quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Testemunhos do "1,2,3" de 1966

"12" refere-se ao mês de Dezembro em que ocorreram os incidentes, "3" é o dia dos mesmos. Seguem-se excertos de entrevistas realizadas com macaenses radicados no Brasil, que viveram os acontecimentos. Estas entrevistas fazem parte da tese de mestrado em Antropologia Social "Macaenses em trânsito" de Maíra Simões Claudino dos Santos. Para além dos testemunhos, o texto é da autora da tese.
Testemunho de João Francisco, macaense que ao tempo dos eventos, era ainda jovem. Nasceu em 1950 e rumou ao Brasil em 1967.
"Nessa época, isso foi em 1966, foi quando apareceram guardas... Eu lembro... Que aconteceu um incidente lá em Taipa, península de Macau. Nas ilhas, de Taipa e ilha de Coloane, nós tínhamos um administrador das ilhas. Ele morava em Taipa, mas administrava essas duas ilhas. Então, tinha uma escola lá em Taipa que me parece que os papéis não estavam em ordem e os chineses vinham com muita pressa para tocar a obra pra frente. Bom, o motivo para o atraso eram problemas burocráticos. Isso fez com que desse o início entre o conflito da população chinesa e a administração portuguesa. Houve umas demonstrações, houve pancadarias, teve que colocar polícia em postos especiais da rua... Aí, então com influência da Revolução Cultural da China, com a influência dos guardas vermelhos, aquilo começou a propagar-se cada vez mais, e nesse novo período, nesse período, Macau estava na transição do governador anterior indo embora e o governador novo chegando, e, esse governador novo que estava chegando estava totalmente alheio ao que estava se passando, aí começou as demonstrações propagar-se cada vez mas até que um dia eles invadiram o palácio do governo, exigindo mais, e com isso deu-se um problema muito grave em Macau, greves e problemas de... Como que chama... Como que se traduz?.. Bom, isso foi também manifestações entre policiais, depois de problemas de doenças graves em mulheres, filhos... Esse período foi um período muito conturbado em Macau, e o engraçado é que eu estava no cinema assistindo um filme e o filme foi interrompido por causa do problema que estava acontecendo no palácio, porque estávamos escutando um barulho, e era muito próximo onde fica o palácio do governo. Escutávamos aqueles barulhos, o estouro das granadas daquele lugar. Saí de lá, fui pra casa e de casa acompanhei no radio as informações, aí, teve que entrar a lei marcial que não permitia as pessoas saírem, ou melhor, só num horário, as pessoas saíam pra fazer suas compras. Enfim, era só isso. Foi um período, muito, muito chato, porque os chineses aproveitaram muito bem desse período, e nós portugueses que nos sentíamos superiores aos chineses, passamos a ter que respeitá-los mais."

Para Luis Pedruco o evento do “1, 2, 3” foi uma das causas principais de sua partida para o Brasil:
Foto que foi capa do livro de José Pedro Castanheira "Os 58 Dias Que Abalaram Macau"

