A proclamação da República Portuguesa em 1910 foi a convulsão política que depois das guerras liberais do século XIX mais efeitos produziu em Macau. Não admira por isso que a “Rua Nova D`El Rei” constituísse a primeira designação a abater pelas novas autoridades republicanas que com pompa e circunstância retiraram a antiga placa rebaptizando a via com o nome de “5 de Outubro”, data da revolução que pôs fim à dinastia de Bragança.
A mudança de regime levou também a que alguns anos depois a antiga “Rua do Asilo”, rebaptizada de “Eduardo Marques” (último governador monárquico de Macau) tivesse sido mais uma vez alterada. Para os republicanos aquele era um nome a obliterar, embora acima das disputas ideológicas da Metrópole devesse estar em consideração a figura de um governador de uma colónia longínqua, que, justa ou injustamente, é que deveria escolher quem deveria figurar na toponímia local. Neste caso o consenso ocorreu e conduziu a uma conclusão. A edilidade decidiu dividir a via em partes iguais; uma manteve a designação monárquica de Eduardo Marques, a outra passou a designar-se rua da Emenda (!...). Bom acordo e boa saída para o impasse!...
Dos heróis e dirigentes republicanos não ficou muito. Apenas Carlos da Maia (1914-16) se perpetuou em placa toponímica, mas não em consequência directa de ter sido um dos heróis da Rotunda, mas sim pelo facto de dois anos depois ter assumido o governo de Macau, tendo sido considerado por muitos como um dos administradores de maior mérito da colónia portuguesa da China. Isto segundo a maior parte dos historiadores e académicos que se debruçaram sobre a história do século XX de Macau e que se costumam repetir uns aos outros através das gerações.
Que governou bem Macau é verdade, agora se foi o melhor, ou não é que não se sabe, e em minha opinião nunca se poderá saber. Enquanto o historiador Mons. Manuel Teixeira quase o endeusa, A.H. De Oliveira Marques, reconhece as suas qualidades e as dificuldades que enfrentou em plena 1ª Primeira Grande Guerra Mundial no Extremo Oriente, mas não deixa sobre ele juízos de valor.
Seja como for, a revolução republicana deixou marcas na toponímia. Mas mais marcas iria deixar o golpe de 28 de Maio de 1926. De facto, Macau, fosse qual fosse a posição que tomava perante o desfile triunfal do marechal Gomes da Costa de Braga até Lisboa, não podia deixar de homenagear esse militar cujos estudos primário e secundário tinham sido feitos em Macau. Sendo assim, as autoridades locais atribuíram o nome do antigo aluno do seminário de S. José à rua principal de um novo bairro que passou a ter a designação de “28 de Maio”. Todavia, reconhecendo a força dos novos destinos de Portugal, Macau ignorou o facto do prestigiado militar ter sido devorado pela própria revolução que desencadeara, decidindo conceder-lhe mais, ou seja atribuir à enorme avenida que bordejava os novos aterros do Porto Exterior o seu nome. À outra parte foi concedido o topónimo do emergente Ministro das Finanças, Oliveira Salazar, que pouco tempo depois assumiria os destinos de Portugal governando em ditadura pelos quarenta anos seguintes. Curiosa atribuição já que a avenida Gomes da Costa bordejava uns arredores com mais bairros de lata do que casas de alvenaria, enquanto Salazar dava nome à via que começava no antigo Palácio das Repartições junto à estátua de Jorge Álvares e terminava no rio como se fosse uma via que tinha sido aberta para conquistar novos horizontes. A metáfora não era despicienda. O “Estado Novo” tinha bem em conta a simbologia e Salazar era o chefe a quem tudo se devia segundo os seus próceres daqueles tempos.
Entre a revolução republicana de 1910 e a proclamação do Estado Novo em 1926 muita tinta correu em Portugal. Desde a “Monarquia do Norte” do capitão Paiva Couceiro, ao “Movimento das Espadas”, passando pelas revoltas do Arsenal e um sem número de sublevações triunfantes, ou frustradas. Nenhuma delas registou efeitos particulares em Macau, para além das mudanças de governadores (facto que, aliás, o Território desde sempre esteve habituado). Nesse período porém, apenas um nome teve direito a ser perpetuado na toponímia macaense e foi o de Sidónio Pais. Personalidade singular na história da “Primeira República”. Sidónio Pais, cujo consulado foi efémero, nada teve a ver com Macau. No entanto, o Território decidiu (sabe-se lá porquê? E seria interessante averiguar) mudar o nome da Estrada da Flora (pleno do lirismo que lhe era concedido pelas árvores frondosas que a ladeavam) pelo do ditador português transformando a via em avenida, através dos bons ofícios do governador Tamagnini Barbosa, um militante republicano que mais do que os monárquicos tinha como inimigo convicto o Partido Democrático de Afonso Costa.
