter-se transferido para este local, o que quer dizer que o da Rua Formosa já existia; o penúltimo Passo encontrava-se no Convento do Bom Jesus, dos Agostinianos, (presentemente o Claustro das Carmelitas), tendo agora lugar no tardoz da Igreja de S. Lourenço; finalmente a procissão terminava em Sto. Agostinho. Assim deveria ter sido há cem anos; e tanto quanto é licito esperar das conjecturas, o trajecto devia ter sofrido poucas alterações.
Para concluir este esboceto: Uma senhora contemporânea ao facto contou-me que durante a tomada de Hong Kong pelos nipónicos na 2.ª Grande Guerra, uma das últimas lanchas a partir de Kowloon estava sendo alvejada pelas tropas em avanço - inclusive com apoio dum avião de combate - e devido ainda à sobrecarga de passageiros, a tarefa do patrão-mor da lancha tornava-se cada vez mais difícil para escapulir aos projécteis inimigos e em dada altura parecia já iminente o seu afundamento; entretanto, naquela amálgama de pessoas aterrorizadas perante a expectativa da morte, uma senhora portuguesa de Hong Kong levantando bem acima da sua cabeça a redoma encaixilhada de vidro contendo uma estátua do Senhor dos Passos invocou a Protecção Divina para quantos iam naquela frágil arca. Essa prece foi atendida, pois o ataque vindo da terra ia-se tornando fraco à medida que o barco se afastava para a outra margem do porto, enquanto que o avião se viu pouco depois sem munições. Infelizmente, ainda não me foi possível obter factos maisconcretos que permitam reconstruir na sua inteira perspectiva a história acima relatada».
Imagens do Senhor dos Passos
A antiga imagem do Senhor dos Passos, que se levava nas procissões de sábado e domingo, era depois recolhida e conservada, até ao ano seguinte na residência do Comendador Lourenço Marques, no Jardim de Camões. A madeira — rija e forte — do andor viera do Brasil, sendo de lá trazida por seu pai, o Comendador Domingos Pio Marques, que aqui chegou no navio Ulisses a 14 de Outubro de 1818; ele fora ao Rio, como deputado de Macau, para assistir às festas de aclamação ao trono de D. João 6.º celebradas a 6 de Fevereiro de 1818.
A rica cortina, bordada a fios de ouro, que ainda se usa na procissão nocturna de sábado, é obra de D. Leonor Maria Marques.
A velha imagem que existia em Santo Agostinho, há um século, foi para Timor. O Conde Bernardino de Senna Fernandes, tesoureiro da Confraria de N. S. Bom Jesus dos Passos, ofereceu, a 12 de Fevereiro de 1876, cem patacas para comprar uma nova imagem que ele mesmo mandou vir de Paris.
Além desta imagem, havia outra mais pequena que estava na sala das sessões da Confraria e à qual a esposa do Governador José Maria Lobo d'Ávila (1874-1876) ofereceu uma rica túnica; a 10 de Fevereiro de 1884, foi esta túnica oferecida às Missões de Timor.
A 17 de Janeiro de 1907, um português de Hong Kong, João Joaquim Gomes, ofereceu um andor com a respectiva armação, para levar a imagem.
A imagem vinda de Paris e oferecida por Bernardino de Senna Fernandes, em 1876, foi levada em procissão, pelas ruas de Macau, durante 34 anos (1876-1910). Mas, após o advento da República em 5 de Outubro desse ano, não sabemos se por diminuição da Fé ou das forças físicas, os Irmãos acharam-na demasiado pesada. E, na sessão da Confraria, de 5 de Abril de 1911, resolveram «levar para o futuro nas procissões a imagem pequena do Senhor dos Passos que está na sala das sessões, visto a que se levara até aqui não ser própria, tanto pelas proporções exageradas como seu peso demasiado que fatiga excessivamente os irmãos condutores a ponto de quererem furtar-se a esse trabalho, como mostra a experiência; devendo-se para esse fim arranjar o competente andor com a maxima brevidade».
Esta decisão motivou um protesto da Comunidade portuguesa de Hong Kong, cujo ofício vamos transcrever para se ver quão arreigada era esta devoção entre as comunidades portugueas do Extremo Oriente.
