"Mal cheguei, abri um hospital, onde se admitem tanto cristãos como pagãos", escrevia, em 1575, D. Melchior Carneiro, em carta enviada ao Padre Geral Jesuíta e na qual dava conta dos seus esforços no campo da assistência, desde que, poucos anos antes, chegara a Macau.
As palavras de Melchior Carneiro, primeiro Bispo de Macau e que aqui instituiu o sistema de Misericórdia idêntico ao modelo fundado pela Rainha D. Leonor, confirmam todo um trabalho pioneiro no campo da assistência na saúde e na caridade que os portugueses realizaram em Macau desde, praticamente, os primeiro dias do seu estabelecimento nas costas da China. O acto de Melchior Carneiro constituiu a fundação do hospital europeu mais antigo na China, inicialmente designado como Hospital dos Pobres e, depois, baptizado com o nome que o tornaria conhecido durante vários séculos: Hospital de S. Rafael, hoje já inexistente mas recordado pelo belo edifício que, no coração da cidade, abriga agora o Consulado Geral de Portugal.
Quando da fundação deste hospital, foi criado igualmente o primeiro serviço de apoio aos leprosos, porventura aqueles que necessitavam de maior protecção e apoio, dada a generalização da doença e desterro a que eram votados pela família e população, os que dela padeciam. As diferenças de comportamento de chineses e ocidentais relativamente à doença e ao infortúnio chocaram os primeiros portugueses que aportaram a Macau. No entanto, e ao contrário do que apressadamente concluiram alguns portugueses, os chineses não eram indiferentes às desgraças alheias e os organismos de solidariedade da comunidade chinesa, incipientes na altura, desempenharam mais tarde um importante papel social, como aliás, ainda hoje acontece.
Já no século XVII há notícias de uma enfermaria existente no Colégio de S. Paulo que acudia os religiosos daquele seminário e também doentes do exterior. Uma enfermaria naturalmente vocacionada para o apoio à população cristã mas com uma precaridade no seu funcionamento que levanta algumas críticas por parte de um dos seus boticários que, em carta ao padre geral, confessa a sua inaptidão para o lugar: "Ainda que algumas curas me sucederam bem, fiz muitos erros por não saber e alguns deles graves, de que fiquei com muitos escrúpulos, particularmente 3 de que fiz sabedor V. Reverendíssima".
A enfermaria tinha capacidade, ao que se julga, para 60 camas atendidas por religiosos com alguma prática de cirurgia, botica ou apenas com conhecimentos rudimentares de tratamento de mazelas e outras doenças de menor cuidado. No entanto, havia já alguma especialização tanto mais que os religiosos que ali prestavam serviço pertenciam à Companhia de Jesus, desde sempre associada à erudição e ao conhecimento académico e científico. Mas, "Macau continuava por esses anos sem um médico letrado e com autoridade para acudir a um erro, quando se processa uma cura, para o remediar e, também para desenganar a muitos quando lhes morrem os parentes ou pessoas de sua obrigação e cuidam que tal ou tal coisa foi a causa da morte, como, por vezes, me aconteceu, sendo falso o que nesta me impuseram, como refere o relatório daquele boticário anónimo, datado de 21 de Dezembro de 1625."A situação manteve-se durante muitos anos, com a passagem por Macau de alguns físicos que suscitaram dúvidas quanto à sua competência. Por vezes, o aparecimento de embarcações estrangeiras, com cirurgiões a bordo, resolvia a contento, algumas das enfermidades que resistiram ao tratamento ministrado em terra. Noutros casos, os médicos embarcados não passavam de barbeiros, sem outro engenho que não o do bom uso das lâminas no corte de barbas e cabelos. A cidade queixa-se frequentemente à capital do Reino, avançando com números de mortos, com o flagelo das pragas e a habitual inaptidão de alguns cirurgiões. Já no início do século XIX, o Leal Senado reitera a sua desconfiança naqueles médicos que nada sabem de medicina, erram a cada passo e causam grandes e lamentáveis estragos pela sua imperícia, assim mesmo nem cumprem as suas obrigações, limitando-se somente, pelo seu próprio interesse, no cumprimento de uma assistência mais cuidadosa ao Governador e mais Ministros quando o necessitam, mas o mísero povo é abandonado e é sobre quem recai todo o fundo destes males. Um quadro tanto mais negro quando se sabe que as comunidades estrangeiras residentes em Macau dispunham, invariavelmente, de um bom médico recrutado na Europa.