A última convulsão nacional que influiria na toponímia macaense foi a revolta dos capitães de 25 de Abril de 1974. No entanto, ao contrário de todas as outras, as mudanças políticas registadas em Portugal não implicaram a imposição de nomes de novos heróis. Bem ao contrário, o 25 de Abril de 1974 limitou-se apenas a eliminar os da “Revolução de Maio” sem impor nenhum dos seus. Assim, ao contrário de Portugal, onde as ruas e avenidas das “Forças Armadas”, “25 de Abril”, “Liberdade” e quejandos substituíram os topónimos dedicados a Salazar, Américo Tomás e outros pelas cidades e vilas do país, em Macau tudo se processou de forma diferente.
Gomes da Costa e Salazar foram trocados pelo topónimo inócuo de “Amizade”. Eis pois que, 36 anos passados sobre o 25 de Abril apenas duas figuras da revolução democrática portuguesa de 1974 foram dignas de merecer topónimo, ou seja a colmatar lacunas restam apenas o nome de Mário Soares concedido, mais, ou menos à pressa (na eminência de uma visita oficial deste Chefe de Estado a Macau) a parte da antiga avenida Salazar por ocasião da sua primeira visita a Macau naquela qualidade e o de Ramalho Eanes, vencedor do 25 de Novembro de 1975, concedido ao largo de Coloane nas faldas do quartel que aquele antigo presidente comandou como capitão nos idos de 1960.
Antes da “história”, ou seja antes do primeiro cadastro oficial que data de 1869 os lugares de Macau não eram conhecidos por nomes famosos, nem designações reais, nem mesmo por acontecimentos (...)“
“Personalidade singular na história da “Primeira República”. Sidónio Pais, cujo consulado foi efémero, nada teve a ver com Macau. No entanto, o Território decidiu (sabe-se lá porquê? E seria interessante averiguar) mudar o nome da Estrada da Flora (pleno do lirismo que lhe era concedido pelas árvores frondosas que a ladeavam) pelo do ditador português transformando a via em avenida.”
A atentar no Boletim Oficial de segunda-feira, 2 de Agosto de 1869, as ruas, becos, travessas, pátios, escadas e calçadas possuíam topónimos inócuos que iam desde os animais (Faisão, gaivota, leitão, Pombo, Rato) aos vegetais (amêndoa, amora, magnólia, feijão, etc.), passando pelos substantivos sem conotações controversas (mainato, ópio – este poderia ser controverso, mas enfim!... -, rota, lampião, etc.). Quanto a figuras históricas o cadastro referido ressalvava apenas Coelho do Amaral, governador e autor de uma estrada entre Mong Há e as Portas do Cerco e Ferreira do Amaral, igualmente governador, assassinado em 1849 ao serviço de Portugal por um bando de sicários junto ao templo da Flor de Lótus, e ainda a rainha D. Maria II, mais o poeta Bocage e duas ou três figuras de relevo da história nacional.
Desde esse cadastro antigo, porém, a fisionomia da cidade alterou-se. Os conceitos modernos impuseram-se e o traçado urbano, cada vez mais emaranhado e regurgitante passou a exigir maior atenção das autoridades de modo a poderem entender-se com o desenvolvimento massivo da urbe. Em suma, Macau deixava de ser uma aldeola para se tornar numa verdadeira cidade que passava a exigir direcções postais e números de polícia, capazes de permitir aos carteiros entregar cartas e encomendas e aos oficiais de diligências da Justiça recensear os cidadãos. É que em 1869 Macau possuía já 529 vias públicas.
A partir da segunda metade do século XIX, Macau começou a sofrer importantes alterações da sua fisionomia em todas as frentes. Aterros sucessivos conquistavam o Porto interior fazendo com que o cais avançasse desde a rua do Amparo até aos actuais limites mais de quinhentos metros, a Ocidente. A Norte, depois das intervenções sucessivas feitas a partir da década de 70 do século XIX construindo a ligação entre a cidade e as portas do Cerco, outras obras foram sendo feitas, culminando com a construção do dique que ligou Macau à ilha Verde (implementa pelo Governador Conselheiro Borja) e posteriormente, com a intervenção de fundo de Horta e Costa sobre os pântanos de Mong Há em 1900.
Neste contexto, a toponímia de Macau fica desadequada das realidades emergentes, levando a que o governador Sérgio de Sousa nomeasse uma comissão destinada a “determinar e fixar de um modo definitivo os nomes de todas as vias públicas da cidade”. A decisão do almirante Sérgio é compreensível já que para além da construção de novas ruas, o antigo traçado tinha sofrido sucessivas alterações toponímicas, enquanto as novas vias continuavam por nomear, resultando deste facto os mais diversos inconvenientes, como a própria comissão reconhecia.
Artigo da autoria de João Guedes, jornalista/investigador, publicado no JTM de 14-6-2011
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