segunda-feira, 22 de setembro de 2014

"Cidade de Prazeres" - Ilustração Portugueza, 1908

Não é a embriaguez brutal do occidente, é ainda a forma hypocrita de gosar núma nuvem de fumo o que sem ella ninguém pode obter. As maiores loucuras, mulheres correndo nuas como n´um paraizo novo por entre árvores de sombras bellas e roseiraes sem espinhos, de agradável perfume, os sue lábios abertos para beijos, os seus braços sôfregos de se enlearem; é o amor em toda a sua subtileza divina e em todo o seu final bárbaro.
Sonhos de glórias em que o homem é Deus n´um céu para elle feito, em que a sua côrte são as maiores belezas da terra, em que basta um gesto para derruir um mundo. Foi isto o que Kouong Tsen revelou aos seus discípulos ao fumar a seiva da papoula vermelha do delírio, foi isto o que se tornou logo vulgar, para ser d´ahi a pouco um dos mais ricos commercios d´essa China mysteriosa. Logo cahiu da grandeza d´uma religião nas casas de venda, e em Macau, como de resto onde há chinezes, embora lhes prohibam por editos tremendos esse goso, sempre hão-de existir os logares de luxo e de asco onde se fuma o opio e onde se sonham delicias.
Em todos paira o mesmo perfume adocicado e o mesmo fumo cinzento que mata, que abaçana a pelle e come a carne, tornando o homem transparente e roubando-lhe o pensamento, marcando bem que Deus enlouquece aquelle que deseja perder.
Nas casas ricas como nas espeluncas é sempre o mesmo, acrescentando-se a estas o horror natural do scenario, em que homens e mulheres se misturam em esteira infectas, os olhos cerrados, n´um cheiro nauseante, acordando por fim n´um torpor, os olhos espantados, os membros lassos, com o ar de pessoas que voltassem d´um mundo distante, que estivesse, mergulhadas n´um sonho de seculos e acordassem espantadas deante do que viam.”
Após uma digressão pelas casas de jogo, d´amor, d´embriaguez, traz-se a impressão cançada do goso, mas olhando n´um dealbar verão a cidade onde as nhonhas de lindas pernas, com seus trajes de dó ou com seus vestidos leves, vão passar dentro em pouco, reparando n´esses bairros adormecidos, sob a luz doce do sol e comparando-a com essa China do luxo e da mizeria onde tantos milhões de homens luctam, sente-se bem que Macau foi feito para paraizo dos mandarins, dos ricos e dos piratas e logo nos vem á mente que com esse caminho de ferro de Cantão até ali, que já temos licença para fazer, a cidade seria definitivamente o logar de regalo de todo esse Extremo Oriente se dentro de gosos, que abafa ou se regela na sua atmosfera e que ali, em Macau, encontraria a sua estancia de prazeres, fazendo correr o ouro que seria applicado em torar mais deslumbrante a linda terra das nhonhas e das delicias.

A macaísta, que mettida nos seus trajos de dó tem alguma cousa das nossas antigas damas embiocadas, talvez então se desse mais à vida da rua, talvez mergulhasse n´esse banho de luxo e perdendo a característica do trajar iria docemente, sem dar por isso, deixando o recolhimento em que vive.
Macau é, pois, o logar onde se folga onde os piratas – que os há ainda – veem deixar o seu ouro, com os riscos de serem apanhados pela polícia vigilante. Mas é tal o prazer que todo o chinez tem em se demorar na cidade que eles, foragidos às leis, correm para o jogo, para o ópio e para as lindas chinesas, até que um dia lá vão amarrados pelos rabichos, levados por uma escolta para a fortaleza do Monte até serem entregues às suas auctoridades, até que as suas cabeças sejam degoladas em terras do Celeste Império e expostas nas ruas gotejando sangue. Apezar de tudo o pirata vem e na hora da morte não se lembra decerto das suas façanhas, mas sim dos olhos oblíquos de alguma linda chinesinha da rua da Felicidade, d´essa extranha cidade de prazeres.
Excerto do artigo "Macau Cidade de Prazeres” publicado na “Ilustração Portugueza”, 1908

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