Em meados do século XIX funcionavam em Macau três hospitais: o da Misericórdia, que vai passar a chamar-se de S. Rafael, o de S. Lázaro e o Hospital Militar. José Caetano Soares, autor do mais completo relatório sobre a saúde em Macau, assinala não haver qualquer prova documental que motive a mudança do nome de Hospital da Misericórdia para S. Rafael. Aquele médico crê que tal tenha ocorrido após as obras de 1841, na sequência das quais foi colocado um nicho com a imagem do santo sobre o Portão principal.
E, na sequência de idênticos movimentos registados em Hong Kong, a comunidade chinesa de Macau organiza-se e dá corpo aos primeiros organismos de solidariedade social. Em 1868, é fundada a Associação de Beneficência Tong Sin Tong e, quatro anos depois, criado o primeiro hospital chinês de Macau, o Hospital Kiang Wu. Até então, e com a natural excepção do Hospital de S. Lázaro, para leprosos, os estabelecimentos existentes destinavam-se quase sempre ao internamento da população cristã da cidade. Por diversas vezes, e já no século XIX, foi recusado o auxílio a chineses com o argumento que seria catastrófico para a cidade se a sua morte ocorresse dentro de um hospital de portugueses. As regras do jogo e a divisão da cidade e soberania de acordo com os desejos dos mandarins impunham essa discriminação.
O Hospital Kiang Wu, fundado em 1872, inicia a sua actividade com o recurso a mestres de medicina chinesa e perante o quase alheamento dos serviços médicos portugueses. A sua condição de instituição criada por um grémio, permite alargar as suas actividades a outras formas de solidariedade como a educação, combate à fome e às epidemias e mesmo o auxílio a populações no interior da China.
Dois anos depois era inaugurado o Hospital Militar de S. Januário, um enorme edifício com capacidade para oitenta camas, erguido na colina sobre S. Francisco. A inauguração do estabelecimento ocorre quando governava Macau o Visconde de S. Januário e as autoridades logo se apressaram a desmentir as óbvias coincidências na atribuição do nome afirmando que o baptismo fora em homenagem ao santo e não ao governante. Para ali foram transferidos os doentes e os haveres do antigo hospital militar instalado em Sto. Agostinho desde 1857.
A necessidade de um hospital exclusivo para militares era antiga e praticamente uma consequência do estabelecimento, a partir de 1667, de uma força militar regular em Macau. Inicialmente, os militares doentes, soldados e oficiais, eram tratados no Hospital dos Pobres, da Santa Casa da Misericórdia. Mas desde logo decorreram conflitos de ordem vária tanto mais que a capacidade daquele hospital não permitia o súbito aumento no número de doentes, pois o Hospital dos Pobres foi feito e conservado por esta administração e mal pode receber os enfermos pobres… que ficam padecendo e não se podem receber todos, como se queixava, em 1787, a Mesa da Santa Casa ao Governador da Índia.
Depois de anos de pedidos, queixas e negociações, que levaram inclusivamente à construção de uma enfermaria militar em anexo àquele hospital, a tropa mudou-se para o velho convento de Sto. Agostinho, adaptado para as novas funções. O velho casarão, contíguo à Igreja de Sto. Agostinho, e que servira como quartel de um batalhão, dispunha de 68 camas e poucos anos depois registava um movimento anual de mais de 700 doentes, todos militares.
A inauguração do Hospital Militar de S. Januário, uma exigência pela cada vez menor capacidade de resposta das velhas instalações, constituiu acima de tudo motivo para as habituais demonstrações de grandiloquência patriótica – o maior e mais grandioso estabelecimento hospitalar das nossas colónias, como foi referido num dos muitos discursos que no dia 6 de Janeiro de 1874 assinalaram a entrega daquele edifício, um projecto arquitectónico do capitão de engenharia Dias de Carvalho e do Barão do Cercal, este vice presidente do Leal Senado e, na época, uma das personalidades de maior importância na vida de Macau. O projecto, disseram-no os seus autores, inspirou-se no traçado do hospital belga de S. Rafael – três enfermarias, com capacidade total para 60 camas, secção para isolamentos, enfermaria e quartos – prisão e alojamento para oficiais, situavam na casa da centena o número de camas daquele estabelecimento que, de início, satisfazia completamente as necessidades da tropa.
