Seis décadas depois de deixar Macau, ainda criança, Zaida Estrela regressou ao território para reviver memórias e levar consigo as cinzas do pai, que trabalhou na Capitania dos Portos. Encontrou uma região com algumas camadas de luxo, mas nos passeios pela Barra, onde viveu com a família, Zaida Estrela conseguiu encontrar a Macau da sua infância, aquela com a essência de uma época que sempre preservou no álbum íntimo de recordações.
Zaida Estrela chegou a Macau com a família em 1952 depois de 37 dias a bordo do Índia, na viagem inaugural daquele barco português. Estava a poucos meses de completar três anos. Viveu no território outros três, os suficientes para guardar recordações que as décadas de distância não conseguiram apagar. “A minha mãe teve um importante mérito: não deixar perder as minhas memórias no tempo”, revela ao JORNAL TRIBUNA DE MACAU, numa entrevista, no centro da cidade, no regresso à terra da sua infância.
Zaida recorda-se do seu primeiro aniversário festejado no território, na casa na zona da Barra, onde o irmão viria a nascer. “Fiz cá três anos numa célebre noite. Tenho a memória de estarmos a festejar em casa. Dia 29 de Julho. E os homens foram todos chamados porque havia tiroteio do lado da China”, relembra, notando que as Oficinas Navais eram um alvo fácil.
Esta é apenas uma das imagens que os seus olhos de menina captaram com profundidade. A ida à primeira edição do Grande Prémio, em 1954, as conversas com as vizinhas, as visitas aos templos e as igrejas, as palavras chinesas que ainda lhe baloiçam na cabeça, são outros dos momentos que permaneceram sempre com Zaida, depois de ter deixado Macau pronta para fazer a escola primária em Portugal. “O meu pai [que veio trabalhar na Capitania dos Portos] levou-nos à 1ª Edição do Grande Prémio. O meu irmão já caminhava e quando os carros passavam os olhos dele acompanhavam”, recorda do tempo de menina quem viria a transformar-se numa professora primária.
A ida para Portugal foi inesperada. “A minha mãe estava doente, com uma anemia fortíssima. Uma junta médica achou aconselhável ir para Portugal. A minha mãe contou-me que o meu pai queria que ficássemos cá com ele, porque ela estava doente, mas fomos”.
A mãe de Zaida Estrela recuperou e pretendia regressar a Macau com os filhos, mas uma fatalidade acabou por ditar o contrário. “O meu pai considerou que devia acabar a 4ª classe e depois viria para entrar no Colégio de Santa Rosa de Lima. O regresso esperava-se para Julho, mas o meu pai faleceu em Maio, de 1959. Na minha vida sinto uma falta… uma saudade eterna”.
Durante cerca de seis décadas, Zaida Estrela viveu com as suas memórias, preservando-as diariamente. Só em 2010 começou a sentir a força suficiente para pensar numa viagem ao território para visitar a campa do pai. “Não pensei vir antes porque tinha medo do que iria encontrar. Mas depois vi um blog sobre Macau, o Macau Antigo, de João Botas, com fotos. O jornalista convidou-me para escrever sobre as minhas memórias em 2010. Comecei também a ver no Google Map e na altura o cursor ficou no mesmo sitio onde morava”, recorda.
60 anos é o espaço de tempo entre estas duas imagens
Da viagem online até à realidade passaram cinco anos e quando chegou à zona da Barra não mais precisou de mapas. A cidade alargou-se, revestindo-se de camadas de luxo excessivo nalgumas das artérias, mas ninguém conseguiu destruir a essência das ruas da sua meninice. “Fui à igreja onde o meu irmão foi baptizado. Gostava muito da comida daqui, adocicada. A Milu [madrinha do irmão que reencontrou em Macau] morava em frente, eram uma família macaense, e às vezes vinha com a comida para trocar pela nossa”, refere notando que não ficou surpreendida com as mudanças uma vez que foi acompanhando várias imagens do território através de um grupo de partilha de fotografias sobre Macau no Facebook.
Durante uma semana, Zaida Estrela revisitou a parte do território que sempre a ligará à infância, afastada de casinos e neon, mas não só. Quando o pai faleceu, a família recebeu em Portugal os recortes de jornais com a notícia, mas não pôde participar nas cerimónias fúnebres. Décadas depois, Zaida Estrela conseguiu recuperar a gaveta com as ossadas do pai e vai levar as cinzas para Portugal.
