quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Notas sobre a vida de José Vicente Jorge

José Vicente Jorge nasceu em Macau na Freguesia de São Lourenço, a 27 de Dezembro de 1872. Foi baptizado no dia 29 de Dezembro, na Igreja paroquial de São Lourenço pelo vigário da mesma, padre Francisco Xavier Castela. A família Jorge encontra-se em Macau seguramente desde 1700.
O seu avô paterno, José Vicente Caetano Jorge, nasceu na freguesia de São Lourenço em 17 de Março de 1803 e faleceu provavelmente a 31 de Março de 1857. Estudou ciência náutica, após o que enveredou por uma bem sucedida carreira de negociante e exportador em navios próprios, granjeando uma sólida fortuna. Esteve também ligado ao negócio da emigração de trabalhadores chineses, pelo que foi criticado, tal como outros empresários envolvidos neste negócio, por Eça de Queirós. Foi almodacém da câmara em 1831,vereador entre 1837 e 1838, procurador do concelho em 1840 e 1845, e provedor da Santa Casa da Misericórdia.
Casou pela 1ª vez com Ana Rita Inocência Lopes de quem enviuvou em 1849. Casou pela 2ª vez, com Emília Antónia Xavier, provavelmente, na igreja de Santo António. Um dos filhos desta ligação foi Câncio José Jorge, nascido em 4 de Dezembro de 1849. Formado como Interprete--tradutor, Câncio Jorge, foi administrador do Concelho de Macau, vereador, vice-presidente e presidente do Leal Senado e secretário do Instituto Humanitário Firmino da Costa. Em 27 de Outubro de 1883 foi nomeado cônsul interino de Portugal no Sião e nos estabelecimentos britânicos dos estreitos de Singapura, Malaca e suas dependências.
Era pessoa influente nas comunidades portuguesa e chinesa de Macau na segunda metade do séc. XIX, tendo sido um dos sócios fundadores do Clube União em 1879 e eleito seu secretário em 1899, integrando em 1898 a Comissão Comemorativa do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. Câncio José Jorge faleceu em São Lourenço em 22 Dezembro de 1900.
À semelhança de outras figuras que vieram a destacar-se nos meios intelectuais de Macau na viragem do séc. XIX para o séc. XX, José Vicente Jorge estudou sempre em Macau. O seu ambiente familiar era decerto de grande envolvimento cultural. Seu pai, jurista e homem influente na governação de Macau e nas suas relações exteriores, muito deve ter influenciado o seu desenvolvimento intelectual e marcado as suas preferências culturais. Tal como se usava na altura, aprendeu as primeiras letras em casa, falando desde o berço o português e o cantonense.
O Liceu de Macau só foi inaugurado em 1894, altura em que José Jorge já tinha vinte e dois anos, estava à beira do casamento e era intérprete tradutor. Na sua geração e antes da fundação do Liceu, havia em Macau as seguintes escolas mais importantes: Escola Central do Sexo Masculino, Escola Particular D. Maria Outeiro da Silva, Escola do Príncipe Real D. Carlos e o Seminário Diocesano. Foi neste último estabelecimento de ensino, por ele anteriormente frequentado, que seu pai o matriculou. O ensino era rigoroso com essa equipa docente e, dos 326 alunos que se matricularam no ano seguinte, apenas quatro obtiveram a aprovação final. Durante o período de formação de José Vicente Jorge, figura como professor de chinês (dialecto de Pequim) Pedro Nolasco da Silva, que sobre ele veio a exercer grande influência no desenvolver da sua maturidade profissional.
Em 21 de Novembro de 1895, data do seu casamento com Matilde Pacheco, e segundo consta do respectivo assento, José Vicente Jorge era já intérprete-sinólogo da Repartição do Expediente Sínico. Após ter terminado os estudos secundários, fez a sua formação na Escola de Intérpretes daquela repartição. Ainda aluno passou a integrar, em 12 de Março de 1890 o quadro da mesma Repartição e dedicou a essa actividade a primeira parte da sua vida profissional. Para além das línguas chinesa e portuguesa, a escola de intérpretes exigia curricularmente o conhecimento do inglês e do francês e de uma formação bastante diferenciada em História, Literatura, Filosofia e Arte Chinesa nas suas diversas expressões.Dedicou-se a fundo, desde cedo, ao estudo da história das relações diplomáticas entre Portugal e a China, nomeadamente através de Macau, tornando-se posteriormente destacado elemento dentro deste relacionamento. (...)