Macau sempre beneficiou das amenidades do clima e de uma certa benção divina que pouparam a cidade às epidemias e pragas que grassavam noutras metrópoles da região. Um clima suficientemente caldeado pela vasta arborização e pela brisa marítima que faziam as delícias dos estrangeiros expatriados noutras cidades da costa chinesa e que aqui passavam o Verão fugindo aos rigores da canícula. Exemplo desta situação foi a intenção dos franceses em comprarem, já no início do século XX, o Hotel Boa Vista para aí instalarem um sanatório e uma casa de repouso para os seus cidadãos residentes na Indochina. O hotel pertencia, na época, à Santa Casa, mas suspeitas, avolumadas pela intriga britânica, de que por detrás da proposta estaria a intenção francesa de um estabelecimento mais permanente em Macau goraram o negócio.
Nesses anos, as organizações assistênciais resumiam-se à Santa Casa da Misericórdia e às duas organizações chinesas, a associação Tong Sin Tong e o Hospital Kiang Wu. Como sempre acontecera, a Igreja Católica detinha o principal papel assistencial, desenvolvido através do Hospital de S. Rafael, de um asilo para rapazes e do apoio à infância desvalida. Nem sempre porém, os resultados desta acção eram os melhores, como o testemunha um dos governadores da época, Álvaro de Melo Machado, que assinala a falta de socorros médicos e a alegada intenção dos religiosos em mais arranjar almas para o céu do que energias para viver em terra.
O apoio do governo era inexistente, como o reconhece, numa espécie de autocrítica, aquele governador que justifica a inacção com o facto de ser impossível implementar medidas preventivas mais eficazes. Durante quase toda a primeira metade do século XX a ausência de surtos epidémicos em Macau iria continuar a ser explicada como resultante de circunstâncias impossíveis de compreender, como refere o médico Caetano Soares no relatório sobre os serviços de saúde do território, apresentado em 1930.
Já nessa altura, o Hospital Geral do Governo, que substituiu o antigo Hospital Militar, começara a receber doentes civis e mesmo chineses, embora subsistisse a predominância de militares entre os atendidos. São anos em que se procura levar por diante a reestruturação dos serviços de saúde de forma a cumprir-se o objectivo de atender ao maior número possível de necessitados. Apesar de tudo, as relações do departamento governamental com o Hospital chinês são praticamente inexistentes e a população chinesa continua a ignorar a medicina ocidental e os seus estabelecimentos.
Esta situação vai piorar com o deflagrar de vários conflitos na região, e a chegada a Macau dos refugiados da guerra sino-nipónica e, mais tarde, da invasão japonesa de Hong-Kong. São anos de grandes dificuldades em que os hospitais e as organizações de assistência fazem os impossíveis para acudir à desgraça generalizada.
O período do pós guerra conhece uma nova filosofia na prestação dos cuidados de saúde com uma maior intervenção governamental que afasta definitivamente os aspectos caritativos e beneméritos com que vinha sendo prestada muita da ajuda hospitalar e assistencial. O sistema oficial de saúde iniciou nova e importante fase de desenvolvimento com a decisão, nas medidas de acção governativa de 1984, de criar um novo sistema integrado de saúde, que veio a concretizar-se na nova lei orgânica destes serviços e na legislação relativa ao acesso aos cuidados de saúde.
Essa política implicou a criação duma rede de cuidados primários e a remodelação do Hospital Conde de S. Januário.
O C.H.C.S.J. dispõe-se actualmente de um moderno hospital, com instalações capazes e condizentes com os novos tempos, servidas pela mais avançada tecnologia. Com o previsível crescimento demográfico das ilhas, haverá necessidade de se construir um novo hospital na ilha da Taipa, conforme intenções já enunciadas ao longo dos tempos. Macau entra no século XXI com um adequado sistema de saúde, cumprindo uma tradição portuguesa que fundou, há mais de quatro séculos, o primeiro hospital europeu na China.
