O magno trabalho
das Cortes Constituintes de 1821, sob a presidência de Manuel Fernandes
Tomás, reunidas no Palácio das Necessidades desde 24 de Janeiro de 1821
até 4 de Novembro de 1822, foi o de dar sentido a uma respeitável nação
com uma velha história, servida por uma anacrónica organização senhorial
e uma deficitária máquina produtiva. Numa das épocas mais sombrias da nossa história colectiva, pouco mais
de meio século após o grande terramoto de 1755, com o País saqueado e
martirizado pelas três invasões francesas [Junot, em 1807; Soult, em
1809; Massena, em 1810, com a Família Real no Brasil desde 1807 e a
(in)gerência inglesa de William Beresford, o País, dizia, encontrou
forças para reerguer-se e reorganizar-se, enfim, retomar a soberania
sobre si próprio na condução do seu destino. Um turbilhão de problemas,
com perdas duríssimas em vidas e património, a juntar às dissensões
internas com os mártires da pátria, como ficou conhecido o processo de
Gomes Freire de Andrade e mais doze notáveis.
Nessa específica conjuntura se instalou o debate sobre a hipotética
alienação de parcelas do império e sobre a soberania e a filosofia
política da unidade e integralidade territorial. Macau esteve
involuntariamente presente nos debates.
Recorde-se a fisionomia de Portugal em 1821: “A Nação Portuguesa é a
união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios. O seu território
forma o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e compreende: I- Na
Europa: o reino de Portugal, que se compõe das províncias do Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e reino do Algarve, e das
Ilhas Adjacentes, Madeira, Porto Santo e Açores ; II- Na América: o
reino do Brasil, que se compõe das províncias do Pará e Rio Negro,
Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Bahia e Sergipe, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro,
S. Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso e das
Ilhas de Fernando de Noronha, Trindade e das mais que são adjacentes
aquele reino; III- Na África Ocidental, Bissau e Cacheu; na Costa de
Mina, o forte de S. João Baptista de Ajudá, Angola, Benguela e suas
dependências, Cabinda e Molembo, as Ilhas de Cabo Verde, as de S. Tomé e
Príncipe e suas dependências; na Costa Oriental, Moçambique, Rio de
Sena, Sofala, Inhambane, Quelimane e as Ilhas de Cabo Delgado ; IV- Na
Ásia: Salsete, Bardez, Goa, Damão, Diu e os estabelecimentos de Macau e
das Ilhas de Solor e Timor”. Finalmente referia-se que “a Nação não
renuncia o direito que tenha a qualquer porção de território não
compreendida no presente artigo”.
O deputado Manuel Borges Carneiro, esclarecido legislador e teórico
do liberalismo, na sessão de 27 de Julho das Cortes Constituintes de
1821, coloca este desafio aos seus confrades: “Temos pois que se deve
estabelecer na Constituição pelas razões, que acaba de apontar o ilustre
Preopinante, que às Cortes pertence o alienar parte do território.
Tenho porém uma reflexão a fazer, e vem a ser que nem só no caso de
necessidade mas também no caso de utilidade. Eu não considero só o caso
de necessidade como por exemplo uma guerra, mas trato também do caso de
uma utilidade evidente. Suponhamos por exemplo que por convenção, ou
tratado que se julga mais útil, que nós abandonemos a nossa ilha do
Príncipe ou Macau, que havia um tratado que julgara isto muito útil,
fazer uma permutação e, em consequência disto abandonar o que acabei de
dizer para receber uma porção mais conveniente. Porque razão não podemos
alienar no estado de conveniência e utilidade parte do nosso território
?”.
A discussão tomou conta das bancadas, com os deputados Anes de
Carvalho, Manuel António Carvalho, Ferreira Borges, Bispo de Beja, Serpa
Machado, Soares Franco, Castelo Branco e Xavier Monteiro a esgrimirem
argumentos contraditórios com grande veemência. O deputado Castelo
Branco, refuta a tese de Borges Carneiro, centrando-se na defesa dos
direitos dos cidadãos: “eu não poderei jamais suportar, que se dê a uma
Nação a ideia de que é lícito, de que é possível dividir uma parte do
seu território, isto é deixar em desespero essa parte de cidadãos,
porque a alienação dessa parte leva consigo uma porção de concidadãos”.