Desde 1890 e para o resto da vida em Macau, José Jorge é pois tradutor e intérprete da Repartição do Expediente Sínico, assinando numerosas traduções de chinês para português e de português para chinês, figurando o seu nome em muitos documentos oficiais e na imprensa local. Vai dando, entretanto, a sua colaboração em outros campos da actividade cultural, social e intelectual de Macau. Em 1898, secretaria a comissão executiva dos festejos do quarto centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia. Em 1903, O Patriota noticia a sua nomeação para reger a cadeira de língua sínica no Instituto Comercial, anexo ao Liceu de Macau, por proposta do conselho escolar do mesmo. Em 1907, publica o primeiro volume da obra San-Tok-Pun – Novo Methodo de Leitura, tradução com anotações suas para o ensino da língua chinesa. O projecto inicial era de oito volumes, mas só foram editados dois, datando o último de 1908. Cerca de 15 de Junho de 1908 é destacado como intérprete para a Legação de Portugal em Pequim, partindo para a sua longínqua missão logo em 20 de Junho.
A família, composta pela sua mulher, mãe e os seis filhos do casal nascidos até à altura juntar-se-lhe-á em Novembro do mesmo ano. Uma vez instalado em Pequim, contacta com grandes conhecedores da cultura e da arte chinesas que, considerados por ele como os seus verdadeiros mestres, contribuem para a consolidação da sua já bem desenvolvida formação e lhe transmitem o saber necessário para a realização dos seus futuros trabalhos e acompanha de perto o movimento reformador republicano que se forma em Pequim.
Em 16 de Maio de 1909, o Vida Nova noticia, a pág. 3: [...] É-nos em extremo agradavel dar aos nossos leitores a noticia de que o nosso amigo o Sr. José Vicente Jorge, digno sub chefe da Repartição do Expediente Sinico de Macau, hoje addido á legação de Portugal em Pekim, como secretario chinez, foi galardoado com a rara e apreciavel mercê honorifica do Dragão Duplo, nº 1 da 3ª classe. Esta distincção é tanto mais de apreciar quanto é certo que insignias d´esta classe só são concedidas aos primeiros secretarios das legações. As nossas sinceras felicitações.[...]
Chegado a Macau após umas curtas férias e, embora continuando a ser classificado como 2º intérprete de 1ª classe e subchefe da Repartição Técnica do Expediente Sínico, passa a exercer interinamente, desde 26 de Junho de 1911, as funções de chefe com a simultaneidade inerente ao cargo da Chefia da Procuratura do Expediente Sínico. Exerce essas chefias até 1920, com múltiplas deslocações a Cantão em missões especiais, como delegado do governador de Macau.
É nomeado várias vezes para o Conselho da Província de Macau como aconteceu em 1913/1914, integra a Comissão Directora do Colégio de Santa Rosa de Lima no ano lectivo 1913/1914, preside regularmente ao júri dos exames dos alunos do Expediente Sínico e retoma, no finais de 1911, a regência interina da cadeira de Língua Sínica no Instituto Comercial, por nomeação do Leal Senado. Já deste período é a sua tradução das Leituras Chinesas, Kuok Man Kau Fo Shü, livro destinado ao ensino de chinês em Macau, livro esse que sido mandado adoptar pelo Ministério da Instrução Pública da Nova República Chinesa. Esta obra é a primeira que faz em colaboração com o seu colega e amigo Camilo Pessanha. Situa-se ainda neste período uma tradução que ofereceu à Repartição do Expediente Sínico, com 177 páginas dactilografadas e inúmeras anotações do tradutor: A Sociedade dos Três ou A Sociedade Céu e Terra, O Lótus Branco e outras Sociedades Secretas. Esta obra, de imenso interesse para o conhecimento da história e dos costumes chineses, foi traduzida do livro publicado em Hong Kong em 1900, da autoria de William Stanton, The Triad Society or Heaven and Earth Association. Em 1919, é nomeado vogal da Comissão de Assistência Judiciária. Alguns meses após a sua aposentação do Expediente Sínico, será nomeado em Novembro de 1920 na qualidade de solicitador, 2º Juiz substituto do Tribunal Privativo dos Chinas para o ano judicial de 1920-1921 e, simultaneamente, vogal representante da comunidade chinesa ao Conselho Legislativo. Voltará a exercer as funções de 2º Juiz substituto pelo menos em 1921, 1923 e 1926. Nessa altura, Agosto de 1920, inicia com entusiasmo a segunda fase da sua vida. No dia 27 daquele mês, é nomeado para reger provisoriamente as cadeiras do 3º grupo do Liceu Central de Macau. Toma posse em 6 de Novembro do mesmo ano e a provisoriedade dura até 1931, sendo regente da cadeira de inglês.
