“Descobrir Maria Ondina Braga” é o título duma oportuna exposição biográfica que a Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva do Museu Nogueira da Silva, em Braga, organizou no corrente mês (que é o do seu aniversário) para relembrar aquela escritora solitária e sóbria que cruzou culturas e percorreu espaços da memória lusa, flutuando entre o ocidente e o oriente e sentindo sempre o apelo da partida e o desencanto da chegada. Depois de Angola e da Índia (Goa), passou alguns anos entre nós, como professora do Colégio de Santa Rosa de Lima, na primeira metade da década de 1960. Também foi leitora de Português em Pequim e tradutora de obras marcantes de grandes vultos da literatura universal. Maria Ondina Braga (1932 – 2003) teria feito 85 anos em 2017 e em Março próximo completam-se 15 anos que embarcou na sua derradeira e definitiva viagem.
Embora naturalmente muito reservada, ainda a conheci nesse tempo em Macau, quando frequentava os últimos anos do Liceu. Todavia, só em Lisboa, anos volvidos, já depois do lançamento dos seus primeiros livros (“Eu vim para ver a Terra”, 1965; “A China Fica ao Lado”, 1968; “Estátua de Sal”, 1969; e “Amor e Morte”, 1970) e quando ela regressou a Macau, em 1991, para assistir à apresentação da 4.ª edição de “A China Fica ao Lado” e da primeira edição em chinês deste seu livro de leitura indispensável, pudemos falar mais demoradamente, sobre a cidade ainda muito provinciana que ela aqui conheceu e uma China a sair do pesadelo comunista para entrar na modernidade. E foi-nos proporcionado um novo e último contacto quando saiu do prelo, no mesmo ano, “Nocturno em Macau”, obra que também merece uma versão chinesa. (...)
Ao escrever estas linhas, lembrei-me de procurar nas minhas estantes, entre milhares de papéis mal arrumados, uma sentida homenagem póstuma que lhe foi prestada por Ana Maria Amaro, minha saudosa professora de Geografia no Liceu de Macau e depois catedrática no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), entretanto também falecida. Desse texto que ela me facultou (reformulado e publicado mais tarde no volume VII da série de “Estudos sobre a China” do ISCSP (2005), achei por bem reproduzir algumas passagens que contribuem para um melhor entendimento da personalidade da escritora:
“Conheci a escritora Maria Ondina Braga em Macau. A década de 1960 ia no seu princípio quando ela chegou. Naquele pequeno meio, onde todos os portugueses europeus se conheciam, imediatamente se fez notar. Chegara alguém estranho à terra. Alguém que foi para ver a terra, tal como o registou no seu primeiro livro sobre aquele território, publicado poucos anos depois.
Quem era? No círculo limitado das famílias de militares, chefes de serviço, meia dúzia de professores do Liceu, além de alguns membros da comunidade local de luso-descendentes, ninguém sabia. Chegara uma rapariga. Nova na terra. Morena, alta, bonita, cabelos lisos muito negros. Estava alojada no Colégio de Santa Rosa de Lima. Quem era? Donde viera? Fazer o quê? Ninguém sabia responder.
Depressa, essa mulher sozinha fez algumas amizades. Seriam amizades? E deixou-se mergulhar naquela terra desconhecida, ainda nos anos 1960 exótica terra mestiça e feiticeira. Ela ia para ver a terra. E viu-a, em pouco tempo, como poucos a viram mesmo em muitos anos de estadia.
Vivia no mundo austero das irmãs franciscanas onde as outras professoras, todas chinesas, comunicavam com ela em inglês. Fora desse mundo dava-se com outras jovens portuguesas, algumas delas professoras no Liceu local Infante D. Henrique. Eram minhas colegas naquele Liceu. E eram elas que comentavam as suas saídas nocturnas, as suas idas a Coloane, os flirts com os oficiais solteiros da guarnição. Aquele terrível malinguar de Macau.