«Confraria de Nosso Senhor dos Passos. Hong Kong, 13 de Fevereiro de 1912. Exmo. Sr.
Tendo nós sido informado por alguns irmãos da Confraria tanto de Macau como de Hong Kong, da infelix resolução tomada pela Mesa Administrativa, de que V. Exa. é presidente, para descontinuar com a antiga e veneranda Imagem e Andor do Bom Jesus dos Passos para as procissões nos dias 24 e 25 do corrente, e cuja resolução foi, outrossim, transmitida pelo nosso Revdo. Capelão, a quem a mesa fallou quando estava em Macau há dias atraz, esta inesperada noticia causou-nos grande surpreza e um descontentamento geral na nossa comunidade. 1.º Porque as tradições antigas devem ser sempre conservadas e respeitadas, como foram pelos nossos antepassados. 2.º Que sendo a antiga e veneranda Imagem bem conhecida e existente d'ha muito; desde os tempos dos nossos avós e bisavós, não deve, por uma causa qualquer que seja, ser substituida por uma outra muito mais pequena e assás indigna para ser conduzida em trajecto publico, e também sendo esta Imagem já muito antiga e devota dos habitantes de Macau e o respeito e veneração que os muitissimos pagãos da localidade tributam a Ella, cremos que não se deve fazer alteração alguma. Pedimos, portanto, que a digna Mesa Administrativa se digne considerar a resolução já tomada e, se for possivel, revertel-a aos antigos costumes, sem alteração ou innovação alguma; e se julgarem incapazes de retroceder a dita resolução por falta de tempo e dinheiro, nós, os Irmãos da Confraria de Hong Kong, nos responsabilizaremos de proporcionar fundos necessarios para este fim. Constam-nos que o antigo esqueleto da dita Imagem foi deteriorado por formigas brancas e que os Mezarios se resolveram a queimal-o, sem contudo mandar previamente fazer outro para o substituir; e constam-me tambem que alludiram ser o antigo andor muito pesado e não haver quem o pudesse levar durante a procissão. Se estas duas allegações forem exactas, tambem estaremos promptos a remedial-as, mandando fazer um novo esqueleto à nossa custa, e que os Irmãos de Hong Kong estarão sempre promptos a levar o andor por mais pezado que seja, se lhes proporcionarem este devoto privillegio. Por tanto, bem vê que ha ainda muito tempo para revogar a resolução tomada e esperamos que os dignos Mezarios se comprazam com a devida devoção e desejo da maioria dos devotos do Bom Jesus dos Passos, mandando revogar e dita resolução. Na certeza de que o nosso justo pedido será devidamente attendido, subscreve-se com toda a consideração Att.to V.r e criado (ass.) José da Graça. Vice-Presidente. Exmo. Sr. Daniel da Rosa, Digmo. Presidente da Confraria de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, Macau».
Da imagem antiga que em 1911 os Irmãos se recusaram a levar na procissão, por ser muito pesada, restam pedaços — o rosto, as mãos e os pés. Os Irmãos não aceitaram a oferta dos portugueses de Hong Kong, mas nos anos seguintes arrumaram essa estátua na sala das sessões da Confraria. Ali esteve, durante muitos anos, até que um dia o Pe. Júlio César da Rosa, Capelão da Confraria, a mandou serrar. Era feita de roca e o seu rosto sofredor despertava piedade, causava compaixão e infundia devoção.
Ficou apenas no armário o rosto, os pés e as mãos. Um belo dia, o Presidente da Confraria, Artur Tristão Borges, vendo-a tão só e abandonada, levou-a para sua casa, aonde muita gente se dirigia, só para a admirar. A esposa deste Presidente, Angiolina Pacheco Borges, era quem ensaiava a Verónica e fazia os ensaios em sua casa, diante da veneranda imagem.
Na sala das sessões da Confraria. achava-se outra mais pequena. Foi esta que, quando se renovou a igreja de S. Agostinho e se fez o altar mar de marmorite, foi ocupar o nicho desse altar. Antes, nunca a imagem estivera no altar nem lá cabia, mas numa mesa em frente do altar de Nossa Senhora de Piedade, onde era venerada pelo povo. (...)
Nota: Desconheço o autor deste texto (é apenas uma excerto); provavelmente trata-se de Monsenhor Manuel Teixeira.
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