“O meu marido, sem me dizer nada, começou a contactar o Consulado Geral, mandou fotocópias dos recortes para saberem se ainda estaria no Cemitério e conseguiram localizar a gaveta. Começou a tratar dos procedimentos e só me informou que tal era possível no final do ano [passado]”, refere Zaida Estrela notando que em Macau conseguiram encontrar pessoas muito prestáveis que ajudaram em todo o processo.
Inicialmente Zaida Estrela pensava vir a Macau para encerrar um capítulo da nossa vida que tinha ficado sempre aberto, como se a viagem pudesse ser um regresso ao passado, mas acabou por se revelar mais do que isso. “Em 2010 comecei a pensar nisto e dei conta que precisava de vir a Macau, para fechar um ciclo que estava em aberto. Precisava de ir ao Cemitério e ver onde ficou o meu pai. A sensação que já tinha em 2010 – quando vi as imagens na Internet – era de alegria. Sabia que tinha sido feliz aqui”, indica.
A realidade que encontrou caracteriza-se pelo mesmo sentimento. “Desde que cheguei [na quarta-feira] têm sido dias muito cheios e consegui encontrar a Macau da minha infância. Havia pessoas que diziam que eu não ia gostar de Macau, porque mudou, mas o jornalista João Botas tinha-me dito que se procurasse ia encontrar essa Macau da minha infância”, refere. E não se enganou. Zaida Estrela regressa a Portugal com um sentido de missão cumprida e ainda “mais sentimentos”. Durante a organização da viagem e já em Macau foi conhecendo pessoas que a ajudaram a ligar-se ainda mais às suas memórias de menina. Reencontrou também algumas pessoas cuja ligação irá permanecer em família. Hoje até se lembra dos nomes de quem já não viu por cá. O Mário, mais velho, filho da D. Argentina e do Sr. Joaquim Leiria com que tem fotografias tiradas numa festa de Natal em 1952. Ou das “vizinhas” tancareiras que viviam no bairro flutuante e que, por vezes, quando passava lhe ofereciam um bocado de uma espécie de “pato-cor-de-rosa” que Zaida ia comendo um pouco contra a vontade dos pais.
E das voltas pela cidade que na sossego da noite a faziam descobrir coisas que só os olhos das crianças conseguem analisar com detalhe. “Os meus pais tinham por hábito dar um passeio à noitinha pela estrada que passava junto ao Palácio do Governador. Eu chamava-lhe a rua dos caracóis porque havia caracóis muito grandes com uma casca muito semelhante à dos búzios”, recorda ainda. Brincou muito no largo em frente ao que é hoje o Museu Marítimo, ou no Pagode e revisitar estes lugares quase intactos já lhe deixam saudades.
Artigo da autoria de Fátima Almeida publicado no JTM de 21.7.2015.
Como compreendo a Zaida Estrela. Também deixei Macau onde nasci há mais de 50 anos e nunca mais regressei. Embora não equacione regressar por tempos tão próximos (a conjuntura não é favorável...), também sinto a apreensão de não encontrar aquilo que me lembro. Meus irmãos mais novos, que não se lembravam nada de Macau, embora lá tivessem nascido, tiveram o ensejo de lá voltar há uns anos. As fotografias que trouxeram, tiradas aleatoriamente, apenas me trouxeram mais a sensação do que perdi. Fico feliz por saber que a Zaida conseguiu o reencontro que pretendia graças ao empenho de João Botas.
ResponderEliminarA very touching piece of memory. Very please to know Zaida could find her father's remains at last, but there is one point I don't understand, Zaida's father was a civil servant sent by the Portuguese government to work overseas. Eventually he died during mission, why couldn't the government cover the charge of sending his body back to home?
ResponderEliminarHello Dave, Zaida doesn't have that kind of information so she don't know why. Best regards. JB
EliminarAo ler esta historia que sensibilizou-me...uma em tantas e diversas vezes que recordo com saudade a minha chegada a Angola e os meus dois primeiros anos de estadia naquele territorio. Felizmente que tive a oportunidade algm tempo depois de revisita-lo. E por isso que sempre deixamos um pouco de nos, em lugares que nos marcaram para o resto da vida. A historia da Zaida nao e unica e certamente nao sera a ultima pois todos os dias outras se vao repetindo para a posteridade. A sua historia e comovente mas duradoura e permanecera para sempre. Felicidades Zaida...o percurso da nossa vida e sempre inesperado como surpreendente! surpreendente.
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