No Boletim Oficial de 19 de Junho de 1920, são publicados os estatutos do Instituto de Macau. Fundado pelos Drs. Humberto de Avelar e Tello de Azevedo Gomes, era uma instituição que reunia os homens mais cultos e estudiosos de Macau de então, embora pudesse haver grandes diferenças entre eles. Para além dos fundadores na fotografia aqui apresentada e divulgada por Danilo Barreiros no seu livro, O Testamento de Camillo Pessanha (Lisboa, Bertrand Editora, 1961), distinguem-se Camilo Pessanha, D. José da Costa Nunes e Manuel da Silva Mendes. A vida do Instituto foi no entanto curta e a sua obra limitou-se a algumas conferências no Grémio Militar.
A 5 de Maio de 1931, termina a sua actividade docente no Liceu de Macau. A partir de então dedica-se a uma outra actividade que tinha iniciado oficialmente quando foi registado o seu compromisso de honra como solicitador da comarca de Macau. Para além de toda a bagagem jurídica herdada do convívio com o pai, Câncio Jorge, e com o sogro, Albino António Pacheco, ambos advogados provisionários e ambos magistrados, ele próprio tivera uma vida ligada ao Direito e às leis portuguesas, internacionais e chinesas. O reconhecimento do Governo Português também lhe chega por essa época ao ser agraciado em 1926 com o grau de Comendador da Ordem Militar de Cristo. Na pequena introdução que faz ao seu livro Notas sobre a Arte Chinesa (Macau: Tipografia Mercantil, 1940 – 1ª ed.; Macau: Instituto Cultural de Macau, 1995- 2ª ed.) e explicando o livro ilustrado exclusivamente com peças da sua colecção de “cerca de 10.000 peças, representando os principais ramos de arte chinesa – cerâmica, bronze, jade, pintura, caligrafia, escultura, gravura, esmalte, laca, bordado e mobília” José Vicente Jorge esclarece: “Não é um tratado sobre cerâmica chinesa o que apresento, pois a tanto não me abalançava. São simples apontamentos, tirados de vários livros, de conversas tidas com alguns coleccionadores chineses.” Esta enorme colecção, comprada ao longo de toda a vida, estava exposta na altura em que o livro foi feito num casarão, na Rua da Penha nº 20, que José Jorge tinha adquirido em 1919 e que albergava, para além da sua grande família, as cerca de 10.000 peças de arte que refere na introdução ao livro. Sobre o seu fim, pode-se ler o que José Diogo Seco Ribeiro escreveu no seu artigo “A Colecção de Arte Chinesa do Poeta Camilo Pessanha”: “Infelizmente, grande parte desta colecção é vendida, para a América, tendo-se perdido o seu rasto.” Muito provavelmente esta venda efectuou-se depois do fim da Segunda Guerra Mundial (período bastante difícil para Macau), e imediatamente antes de José Vicente Jorge se retirar para Lisboa onde virá a falecer em 1948. O que restava da colecção foi ividido pelos seus dez filhos. O conjunto de moradias que tinham como acesso um logradouro com a entrada no nº 20 da Rua da Penha, foi vendido em Maio de 1948, seis meses antes da morte de José Jorge. Despido das suas talhas, dos seus bronzes, das suas tapeçarias e cerâmicas, a sua propriedade foi inscrita a 15 daquele mês e ano a favor da Missão do Padroado Português no Extremo Oriente, representado por D. João de Deus Ramalho. O palacete, por tanta gente visitado como Museu, transformou-se em convento e nele foi instalado o “Noviciado de Notre Dame des Anges”; Monsenhor Manuel Teixeira refere que em 1961 viviam ainda no vetusto casarão duas religiosas canadianas e quatro professas chinesas (!). Em 1966-1967, com a ameaça da Revolução Cultural e sua possível extensão a Macau, os noviciados foram evacuados para a Formosa e a casa ficou deserta e em degradação irreversível.
Três anos mais tarde, em Outubro de 1970, é alienado pelo Padroado e, a partir de então, a área que ocupava é revendida em lotes parciais conhecendo demolições e construções sucessivas até ao seu completo desaparecimento em 1973.
