O Rei do Cambodja, Somdach Préa Noradon, visitou oficialmente Macau no dia 21 de Julho de 1872. Cento e quarenta e três anos depois é possível reconstituir a visita e perceber a motivação política que lhe estava subjacente, muito se estranhando que ela esteja arredada das histórias, das cronologias ou das antologias dedicadas ao Território. Devemos a Pedro Gastão Mesnier, secretário do Governador Visconde de São Januário, jornalista e escritor (mais tarde agente secreto do governo português em vários países da América do Sul), uma descrição soberba da estadia do Rei do Camboja em Macau, publicada na “Parte Não Official” do “Boletim da Província de Macau e Timor”, do dia 27 de Julho de 1872. O texto não está assinado, mas é seguro afirmar que foi redigido por Pedro Gastão Mesnier porque possui a mesma matriz estilística, estética e ideológica que encontramos, por exemplo, na “Descrição da Viagem de Sua Exª. o Sr. Visconde de São Januário, governador-geral da Índia Portuguesa às Praças do Norte – Bombaim, Damão, Diu, Praganã, Surrate”, que começou a ser publicada no mesmo Boletim a partir de 6 de Abril. A descrição é meticulosa, informativa e por vezes servida com um particular sentido de humor.
A emigração chinesa através do porto de Macau era realmente o assunto fracturante que agitava a governabilidade do Território, cuja elite lia com uma curiosidade um pouco menos do que literária os sucessivos artigos sobre “A Sociedade e o Socialismo”, do professor A. Franck do College de France, e traduzidos do lisboeta “Jornal da Noite” para o circunspecto “Boletim da Província de Macau e Timor”, que também publicitou a “Convenção Consular celebrada entre Portugal e a República do Perú”. Consultando o mapa das embarcações saídas do porto de Macau, durante o primeiro semestre de 1872, verifica-se o registo de uma elevada média mensal de saídas, cerca de 9 322 passageiros. Números oficiais é claro. Eça de Queirós escreveu o relatório “A Emigração como Força Civilizadora” em 9 de Novembro de 1874, publicado por Raúl Rego em 1979, que é de facto uma reflexão inteligente e acutilante sobre a emigração dos cules através do porto de Macau.
Nesse mesmo século XIX, os impérios europeus procuravam firmar-se numa intercontinentalidade política, militar e económica, respaldados num escasso respeito pelas outras civilizações. É na evolução desse contexto que o Cambodja se transforma num protectorado francês, a par do Laos e do Vietname, constituindo esse todo a Indochina. A expansão francesa no extremo oriente necessitava de legitimação diplomática e de relações bilaterais amigáveis com as possessões ocidentais circunvizinhas, até porque a jurisdição religiosa tinha sido um irritante foco de conflitos ainda não sanados entre as diversas congregações. Macau e Hong Kong eram peças essenciais dessa estratégia política. Uma pela antiga linhagem no relacionamento entre o oriente e o ocidente, e a outra pela pujança do seu crescimento económico suportado por um infrene militarismo inglês. Pela obra do Padre Manuel Teixeira, “Portugal no Camboja”, publicada em 1983, ficamos a conhecer um pouco das intrincadas relações luso-cambodjanas que remontam ao século XVII. Esta visita foi considerada muito auspiciosa para a governação do Visconde de São Januário, cujo mandato se iniciara havia pouco tempo, desde 23 de Março de 1872, substituindo o Almirante António Sérgio de Sousa [pai do futuro ensaísta e pensador António Sérgio].
Acompanhemos, então, o fio da narrativa de Pedro Gastão Mesnier.
O Rei do Cambodja, Somdach Préa Noradon, aporta a Macau a bordo da corveta francesa “Bourayne”, numa visita oficial programada pelo cônsul “Mourat, residente político francês”. Depois, a “canhoneira Camões, embandeirada nos topes e seguida pela lancha a vapor Andorinha, foi buscar o Rei a bordo da Bourayne”. A população acorreu em massa para presenciar o inusitado espectáculo: “Um grande concurso de povo estava aglomerado na Praia Grande e todos os olhos seguiam com ávida curiosidade a esbelta canhoneira que sulcando airosamente as águas então tranquilas do nosso porto, voltava com esse misterioso potentado que o poder francês arrancara ao país das legendárias narrações dos nossos antigos viajantes, para o apresentar no mundo das realidades”. A narrativa segue em crescendo de pormenores: “Da varanda do palácio do governo desfrutava-se um magnífico espectáculo. A guarda de honra de música na frente marchava para o cais de desembarque fazendo refluir pelo famoso cais circular da Praia Grande a multidão de trajos variados e multicolores que já dificultava o trânsito. Na frente dos vários consulados que estão todos estabelecidos neste bairro de Macau, tremulavam sobre elevadas hastes as suas respectivas bandeiras”. Finalmente, aparece a comitiva real: “Daí a algum tempo desembarcavam uns indivíduos de pequena estatura envolvidos em mantos de lhama de ouro e resplandecentes com brilhantes. Era o Rei do Cambodja seguido da sua corte. Foi aí recebido pelo secretário geral do governo e outros funcionários e conduzido no palanquim de gala ao palácio do governo onde S.Exª. com o seu estado maior, o leal senado e outros cavalheiros o esperava”.
