Enquanto em Xangai se assistia ao primeiro congresso do PCC, por Macau o que fazia notícia em português era a disputapelas águas territoriais com Cantão. Há 90 anos quis-se mostrar aos vizinhos que a lusa “proverbial paciência” tinha limites.
A hoje lendária fundação do Partido Comunista Chinês não foi contada há 90 anos na imprensa portuguesa publicada em Macau – ou, pelo menos, não consta das notícias que sobreviveram em arquivo. Ficaram os registos de um semanário que, no Verão de 1921, tentava provar os direitos de Portugal sobre a Ilha da Lapa: a guerra no Continente era apresentada como um incidente que se prestava “muito belamente” à falta de quem desse explicações sobre os “litigantes de má fé” chineses.
Em língua portuguesa publicava-se à época O Liberal, o “semanário republicano independente” que andava em campanha para as legislativas portuguesas. A informação era dada numa coluna com o título ‘Notícias’ – é entre o texto “São muitos espertos!” (ainda sobre as eleições, escreve-se “mas voz que defenda os interesses de Macau... é o defendes”) e a necrologia que, em Julho de 1921, se faz a primeira referência à China. Em quatro parágrafos, entalados entre uma breve sobre os anúncios do Boletim Oficial e uma notícia sobre o lançamento de um novo jornal chinês, O Macau, que se fala do novo hino da república da China.
“Coube ao nosso amigo Revdo. Pe. Filipe Van Lau, missionario do Padroado português no Extremo-Oriente a honra de compor a musica (á europeia) do Hino Novo da República Chinesa, do qual recebemos e penhoradamente agradecemos a oferta de um exemplar [sic]”, destaca O Liberal. A canção, explica-se, estava já aprovada pela comissão nomeada pelo Governo da província vizinha e pelos conselheiros europeus. “Espera-se uma união geral em breve do Governo do Sul com o do Norte para este [hino] ser adoptado oficialmente por um decreto do Presidente de toda a República da China”, dizia-se.
Mas o padre Van Lau, “músico distinto”, também compôs um canto militar que, na mesma altura, estava “ressoando entre as tropas nessa guerra” que dividia o Continente. Já lá vamos: é preciso esperar um ano para O Liberal descrever o movimento das tropas do fundador da República Popular da China, Sun Yat-sen. Findas as eleições em Portugal, o semanário embrenhou-se na disputa pelas águas do Porto Interior e Ilha da Lapa: “E como o momento é dos mais propícios para esclarecer os factos em questão, na próxima semana tentaremos de provar os nossos direitos (...)”. A matéria acabou por tomar quatro edições, com honras de primeira página e o propósito assumido de noticiar a “confirmação plena dos direitos de Portugal aos territórios que ha seculos aqui adquiriu [sic]”. Águas sem brandos costumes 1 de Outubro de 1921. O Liberal insurge- se contra a “insolente provação” de um “torpedeiro chinês, ou coisa que o valha”, que na tarde de 23 de Setembro se retirou das “nossas águas”, em “obediência á ordem terminante e cominatoria que pelo Governo de Macau lhe foi dada”. A “certa hora e no mesmo dia” a Administração portuguesa demonstrou aos “vizinhos que nem sempre a nossa proverbial paciência se havia de abusar”. O jornal estava certo de que “poucos instantes faltavam para um sério rompimento” nas “garantias institucionais” quando “certas entidades inglesas, fundando-se no receio de que tal rompimento fosse o início de uma deflagração na China acorreram instar com o nosso Governo que suspendesse a resolução”. Mas por cá entendeu-se que “acima de tudo estava o prestígio do nome português” e chegou-se à conclusão de que “os conflitos (...) só se evitariam quando Portugal e a China acordassem na fixação definitiva dos limites dos respectivos territórios”.
O Liberal assumia que “toda a população macaense” sabia “muito bem que as peripécias que periodica e sistematicamente de desenrolavam nas nossas aguas são provenientes não só da brandura dos nossos costumes, como de uma certa falta de cuidados de aproveitar o momento propício para alcançarmos dos vários governos cantonenses e do de Pekim a confirmação plena” da alçada de Portugal sobre a Ilha da Lapa e das águas do Porto Interior. “E há-de ser nesta tragica e prolongada fita que os milhões destinados ás obras do porto desaparecerão, pois outro não é o fim das provocações que nos fazem os chineses de Kuangtung, que só nos devem amizade e simpatia (...)”, profetiza o semanário. As “atenções e auxílio” que os portugueses dedicaram à China, “tanto nos ataques aos piratas do mar que lhe assolavam as regiões do litoral, como na derrota dos corsários holandeses que em Macau tentaram estabelecer-se para com mais facilidade se assenhorarem de Kuantung”, era um dos aspectos destacados para dar provas da boa vontade lusa. Para tentar provar os direitos sobre a Ilha da Lapa, O Liberal recorda o tratado de 1887 assinado entre a China e Portugal para frisar que, desde o princípio do século XVII, a Cidade do Santo Nome de Deus tinha as ilhas dos Ladrões, Taipa, Coloane, Montanha e Sam Chao. “Quando nos apossámos de todas as ilhas, com a aquiescencia das autoridades chinesas, encontravam-se as mesmas deshabitadas servindo apenas algumas de refúgio aos piratas que no territorio chinês de Kuantung exerciam as suas proezas [sic]”, lê-se. Mais: já em 1711, o Leal Senado protestava “contra as chicanas do mandarim de Hian-chan que não desistia de nos disputar as propriedades que possuiamos do outro lado do rio”.