Texto incluído na página da Internet na Direcção dos Serviços de Saúde de Macau
As palavras de Melchior Carneiro, primeiro Bispo de Macau e que aqui instituiu o sistema de Misericórdia idêntico ao modelo fundado pela Rainha D. Leonor, confirmam todo um trabalho pioneiro no campo da assistência na saúde e na caridade que os portugueses realizaram em Macau desde, praticamente, os primeiro dias do seu estabelecimento nas costas da China. O acto de Melchior Carneiro constituiu a fundação do hospital europeu mais antigo na China, inicialmente designado como Hospital dos Pobres e, depois, baptizado com o nome que o tornaria conhecido durante vários séculos: Hospital de S. Rafael, hoje já inexistente mas recordado pelo belo edifício que, no coração da cidade, abriga agora o Consulado Geral de Portugal.
Quando da fundação deste hospital, foi criado igualmente o primeiro serviço de apoio aos leprosos, porventura aqueles que necessitavam de maior protecção e apoio, dada a generalização da doença e desterro a que eram votados pela família e população, os que dela padeciam. As diferenças de comportamento de chineses e ocidentais relativamente à doença e ao infortúnio chocaram os primeiros portugueses que aportaram a Macau. No entanto, e ao contrário do que apressadamente concluiram alguns portugueses, os chineses não eram indiferentes às desgraças alheias e os organismos de solidariedade da comunidade chinesa, incipientes na altura, desempenharam mais tarde um importante papel social, como aliás, ainda hoje acontece.
Já no século XVII há notícias de uma enfermaria existente no Colégio de S. Paulo que acudia os religiosos daquele seminário e também doentes do exterior. Uma enfermaria naturalmente vocacionada para o apoio à população cristã mas com uma precaridade no seu funcionamento que levanta algumas críticas por parte de um dos seus boticários que, em carta ao padre geral, confessa a sua inaptidão para o lugar: "Ainda que algumas curas me sucederam bem, fiz muitos erros por não saber e alguns deles graves, de que fiquei com muitos escrúpulos, particularmente 3 de que fiz sabedor V. Reverendíssima".
A enfermaria tinha capacidade, ao que se julga, para 60 camas atendidas por religiosos com alguma prática de cirurgia, botica ou apenas com conhecimentos rudimentares de tratamento de mazelas e outras doenças de menor cuidado. No entanto, havia já alguma especialização tanto mais que os religiosos que ali prestavam serviço pertenciam à Companhia de Jesus, desde sempre associada à erudição e ao conhecimento académico e científico. Mas, "Macau continuava por esses anos sem um médico letrado e com autoridade para acudir a um erro, quando se processa uma cura, para o remediar e, também para desenganar a muitos quando lhes morrem os parentes ou pessoas de sua obrigação e cuidam que tal ou tal coisa foi a causa da morte, como, por vezes, me aconteceu, sendo falso o que nesta me impuseram, como refere o relatório daquele boticário anónimo, datado de 21 de Dezembro de 1625."A situação manteve-se durante muitos anos, com a passagem por Macau de alguns físicos que suscitaram dúvidas quanto à sua competência. Por vezes, o aparecimento de embarcações estrangeiras, com cirurgiões a bordo, resolvia a contento, algumas das enfermidades que resistiram ao tratamento ministrado em terra. Noutros casos, os médicos embarcados não passavam de barbeiros, sem outro engenho que não o do bom uso das lâminas no corte de barbas e cabelos. A cidade queixa-se frequentemente à capital do Reino, avançando com números de mortos, com o flagelo das pragas e a habitual inaptidão de alguns cirurgiões. Já no início do século XIX, o Leal Senado reitera a sua desconfiança naqueles médicos que nada sabem de medicina, erram a cada passo e causam grandes e lamentáveis estragos pela sua imperícia, assim mesmo nem cumprem as suas obrigações, limitando-se somente, pelo seu próprio interesse, no cumprimento de uma assistência mais cuidadosa ao Governador e mais Ministros quando o necessitam, mas o mísero povo é abandonado e é sobre quem recai todo o fundo destes males. Um quadro tanto mais negro quando se sabe que as comunidades estrangeiras residentes em Macau dispunham, invariavelmente, de um bom médico recrutado na Europa.