O governador Visconde de São Januário, “fez sentar Sua Majestade no lugar que lhe fora destinado e dirigiu-lhe uma breve alocução em francês manifestando-lhe o prazer com que recebia em Macau um tão ilustre hóspede, acrescentando que ele teria ocasião de observar o modo porque nesta colónia sábias e humanas instituições tem assegurado o domínio português”. O Rei foi descrito deste modo: “Somdach Préa Noradon rei de Cambodja é um homem de 40 anos, estatura pequena e da cor característica da raça amarela. Fala um pouco o francês e parece ser mui observador e inteligente. O seu trajo compunha-se de jaqueta com abotoaduras de brilhantes e profusão de pedras preciosas na gola, o purvem indiano, sapatos de fivela de ouro e meia de seda. O pano manufacturado em Phômpeng é riquíssimo sendo formado de fios de ouro e apresentando cores muito vivas. Entre os diamantes, avultava pelo brilho e grandeza um que o rei usava no anel”.
O Rei ficou hospedado no palácio do governo, “tendo passado a tarde na aprazível Flora Macaense, voltando às sete horas para o palácio”. Ao jantar, lamenta o cronista que o Rei “deixando o seu trajo nacional apareceu de farda europeia de general, perdendo assim muita da sua asiática originalidade”. A manhã do dia seguinte, 22 de Julho, foi consagrada a visitar alguns serviços públicos, mas não só. Sempre acompanhado por Pedro Gastão Mesnier, começou pelo Leal Senado: “admirou muito a luxuosa sala onde o actual governador tomou posse do governo, visitou a capela que lhe está anexa e fez algumas observações gerais acerca de questões religiosas que eram muito de admirar na boca de um asiático” ; seguiu-se a Procuratura dos Negócios Sínicos, “e tanto ele como os oficiais franceses informaram-se mui particularmente acerca desta vasta repartição, admirando o sábio mecanismo com que regulamos as nossas complexas relações com uma raça tão diversa por índole e tradições. Pela ordem admirável que reina em todos os trabalhos desta repartição recebeu o digníssimo procurador, o dr. Pinto Bastos, os mais justos elogios”. Por uma questão de oportunidade, interrompeu a sequência de visitas a organismos públicos para “assistir a uma representação no teatro chinês do Matapau, manifestando a sua satisfação com uma avultada dádiva aos actores”. As visitas foram retomadas, desta vez para “o tribunal judicial gabando a sua excelente disposição e asseio”. O Rei aceitou o convite do presidente do Leal Senado, doutor Lourenço Marques, para descansar em sua casa e visitar a gruta de Camões: “a todos encantou este lugar delicioso, os jardins que o circundam, e a frescura que se goza debaixo do copado e grandioso arvoredo. O rei perguntou pelos detalhes da vida do homem ilustre que imortalizou o nome destes rochedos e escutou com interesse a narração de glórias e martírios, de aventurosas expedições, e de perigos vencidos que anda ligada ao nome do nosso grande poeta”.
Às seis horas, no largo do Chunambeiro, passou revista ao “batalhão de linha, artilharia e o batalhão nacional”. Este pormenor não escapou ao nosso cronista: “Estavam as janelas todas guarnecidas de formosas macaenses e era verdadeiramente extraordinário o concurso do povo que veio presenciar as evoluções dos nossos soldados”. Concluída a “revista com uma continência geral voltou o rei para o palácio onde o esperava o jantar de despedida”. Após o jantar e cerca das “dez horas principiou a soirée com a chegada das formosas convidadas. O rei parecia estar muito satisfeito e decerto lastimou consigo que o tipo cambodjano se afastasse tanto do português. Os Srs. Antenori e Mesnier tocaram ao piano a Ouverture das Semiramis a quatro mãos, e as exmas. Sras. D. Maria Leite Baracho, D. Belarmina Homem de Carvalho e D. Hermínia Homem de Carvalho, cantaram algumas árias e duetos com o gosto e a perfeição que ordinariamente só se encontram em artistas consumados. O Sr. D. J. de Navarro que foi vice-cônsul de Espanha nesta cidade e que agora ocupa este lugar em Hongkong encantou a todos nos duetos em que tomou parte com a sua voz simpática e vibrante. Dançaram-se algumas quadrilhas e valsas e só pelas três horas é que se desfez tão agradável reunião”.
A visita a Macau estava terminada: “O rei do Cambodja partiu no dia seguinte pela manhã, sendo acompanhado até ao cais por S. Exª. O Governador, e até ao Bourayne pelo secretário do governo e alguns funcionários da colónia, civis e militares”. Que imagem de Macau terá guardado, no seu espírito, o Rei do Cambodja?
Outras visitas tiveram registos diferentes. A de Sua Alteza Imperial o Grão Duque Alexis da Rússia, em 29 de Setembro, escassas linhas mereceu. No fim do ano, o Visconde de São Januário desloca-se a Cantão e aí sim, o registo mundano, político e diplomático foi deveras interessante. Pedro Gastão Mesnier notabilizou-se ao serviço de uma diplomacia patriótica que promovia Macau, sobretudo a imagem do Governador. E é uma enorme injustiça que raramente tenha emergido das notas de rodapé da história de Macau.
Estava em marcha um grande empreendimento, o “Projecto do futuro Hospital Militar denominado Hospital de São Januário que deve ser construído na colina do monte de S. Jerónimo”. Ontem como hoje, Macau encontrou sempre polos de desenvolvimento, sobretudo formas notáveis de divulgar esses projectos.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 21.7.2015
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