Os portugueses, defende-se no artigo, nunca abandonaram “por completo a Ilha da Lapa” e o que importava saber era que “os chineses nada mais teem sido que uns litigantes de má fé”. O Liberal deu ainda à estampa um artigo publicado no Diário de Notícias, em que se falava da “tentativa de violação dos tratados comerciais” com o pomposo título “Macau cobiçado pela China”.
“Macau que está sob o nosso domínio há mais de quinhentos anos, ainda não tem esgotos, nem água canada (...). A que ali se consome vem-nos da Lapa, uma das ilhas em litígio diz-se, mas de facto na posse da China!... E foi nessa ilha (...) que forças chinesas dispararam sobre a nossa gente (...)”, lamenta-se no texto.
“A acção chinesa, muito ao contrário do que parecia à primeira vista, obedece certamente a um plano. Disputam-nos palmo a palmo...os nossos direitos. E, sem nos vencerem pela força, desarmam-nos com a sua velha e reconhecida habilidade diplomática”, critica o articulista. A guerra na China seria, de resto, uma situação que se prestava “muito belamente para que não seja fácil encontrar quem dê explicações que satisfaçam”. “Se Pekim tivesse força para impor o castigo dos indisciplinados, também a teria para dominar a revolução do Sul, onde Sun Iat Seng se faz proclamar presidente da República Chinesa”, vaticina. O caso do domínio das águas era dado como para “sempre insoluvel”.
Avançamos um ano. 23 de Março de 1922. Batalha de Freitas, ministro português, veio a Cantão para negociar uma solução amigável entre as duas partes. O Liberal não gostou: “Há uns meses que se apregôa que as negociações vão em bom caminho e se anuncia que a solução será honrosa em todos os sentidos para Portugal, e até hoje... nada!”, quando, “no dizer da imprensa estrangeira”, se estava perante “um quebracabeças sino-português”. O semanário defendia a demissão do ministro por “auxiliar aquela negociata dos CINCO MILHÕES em favor do Governo rebelde de Cantão, que é o mesmo que auxiliar este Governo rebelde a derrubar o Governo legalmente constituído junto do qual ele, Batalha de Freitas, representa o nosso paiz!!!”. Para o jornal, na altura, era “impossível” “antever o verdadeiro resultado” das lutas pelo poder. A partir de Abril, o semanário começa a reservar nas suas edições duas colunas, em média, para dar conta das movimentações das tropas . “Telegramas de Pekim referem-se a uma conferencia realizada em Paotingfu (...) a fim de se tentar um acôrdo entre Wu Pei-fu e Chang Tso-lin para a reunificação da China. Mas, qualquer que fosse o acôrdo efectuado, ter-se-ia ainda um outro problema a resolver: a questão da Presidencia, que Sun Yat Seng cobiça e a que Chang Tso-lin igualmente aspira”, lê-se em primeira página.
A 15 de Abril a situação política era dada como “agitada” já que “grande excitação reinou em Cantão durante alguns dias por parecer inevitável um combate”. Semanas mais tarde, escrevia-se que Chang “incorreu na cólera celeste por haver criado, com os seus ambiciosos movimentos, o presente estado de incerteza e inquietação”, que provocava “o protesto do corpo diplomático e a execração do público”.
A guerra civil foi decretada a 21 de Abril de 1922, por telegrama da Reuteurs. Estava a umas 12 milhas de Pequim, “fazendose ouvir o troar dos canhões numa grande área”. Sun Yat-sen havia transferido o quartel e estado em Cantão para “fiscalizar as finanças e a organização militar”, na província onde soldados, “bem como muitos leaders, se vão convertendo, pela força das circunstâncias, em ladrões e bandidos”. Assim se escrevia em português a história da China, sem referências a partidos, nem a programas para derrubar o poder da classe capitalista.
A guerra civil foi decretada a 21 de Abril de 1922, por telegrama da Reuteurs. Estava a umas 12 milhas de Pequim, “fazendose ouvir o troar dos canhões numa grande área”. Sun Yat-sen havia transferido o quartel e estado em Cantão para “fiscalizar as finanças e a organização militar”, na província onde soldados, “bem como muitos leaders, se vão convertendo, pela força das circunstâncias, em ladrões e bandidos”. Assim se escrevia em português a história da China, sem referências a partidos, nem a programas para derrubar o poder da classe capitalista.
Artigo da autoria de Sónia Nunes publicado no jornal Ponto Final de 1-7-2011
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