Maria Ondina, porém, nunca se integrou nesse círculo de falsas amigas. Ouviu, sim, das colegas chinesas, histórias dum Macau profundo como a da casa assombrada: ‘a porta abriu-se, uma mão a abrir a porta, uma mão sem braços’ (Nocturno em Macau, p. 99). Também conheci essa casa; casa antiga, no ‘Largo das três luzes’, nos limites de Mong Há. Todos, ali, mudavam de passeio. Era uma ‘malissombrada’, um lugar ‘mofino’, no dizer da terra.
Nos seus livros perpassam não só essas cenas, mas também muitas outras que preenchiam as conversas das pessoas desocupadas. Os tenentes da guarnição, o ‘Solmar’, os restaurantes chineses mais pequeninos são imagens que perpassam nas páginas desse seu livro.
Aliás, neste livro, que a Maria Ondina me ofereceu, ela escreveu uma dedicatória onde o considera ‘modesto trabalho meu de ficção’. Eu, que vivi Macau nesse período, posso dizer que a ficção neste livro é apenas uma roupagem mais ou menos transparente que envolve um corpo bem real. Com nomes diferentes surgem nas suas páginas, personagens que eu conheci, tais como cenas e episódios a que assisti ou que ouvi contar. E no fundo de toda aquela fluída narração emerge a sua paixão pelo chá, a sua imensa solidão, a sua nostalgia e o seu desejo de encontrar o lugar certo para viver, que nunca era aquele onde ela se encontrava. (…)
Reencontrámo-nos em Lisboa na Embaixada da República Popular da China nos finais da década de 1970. Foi uma redescoberta e o início duma sincera amizade. Maria Ondina, diante duma chávena de chá, (eram assim os nossos convites para as nossas tardes de conversa) falava da China, de Macau e dos livros mais recentes que haviam saído bem como dos seus autores preferidos.
Alguns textos, pequenas crónicas dispersas, pouco conhecidos, são, aliás, o espelho da sua eterna melancolia de que nunca conseguiu libertar-se. Julgo que desistiu. Era a escrever que procurava sofrer menos a sua angústia de se sentir tão só e por vezes tão mal compreendida e tão mal-amada.
É habitual ouvir dizer que quem sofre traduz melhor em versos o que sente. E a Maria Ondina era uma poetisa sensível. Aliás, essa poesia reflecte-se em muitas páginas da sua obra em prosa. Mas também fez versos. Versos de que não gostava de falar por não os considerar ao nível da sua prosa. Recusava considerar-se poetisa. Apenas ficcionista. Mas a verdade é que é precisamente nesses seus poemas que toda a sua amargura se traduz, tal como nalguns textos inéditos que talvez não tenha querido nunca ver publicados. Como eu entendo esses textos! São conversas connosco, com memórias, com recordações dolorosas, com uma interrogação permanente. Numa busca de respostas nunca encontradas, com a angústia dum vazio que nada consegue preencher.”
Maria Ondina Braga foi distinguida com importantes prémios literários. Em 1994, a Câmara Municipal de Braga, sua terra natal, concedeu-lhe a Medalha de Ouro da Cidade e, em 2005, instituiu um prémio literário com o seu nome. O Museu Nogueira da Silva criou nas suas instalações o Espaço Maria Ondina Braga. Um colóquio internacional foi-lhe dedicado em 2016, de que resultou o volume de ensaios “Maria Ondina Braga. (Re)leituras de uma Obra”, coordenado por professores da Universidade Católica Portuguesa e da Universidade do Minho. Em 2017, uma semana do livro de Macau em Lisboa incluiu uma sessão dedicada à escritora na Biblioteca Nacional, muito bem protagonizada pelo advogado e escritor José António Barreiros. Chegou-nos, entretanto, a notícia de que está em preparação a reedição da sua obra completa.
Texto da autoria de Jorge Rangel publicado no Jornal Tribuna de Macau, 22.1.2018
Mais informações sobre Maria Ondina Braga aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário