Aos poucos Macau vai perdendo elementos que a distinguem e que fazem da cidade um local único. É imperativo preservar as memórias, materiais e imateriais, individuais e colectivas... o património natural e edificado... É esse código genético irrepetível que torna Macau um caso ímpar. Não salvaguardá-lo ou deixá-lo contaminar-se é deitar tudo a perder. O cluster do turismo local, qual rio, da nascente até à foz, tem múltiplas valências e velocidades. Se por vezes a corrente forte, por outras, assoreia junto às margens. Esquecer a essência da história do território é diluí-lo enquanto produto e destino turístico. Esta minha pequena reflexão (que já tem mais de 20 anos) vem a propósito de uma notícia recente do JTM e que vos convido a ler num pequeno excerto.
«Arranjar e pintar as unhas já é uma modernice trazida pelo galopar da evolução. Quando a Barbearia Kac Lan abriu as portas na Avenida Almeida Ribeiro, em Outubro de 1960, “fazer a barba e cortar cabeças” eram as especialidades da casa. Lá fora os ventos sopravam mais devagar e raros eram os apitos de carros. “Até jogar à bola se podia”, recorda o senhor Cheah, um dos fundadores. Meio século corrido, as fechaduras da barbearia selaram-se ao final do dia cinzento de sábado. Acompanhámos as últimas horas de um lugar onde as palavras foram quase sempre (bem) substituídas por gestos.
As gargalhadas de Cheah, 71 anos, vão continuar na Rua Camilo Pessanha, mas a história fica para sempre atrás dos azulejos azuis, a meio caminho entre os Correios de Macau e o Banco Nacional Ultramarino. “Andei por aqui durante 50 anos e seis meses”, contabiliza, acentuando as sílabas finais de cada palavra. A deambular pelos mosaicos brancos, muito pequeninos, Cheah deixa escapar recordações. “Todas as mulheres dos governadores foram nossas clientes”, afiança.
As cadeiras antigas – cobiçadas “até pelo Instituto Cultural, que já nos pediu uma” – dão lugar a um rodopio de clientes. “Aquelas de couro castanho e ferro nos pormenores são só para os homens”, descreve. Um cliente português, com os seus trinta anos, ajeita-se no assento antigo, enquanto vai perdendo umas camadas de cabelo. “Gosto da disponibilidade, simpatia e experiência” que os barbeiros da casa revelam, justifica, despreocupado com o rumo do penteado. “Quando cheguei, há treze anos, toda a gente me falava nos ‘velhos’, não num tom pejorativo mas carinhoso, por isso decidi experimentar”. Ficou fiel aos modos e às tesouras da Barbearia Kac Lan, mesmo com alguns problemas de expressão pelo meio. “Começam a falar em chinês e não param”, conta, em maré de boa disposição.»
Excerto de artigo da autoria de Raquel Carvalho de 16-05-2011 do JTM; fotos JTM.
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