Em meados do século XIX funcionavam em Macau três hospitais: o da Misericórdia, que vai passar a chamar-se de S. Rafael, o de S. Lázaro e o Hospital Militar. José Caetano Soares, autor do mais completo relatório sobre a saúde em Macau, assinala não haver qualquer prova documental que motive a mudança do nome de Hospital da Misericórdia para S. Rafael. Aquele médico crê que tal tenha ocorrido após as obras de 1841, na sequência das quais foi colocado um nicho com a imagem do santo sobre o Portão principal.
E, na sequência de idênticos movimentos registados em Hong Kong, a comunidade chinesa de Macau organiza-se e dá corpo aos primeiros organismos de solidariedade social. Em 1868, é fundada a Associação de Beneficência Tong Sin Tong e, quatro anos depois, criado o primeiro hospital chinês de Macau, o Hospital Kiang Wu. Até então, e com a natural excepção do Hospital de S. Lázaro, para leprosos, os estabelecimentos existentes destinavam-se quase sempre ao internamento da população cristã da cidade. Por diversas vezes, e já no século XIX, foi recusado o auxílio a chineses com o argumento que seria catastrófico para a cidade se a sua morte ocorresse dentro de um hospital de portugueses. As regras do jogo e a divisão da cidade e soberania de acordo com os desejos dos mandarins impunham essa discriminação.
O Hospital Kiang Wu, fundado em 1872, inicia a sua actividade com o recurso a mestres de medicina chinesa e perante o quase alheamento dos serviços médicos portugueses. A sua condição de instituição criada por um grémio, permite alargar as suas actividades a outras formas de solidariedade como a educação, combate à fome e às epidemias e mesmo o auxílio a populações no interior da China.
Dois anos depois era inaugurado o Hospital Militar de S. Januário, um enorme edifício com capacidade para oitenta camas, erguido na colina sobre S. Francisco. A inauguração do estabelecimento ocorre quando governava Macau o Visconde de S. Januário e as autoridades logo se apressaram a desmentir as óbvias coincidências na atribuição do nome afirmando que o baptismo fora em homenagem ao santo e não ao governante. Para ali foram transferidos os doentes e os haveres do antigo hospital militar instalado em Sto. Agostinho desde 1857.
A necessidade de um hospital exclusivo para militares era antiga e praticamente uma consequência do estabelecimento, a partir de 1667, de uma força militar regular em Macau. Inicialmente, os militares doentes, soldados e oficiais, eram tratados no Hospital dos Pobres, da Santa Casa da Misericórdia. Mas desde logo decorreram conflitos de ordem vária tanto mais que a capacidade daquele hospital não permitia o súbito aumento no número de doentes, pois o Hospital dos Pobres foi feito e conservado por esta administração e mal pode receber os enfermos pobres… que ficam padecendo e não se podem receber todos, como se queixava, em 1787, a Mesa da Santa Casa ao Governador da Índia.
Depois de anos de pedidos, queixas e negociações, que levaram inclusivamente à construção de uma enfermaria militar em anexo àquele hospital, a tropa mudou-se para o velho convento de Sto. Agostinho, adaptado para as novas funções. O velho casarão, contíguo à Igreja de Sto. Agostinho, e que servira como quartel de um batalhão, dispunha de 68 camas e poucos anos depois registava um movimento anual de mais de 700 doentes, todos militares.
A inauguração do Hospital Militar de S. Januário, uma exigência pela cada vez menor capacidade de resposta das velhas instalações, constituiu acima de tudo motivo para as habituais demonstrações de grandiloquência patriótica – o maior e mais grandioso estabelecimento hospitalar das nossas colónias, como foi referido num dos muitos discursos que no dia 6 de Janeiro de 1874 assinalaram a entrega daquele edifício, um projecto arquitectónico do capitão de engenharia Dias de Carvalho e do Barão do Cercal, este vice presidente do Leal Senado e, na época, uma das personalidades de maior importância na vida de Macau. O projecto, disseram-no os seus autores, inspirou-se no traçado do hospital belga de S. Rafael – três enfermarias, com capacidade total para 60 camas, secção para isolamentos, enfermaria e quartos – prisão e alojamento para oficiais, situavam na casa da centena o número de camas daquele estabelecimento que, de início, satisfazia completamente as necessidades da tropa.