Contudo, não fecha de todo a porta: “se as nossas desgraçadas
circunstâncias nos levarem para o futuro a esse desgraçado fim, então o
Governo, então a Assembleia Legislativa da Nação decidirá o que se deve
fazer neste caso. Entretanto não vamos consignar na nossa Constituição
um princípio de tal natureza”.
Três dias depois, na sessão de 30 de Julho, Borges Carneiro,
aperfeiçoa a sua proposta: “Deve legislar-se na Constituição, que o
território da Nação Portuguesa pode ser alienado pelas Cortes,
concorrendo para isto duas terças partes dos Deputados, e senão diga-se:
que aproveitou, que os Espanhóis tivessem declarado que o seu
território era inalienável, se eles há pouco cederam as Floridas? De que
servirá também que nós declaremos na Constituição, que o território
português é inalienável, se houver um caso de necessidade, ou de
utilidade, e exija que isto se possa verificar? Suponhamos nós, que era
possível contratar com Espanha, a que ela nos desse a Galiza, e nós
perdêssemos Macau? Porque razão o Governo não havia entrar nestes
tratados, submete-los à discussão das Cortes, e estas, vendo que eram
justos e úteis, sancioná-los então?”.
Esta tese não vingou, como bem sabemos. No limite, a ideia de Borges
Carneiro até nem era destituída de senso: a Galiza era um território
estrategicamente importante e apetecível para Portugal e Macau como
estava perto das Filipinas, poderia integrar o conglomerado colonial
espanhol no extremo oriente. Mas, ninguém se lembrou da palavra que
teria a China, através do vice-rei de Cantão. De resto, o conhecimento
de Macau era escasso, desactualizado e imperfeito. Na sessão de 14 de
Agosto, o deputado Ferreira da Costa perguntava-se: “ignoro se somos
senhores de alguma parte do território de Macau, mas consta-me que nós
pagamos ali um fôro de cem mil reis por ano ao Imperador da China”. A
fraca visibilidade política de Macau era imputada aos filhos da terra,
como notava o deputado Vilela, “em Portugal há filhos de Macau, na
universidade conheci alguns”, que estavam voluntariamente arredados do
centro das decisões políticas.
Tudo isto foi, aparentemente, ignorado em Macau onde o jornal “A
Abelha da China” vai fazendo eco dos trabalhos das Cortes ao mesmo tempo
que amplifica as angústias do Leal Senado, “penetrado de um sincero
patriotismo”, que decide fazer o primeiro referendo à população, em 13
de Novembro de 1822, para saber, entre outras coisas, “qual deve ser o
plano da educação para ambos os sexos, mais acomodada às actuais
circunstâncias do país, e quais os meios mais suaves e seguros, de que
possa lançar mão o Governo para o pôr em execução e conservá-lo”. Tudo
isto para “expor a Sua Magestade e ao Soberano Congresso”.
A instabilidade governativa parecia criar raízes em Macau, incluindo o
frustrado assomo absolutista do Ouvidor Arriaga. O Senado, o Conselho
Governativo, os Governadores e o bispo Francisco Chacim foram obrigados
a entenderem-se a bem da sobrevivência do Território. Como o ódio velho
não cansa, o professor régio José Miranda e Lima, será demitido do
cargo de professor de gramática latina, treze anos depois, em 1836,
“pelos seus reconhecidos sentimentos de desafeição ao Meu Legítimo
Governo e à Carta Constitucional da Monarquia”, como se pode ler no
decreto assinado pela Rainha.
Começava outra grande discussão, se Macau deveria ter, por direito
próprio, um deputado nas Cortes. O deputado Vasconcelos sintetizou a
tese afirmativa deste modo: “já se concedeu à Ilha de S. Tomé e Príncipe
um deputado, elas não são de tanta importância como Macau. Em Macau
temos fortalezas, temos portos, temos grandes estabelecimentos. Portanto
deve dar um deputado, e de modo nenhum unir-se a Goa, porque pode muito
bem ser que deputados de Goa nunca fossem a Macau”. Apesar das reservas
expressas pelo deputado Fernandes Tomás, “mas pergunto, está Macau na
razão de vir de lá um deputado? Não está, nem estará”, o certo é Macau
lá conseguiu a sua representação parlamentar. Manuel Borges Carneiro, vítima do absolutismo miguelista, acabará os
seus dias como preso político no Forte de S. Julião da Barra, em 1833.
Artigo de António Aresta publicado no JTM de 29.5.2013
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