Ilustrações de Carlos Estorninho |
Circula no Facebook uma corrente inofensiva com algo de lúdico e pedagógico, à qual aderi, contrariamente à minha habitual postura de pouca simpatia pelo lado alienatório das redes sociais (como poderá classificar-se, de outro modo, o estado daqueles que se levantam da cama, às quatro da manhã, para ir “alimentar” as ovelhas de uma “farm” virtual, seguindo compulsivamente as regras de um qualquer jogo de computador?). Aderi, então, à tal brincadeira literária:” abre o livro que tiveres mais à mão, na página 56 e transcreve a frase que encontrares na quinta linha.” Encontrei:”(...) fase da cobrança coerciva, com recurso, obviamente, ao físico dos devedores e sua prole”.
Embora na página do Facebook se recomende a ocultação do nome do livro - ainda ninguém explicou a razão - aqui, transgrido a regra: “ Rua sem Nome” da autoria de António Correia.
Personalidade que, ao longo de vinte anos, deu a Macau muito do seu saber e competência, não só como advogado, mas também, no desempenho de importantes cargos, nomeadamente, o de deputado da Assembleia Legislativa, António Correia tornou-se, por outro lado, um dos mais representativos escritores portugueses de Macau. Oscilando entre o romance e a poesia viu publicados mais de uma dezena de títulos. Li, de um fôlego,”Rua sem Nome”, “Aldeia da Paz” e “Memórias do meu Rio”, cujo prefácio nos desvenda a sensibilidade do António Correia, escritor: “(..) procuro ser fiel ao espelho onde mirei a face da minha infância e que levei comigo para todos os lugares do mundo onde tenho vivido, sonhando-o, como apelo ao regresso, para ouvir de novo as histórias que se contavam nos longos serões de Inverno”.
São relatos tão singelos quanto humanos que, por um lado, transportam o leitor a uma realidade impensável nos dias de hoje, mesmo em lugares tão recônditos, como a freguesia de Anreade, concelho de Resende, onde nasceu o escritor e que, por outro lado, marcam pela sábia reflexão:” (...) é a errar que se aprende. Aprendi que nunca se pode desistir e que perante um fracasso devemos insistir uma e outra vez”.
Terá sido essa a chave do seu reconhecido êxito pessoal e profissional. A força da montanha e o forte apelo do rio da sua infância terão ditado, mais que quaisquer outros factores, os seus Ser e Estar e, porventura, a escolha de Macau como “ancoradouro”, inspirando, inevitavelmente, grande parte da sua obra.
Em “Magao, meu Amor”, Macau é percorrida das origens às realidades do nosso tempo, com grande mestria, a tal ponto, que quando acabei a leitura desse livro fui reler a “Mensagem”, de Fernando Pessoa. Confirmei que em ambos os livros, à respectiva dimensão epocal e geográfica, lá se impõem as figuras dos heróis e toda uma simbólica histórica - mero acaso, ou possível desafio, semelhante ao processo de construção de um outro titulo da autoria de António Correia, “Flores do Bem”, considerado pela critica como inteligente contraponto a “ Les Fleurs du Mal”, de Baudelaire”.
O escritor pertence à geração que fez a guerra de África, outra lição de vida, povoada pelo sonho que a comanda e dita, grande parte dos seus poemas: “ Pela raiz do Sonho”,” Caçador de Sonhos”, “Sonhos passados”, “Vale a pena Sonhar”...
Em qualquer das fases do seu percurso literário, António Correia apresenta uma faceta de “raciocinador” que tem, para alem de outros méritos, o de transmitir a complexidade, de forma simples: “Não aceites o estigma de naufrago sem esperança/porque há sempre uma tábua que avança sobre a água/ e nos anima a sonhar a vida”.
Transparece do seu exercício da escrita uma necessidade de chegar fundo ao sentido possível das coisas, uma preocupação em ter um papel moralizador, num mundo reduzido ao conceito economicista básico, que prevalece sobre perdidos valores de outra ordem. São disso reveladores, poemas com títulos elucidativos insertos no livro “Fragmentos”, entretanto, traduzido para cantonense: “Amor a Verdade”, “Perdão”, “Trabalho”, “Coragem”, “Razão das Razões”. Como se infere, a invulgar pluralidade de registos da escrita de António Correia, levou-me a “mergulhar”, com gosto, em grande parte da sua obra que, mea culpa, em Macau, me passara ao lado...
“Last, not least”, recomendo “ Rua sem Nome”, romance que segundo a própria advertência do autor tem “como trave mestra o submundo que suporta, directa ou indirectamente, as três comunidades (chinesa, macaense e portuguesa) da sociedade de Macau (...). As cenas, salvo as memórias de pretérito desfiadas por uma ou outra personagem, tem o seu início em 1979 e terminam precisamente no ano da graça de 1999 (...) um mundo que não inventei porque existe mesmo (...) que recriei a partir da realidade, ficcionando-lhes os passos necessários à sua dimensão de personagens literárias”.
“Pedras, ouros, diamantes, pérolas, safiras, esmeraldas, jades... tantas jóias! Candelabros de luz, sombras, fofas cadeiras, veludos de sangues de todos os tons; mistérios suspensos, em cada havano que se desfaz no ar... Numa mesa de “bacará” um homem viçoso envelheceu de repente aos cinquenta anos: os olhos são duas covas e os dedos são ceras enrugadas a afagar as cartas, os chips e a branquear os destroços dos cabelos. (...) O homem velho pendurou a juventude na janela da esperança e vive cada segundo no sonho do regresso. Tem a face suada e não come há trinta e oito horas, em que a juventude o espera, na esquina da esperança, que mora no sonho do regresso. O homem velho era Wong, mas já nem tem nome, nem nada, porque o passaporte e o documento de identidade moram algures no quarto do hotel onde fica o escritório do banqueiro que já mandou um empregado, cuja cara não engana ninguém... (...) E a trigésima oitava hora que é o numero que abre sempre a porta da sorte... e o homem não olhou... assinou com a caneta de ouro que fora sua e já não é (...) O homem velho, então olhou sem sorrir e deixou cair a cabeça sobre a mesa de “bacará”...e já nem é velho, nem jovem... é uma coisa que está a estorvar! Mas a mesa é enorme e ninguém dá por nada! Uma sincope? Que é que isso tem, se ninguém deu por nada?"
Deixo-vos este naco do romance “Rua sem Nome”, na quase certeza de que, tal com eu, não resistirão à curiosidade de o saborear no seu todo, mais dia, menos dia.
Texto da autoria de Maria Lourenço, professora/jornalista e ex-residente em Macau publicado no JTM de 20-9-2011
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