Macau sempre beneficiou das amenidades do clima e de uma certa benção divina que pouparam a cidade às epidemias e pragas que grassavam noutras metrópoles da região. Um clima suficientemente caldeado pela vasta arborização e pela brisa marítima que faziam as delícias dos estrangeiros expatriados noutras cidades da costa chinesa e que aqui passavam o Verão fugindo aos rigores da canícula. Exemplo desta situação foi a intenção dos franceses em comprarem, já no início do século XX, o Hotel Boa Vista para aí instalarem um sanatório e uma casa de repouso para os seus cidadãos residentes na Indochina. O hotel pertencia, na época, à Santa Casa, mas suspeitas, avolumadas pela intriga britânica, de que por detrás da proposta estaria a intenção francesa de um estabelecimento mais permanente em Macau goraram o negócio.
Nesses anos, as organizações assistênciais resumiam-se à Santa Casa da Misericórdia e às duas organizações chinesas, a associação Tong Sin Tong e o Hospital Kiang Wu. Como sempre acontecera, a Igreja Católica detinha o principal papel assistencial, desenvolvido através do Hospital de S. Rafael, de um asilo para rapazes e do apoio à infância desvalida. Nem sempre porém, os resultados desta acção eram os melhores, como o testemunha um dos governadores da época, Álvaro de Melo Machado, que assinala a falta de socorros médicos e a alegada intenção dos religiosos em mais arranjar almas para o céu do que energias para viver em terra.
O apoio do governo era inexistente, como o reconhece, numa espécie de autocrítica, aquele governador que justifica a inacção com o facto de ser impossível implementar medidas preventivas mais eficazes. Durante quase toda a primeira metade do século XX a ausência de surtos epidémicos em Macau iria continuar a ser explicada como resultante de circunstâncias impossíveis de compreender, como refere o médico Caetano Soares no relatório sobre os serviços de saúde do território, apresentado em 1930.
Já nessa altura, o Hospital Geral do Governo, que substituiu o antigo Hospital Militar, começara a receber doentes civis e mesmo chineses, embora subsistisse a predominância de militares entre os atendidos. São anos em que se procura levar por diante a reestruturação dos serviços de saúde de forma a cumprir-se o objectivo de atender ao maior número possível de necessitados. Apesar de tudo, as relações do departamento governamental com o Hospital chinês são praticamente inexistentes e a população chinesa continua a ignorar a medicina ocidental e os seus estabelecimentos.
Esta situação vai piorar com o deflagrar de vários conflitos na região, e a chegada a Macau dos refugiados da guerra sino-nipónica e, mais tarde, da invasão japonesa de Hong-Kong. São anos de grandes dificuldades em que os hospitais e as organizações de assistência fazem os impossíveis para acudir à desgraça generalizada.
O período do pós guerra conhece uma nova filosofia na prestação dos cuidados de saúde com uma maior intervenção governamental que afasta definitivamente os aspectos caritativos e beneméritos com que vinha sendo prestada muita da ajuda hospitalar e assistencial. O sistema oficial de saúde iniciou nova e importante fase de desenvolvimento com a decisão, nas medidas de acção governativa de 1984, de criar um novo sistema integrado de saúde, que veio a concretizar-se na nova lei orgânica destes serviços e na legislação relativa ao acesso aos cuidados de saúde.
Essa política implicou a criação duma rede de cuidados primários e a remodelação do Hospital Conde de S. Januário.
O C.H.C.S.J. dispõe-se actualmente de um moderno hospital, com instalações capazes e condizentes com os novos tempos, servidas pela mais avançada tecnologia. Com o previsível crescimento demográfico das ilhas, haverá necessidade de se construir um novo hospital na ilha da Taipa, conforme intenções já enunciadas ao longo dos tempos. Macau entra no século XXI com um adequado sistema de saúde, cumprindo uma tradição portuguesa que fundou, há mais de quatro séculos, o primeiro hospital europeu na China.
Sem comentários:
Enviar um comentário