Camilo de Almeida Pessanha, um dos nomes maiores da poesia portuguesa nasceu em Coimbra cinco anos antes de José Vicente Jorge, a sete de Setembro de 1867. Com 27 anos de idade chega a Macau em 10 de Abril de 1894 para integrar o grupo fundador do recém criado liceu de Macau. Na altura da inauguração do Liceu José Jorge tinha vinte e dois anos e era intérprete tradutor no seu início de carreira. Veio a ser colega de Pessanha como docente do liceu muitos anos mais tarde, em Setembro de 1921. Mas os interesses comuns fizeram com que os dois se cruzassem várias vezes nas suas vidas em Macau e entre os dois crescesse uma sólida amizade baseada em muita admiração e respeito que foram desenvolvendo um pelo outro. Embora o conhecimento entre os dois seja certamente anterior, foi em 1911 que se começaram a encontrar com maior frequência, cimentando mais fortemente as suas ideias, actividades comuns e a amizade. São nomeados conjuntamente para o conselho da província de Macau e figuram regularmente nos júris dos exames dos alunos do Expediente sínico. Como já referi atrás o livro Kuoc Man Cau Fo Su foi publicado em 1915 numa edição de trezentos exemplares custeada pelo Governo da Província, com a co-autoria na tradução: José Jorge e Camilo Pessanha. No mesmo ano de 1914, a 13de Setembro, o Progresso inicia a publicação das “Elegias Chinesas”, traduzidas por Camilo Pessanha. Em 1915, a Imprensa Nacional edita em Macau um “Catálogo da Colecção de Arte Chinesa oferecido ao Museu de Arte Nacional por Camillo Pessanha”. O exemplar reproduzido foi o que pertenceu a José Vicente Jorge e contem uma dedicatória pela mão do poeta: “A seu bom amigo e mestre José Vicente Jorge, testemunho da muita consideração e agradecimento pelos seus favores.” Macau, Julho 29, 1915 Camillo Pessanha Segundo deixou escrito o seu genro Danilo Barreiros, em Abril de 1945, José Jorge manifestou a intenção de doar a um museu de Portugal a sua colecção ou pelo menos as peças mais valiosas da mesma, a exemplo do que fizera o seu amigo Camilo Pessanha; a casa com o seu recheio seriam doadas a Macau, para funcionarem como um museu. Como o seu filho Américo seria o primeiro a embarcar para Lisboa seria ele o portador da imensa colecção e negociador da mesma. Esta decisão não foi aceite por todos os filhos o que levou o coleccionador a escrever em 28 de Abril de 1945 uma carta em que determina o destino da sua colecção. Ainda segundo Danilo Barreiros, durante a ocupação japonesa de Hong Kong, os bancos emissores puseram a circular milhares de notas – as novas notas de Hong-Kong que desvalorizaram logo na sua emissão cerca de 80%, pois constava que perderiam totalmente o seu valor no fim da guerra se a vitória fosse dos aliados. Isto aconteceu, mas as notas não desvalorizaram, o que fez algumas fortunas a quem as tinha comprado. José Jorge não foi bafejado por essa sorte pois comprava apenas dinheiro chinês perdendo assim grande parte do seu capital.

A guerra terminou em 15 de Agosto de 1945. Os macaenses estavam cansados de tudo o que tinham passado e resolveram partir. Os destinos foram vários: Américas, Austrália, África e, claro está, Portugal. Da família Jorge o primeiro já tinha partido em 1935. No princípio de 1946, seguiram no navio “Quanza” o patriarca, com sua filha Amália, o neto João Vasco, a nora Dádá e o neto Zeca. Chegaram a Lisboa em Março de 1946 e instalaram-se num andar na Avenida Praia da Vitória, 3 – 1º Dto. Lisboa, que tinha sido alugada pelo filho Américo. José Jorge, em Lisboa entristecia, passeava a ver as obras da Praça do Areeiro, descurava a sua diabetes na Pastelaria Anabela na Almirante Reis, rodeado dos seus netos e cúmplices de nada dizer em casa dos bolos que ia comendo. À noite conversava com as inúmeras visitas que iam cumprimentá-lo, entre os quais o seu amigo e retratista Fausto  Sampaio. Uma vez por semana, jogava “bridge” . No verão de 1947, passou férias com alguns dos filhos e netos em São Martinho do Porto e na Quinta do Covêlo em Famalicão. A tristeza, a diabetes, a saudade de Macau fizeram com que subitamente o seu coração parasse em 22 de Novembro de 1948, quando sentado no seu sofá lia o “Diário de Notícias” ao lado do seu neto que aqui o recorda, Pedro Manuel. Foi sepultado num jazigo mandado construir em sua homenagem por seus filhos, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa.
Texto de Pedro Barreiros e Graça Pacheco Jorge
Nota: imagens do livro referido, algumas da autoria de Carlos Cabral, outro ilustre macaense sobre o qual promete dar 'notícias' em breve.

2 comentários:

  1. The book about the ceramics collection is in my father's estate if anyone is interested.

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  2. Tive um colega Macaísta cujo o nome era Jorge Silva em 1975 - engraçado

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