sábado, 14 de maio de 2011

Memórias de Vitalina sobre seu pai António de Matos Oliveira - 2ª parte

António de Matos Oliveira nasceu a 18 de Novembro de 1927 em Vale de Besteiros no concelho de Tondela e faleceu a 23 de Abril de 2010.  Cumpriu o serviço militar na então denominada Colónia de Macau entre 1949 e 1951. A sua passagem por Macau foi breve mas marcante. Tudo começou no antigo Cais de Santa Apolónia. Era aí que os soldados 'apanhavam' os navios que os levavam para "Ultramar".
A 15 de Julho de 1949 foi a vez de A. Matos de Oliveira subir a bordo do "Niassa" rumo a Macau. Desembarcou no Território 40 dias depois, a 24 de Agosto. Fez parte do grupo de homens que constitui a ‘Bataria Independente de Artilharia Anti-Aérea 4 cm Expedicionária’, uma das várias unidades criadas na altura para proteger o Território da situação conturbada que se vivia na China.
O regresso a  Portugal aconteceu a 23 de Outubro de 1951 no navio 'Timor' que passou por Macau proveniente da Província de Timor na sua viagem inaugural“. A chegada a Lisboa ocorreu a 23 de Novembro de 1951. Um das suas filhas, Vitalina, recorda a memória do seu pai... um testemunho na primeira pessoa em exclusivo para o blog Macau Antigo.
Sou filha de um antigo soldado em Macau. Meu pai embarcou para Macau no vapor “Niassa”, no dia de Julho de 1949, tendo ficado aquartelado em Mong Há. Regressou à Metrópole em 26 de Outubro de 1951 no vapor “Timor”. Deixou a escola aos 10 anos e foi trabalhar com os irmãos mais velhos. Trabalho sazonal no Ribatejo, Alentejo... onde quer houvesse trabalho... não gostava de falar desse tempo. Só me lembro de o ter feito há uns anos quando víamos juntos um programa sobre as comemorações do fim da 2ª Guerra Mundial. Falou do sofrimento desse tempo e disse... "tempos de escravidão, não gosto de me lembrar"...
Dessas viagens e dos tempos em que por lá esteve, muitas histórias nos foram contadas na infância e Macau,era como uma terra de conto de encantar. Chamávamos a essa História em jeito de brincadeira e algum enfado “ A Rota de Ceilão”…
Esta história era acompanhada por muitas imagens guardadas num velho álbum. Anos mais tarde, era aos netos que a história era contada, mas já sem imagens. Perdemos o rasto ao seu álbum. Meu pai deixou-nos há poucos dias. Tivemos que abrir as gavetas da sua velha secretária onde nem filhos, nem netos, estavam autorizados a mexer.
No meio das suas muitas recordações, caíram nas minhas mãos as velhas fotos que tanto me fizeram sonhar na infância e a “Rota de Ceilão” acordou na minha memória.
Tive curiosidade em saber se Macau também deixou saudades em outros antigos combatentes e foi assim que descobri o seu blog.
Foi "alistado" em 1947. Para Macau acho que foi porque lhe "calhou nas sortes"... Não foi militar de carreira, mas creio que adoraria ter sido. Admirava o Exército e lá em casa a disciplina era "militar"... também deveria ter sido um bom economista, contas era com ele e administrar finanças melhor ainda...
António de Matos Oliveira frente à gruta dedicada a N. S. de Fátima
Casou três anos depois do regresso de Macau, mas o namoro já era antigo. No ano seguinte nasceu a primeira filha. Para fugir à vida do campo que detestava, foi como "guarda" para uma exploração mineira no lugar de Várzea dos Cavaleiros, na Sertã, no ano de 1956. Ai nasce a 2º filha, eu. Em 1960 já tinha quatro filhos.
Folha da Caderneta Militar de A. Matos de Oliveira
Nesse ano passa a "capataz" da "lavaria" da mina. Vai a Espanha fazer formação e passamos a residir na "mina". Somos quatro crianças num mundo de adultos. É nesse tempo que a "história da rota de Ceilão" encanta a nossa infância. Não há televisão...apenas telefonia...e o álbum do meu pai é o único livro lá de casa. Quando abria aquele livro de capa castanha, com um "pagode" chinês estampado e nos falava do Canal do Suez, mar Vermelho, Colombo, Rio das Pérolas, Portas do Cerco, Gruta de Camões, a areia da praia de Coloane, os templos chineses, era tudo uma magia. Descrevia cada uma das fotografias e muito ficava na nossa fantasia.
Casa de Sun Yat Sen: década 1950
Lá em casa só havia conversas com homens, mas muitos assuntos eram proibidos. Ouviam uma estação de rádio de que não podíamos falar... e contavam muitas histórias de bruxas, lobisomens e outros feitiços de encruzilhadas...e claro a rota de Ceilão deixava aqueles mineiros sem palavras... Em 1965 aquela exploração mineira foi encerrada. Com a mesma empresa mudamos para Castelo de Paiva, para as minas de Terramonte.
Pela primeira vez vivíamos na aldeia. Meu pai tinha mais responsabilidades e mais trabalho e nós passávamos o dia na rua, se não havia escola. A" vida social" era intensa: televisão na "venda" ( taberna, mercearia e salão social e cultural da aldeia... visitas a todos os colegas de meu pai, festas e romarias, e até livros da Biblioteca Itinerante da F.C. Gulbenkian. Assim a rota de Ceilão perdeu interesse.
Entre 1967 e 1970 nasceram mais três crianças e a preocupação de meu pai era ter uma casa sua para toda a família. trabalhava muito, andava cansado, não havia mais tempo para histórias. Em 1975, a empresa fechou e lançou no desemprego todos os seus trabalhadores. Mas naquele tempo ninguém ligou. Portugal vivia tempos de História e a história destes mineiros não interessava. Cansado o meu pai não aceitou voltar a acompanhar a empresa em mais uma mudança. Aceitou a indemnização, reformou-se por doença e voltou para a sua aldeia. Toda a família protestou. Era uma aldeia pobre sem escola e sem estradas, habitada por mulheres, crianças e velhos e todos os meus irmãos estavam em idade escolar.
Foi convidado para a lista da autarquia que dava os primeiros passos em tempos de Liberdade. Conseguiu a escola, abriu-se a estrada, chegaram os transportes. Esteve sempre disponível e atento aos problemas da sua aldeia e das suas gentes. Os meus irmãos mais novos já não tiveram direito a ouvir as histórias da rota de Ceilão e o álbum castanho apareceu destruído pelos mais pequenos. Sempre pensamos que as fotos também tivessem sido destruídas.
Sempre lúcido, atento e disponível era escutado em todas as decisões da aldeia e sempre lutou por ela, mesmo contra a opinião dos seus filhos que nunca sentiram aquela aldeia como sua. Começaram a aparecer os genros, os netos a novamente a "rota de Ceilão" era história. Macau era para ele um sonho que não compreendíamos ( só após a sua morte o compreendo), mas dizia que não queria voltar, nem mesmo quis visitar o Pavilhão de Macau na Expo 98 quando o convidamos. Com o neto admirou todas as fotos que tiramos.
Quando encontrei as suas fotos e caderneta militar, aceitei o desafio do meu filho em construir uma "história" para oferecer a todos os meus irmãos, mas para isso precisava descobrir porque Macau fora tão importante para ele. Vou-o conseguindo e o "Macau Antigo" tem sido uma surpresa. No Portugal pobre, analfabeto, e fechado do final da guerra, Macau deve ter sido uma magia para ele. Deixou-nos essa magia e uma família com muitos filhos e netos.
Vitalina Matos de Oliveira, Coimbra, Abril/Maio de 2010
NA: a primeira parte destas memórias pode ser consultada neste post
http://macauantigo.blogspot.com/2010/05/memorias-de-vitalina-sobre-o-seu-pai.html

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