"Na época, eu fui fazer o serviço militar e houve uma revolução, uma revolta. Tinha vinte anos. No dia da revolução, eu estava no cinema, uma matinê às duas e meia, quando chegou mais ou menos às três e meia da tarde, um cinema famoso, no centro da cidade, chamado Cinema Apolo, estava vendo um filme e às tantas começaram a abrir portas e correr gente, eu pensei: um incêndio. Fiquei sentado aguardando o movimento todo, o corre-corre, e depois de um certo ponto saí do cinema. Quando saí vi só cabeças na cidade. Tinha uma estátua na frente do cinema, do famoso Coronel Mesquita – esse indivíduo era considerado para os portugueses um herói, porque tinha tomado o Passaleão, que era uma cidadezinha logo na fronteira de Macau, idos tempos. Para os portugueses ele era um herói, para os chineses um invasor. Tem que ver os dois lados da medalha, herói para você invasor para eles. O resultado é o seguinte, aí começaram, aquela história, e ouvi ordens, alguém grita assim: matem os portugueses! Foi um corre-corre danado. Foi engraçado porque a bilhetera do cinema era conhecida, lá todos se conhecem, a mulher dizia assim para mim: deita aqui em baixo porque se não você vai ser linchado. Era chinesa. Eu deitei nos pés dela, fiquei uns minutos lá, meio revoltado: eu deitar aqui, que história é esta? Passado algum tempo, começaram os tiros. Aquela famosa avenida do centro de Macau que é chamada Av. Almeida Ribeiro, quando eu busquei sair eu vi um mar de sapatos e chinelos, todos deram no pé. Chinelos e sapatos no cinema, que coisa louca! Passou um jipe militar, pedi para parar o jipe e fui para o quartel. Eu já tinha passado do recrutamento, já estava em casa, prestava serviço e voltava para casa. No quartel, fui recebido aos gritos pelo comandante: seu imbecil, coisas desse gênero, onde estava você? Eu contei, e estava todo mundo nervoso. Já tinham fechado o quartel, tinham armado trincheiras, metralhadoras, um cena assim, do nada. Eu, às três, estava no cinema e às seis tinha ordem de recolher. Fui um dos primeiros, o primeiro pelotão que saiu do quartel e fomos para o centro da cidade. Eu estava dentro do cinema e três ou quatro horas depois estava fardado, capacete camuflado, com a tropa, para manter a ordem (Doré, 2001: 66).
(...) Passado uns dias a China pôs na fronteira em Macau uma divisão. Uma divisão são 10 mil homens. Aquilo foi apenas um aviso, eles não iam fazer nada. Você sabe que deste lado tem 400, 500 pessoas armadas, você bota 10 mil na fronteira, não fazendo nada, tocando viola, como eles ficaram lá, olhando para Macau, que tinha uns canhões apontados, aquilo era para dizer:quer guerra? Quer força? Foi um momento muito difícil, muita gente foi embora para Portugal. Eu achei uma humilhação enorme, porque os chineses depois de algum tempo obrigaram que o governo português, que seria o dono da terra, oficialmente, na época, pedisse desculpa escrita, falada e televisionada, à população chinesa. Foi recusado pela primeira vez e segunda vez, e aí fizeram força e como a força já estava posta, não teve outro jeito senão aceitar o pedido de desculpas. E o interessante no pedido de desculpas é que o chinês, o oriental, é muito simbólico, não é só um pedido de desculpas e está acabado. Eles fizeram no meio da rua, em frenta à Associação Chinesa, uma mesa comprida, e já como a largura da mesa “x”, de um lado ficavam as autoridades chinesas e do outro lado o governador de Macau, que na época era o General Nobre de Carvalho. Isso depois de muita confusão, conversas em Lisboa, muitas ameaças. Quando chegou o dia em que teve de aceitar esse pedido de desculpas, fizeram uma mesa e no momento em que o governador assinasse, pegasse o livro, e entregasse o documento para a autoridade chinesa, ele teria que se curvar e estender a mão. Enquanto o lado chinês não se curvava, ficava em pé e só estendia a mão. E fizeram uma fotografia nesse momento. Para eles isso daí representava: estão vendo, o fulano se curvando, baixando a cabeça, perante...atrás, uma foto do Mao Tse Tung. Isso tudo tem uma simbologia. É evidente que depois dessa cena toda...quer dizer, a razão pela qual vim para o Brasil, uma das causas foi essa. Alguma coisa me dizia que aquilo ali não dava mais também. Primeiro porque Macau era pequena, depois por esta história, não estava me sentindo bem. Porque o governo português, logo em seguida, declarou mesmo nós entregamos Macau a vocês, se quiserem tome...Quando eu ví esse posicionamento do governo, eu falei daqui a pouco vamos ficar sem pai nem mãe aqui e como é que fica? Esse também foi um momento em que falei para mim mesmo: não, aqui, não fico, vou-me embora, porque o caminho não é este. Já tinha terminado o serviço militar e estava trabalhando no serviço do governo, no Ministério da fazenda de Macau, como escrivão de execuções fiscais. Casei-me e vim para cá. (Doré, 2001: 66-67).
Antonio Bruno Machado de Mendonça nasceu em Macau, em 1948.
Foi em 1966, eu só sabia de uma coisa: não podia ir para a rua. Era lei marcial. Ficávamos dentro de casa. Só depois ouvi falar que o problema era uma escola que havia na Taipa, que não deixaram construir. Todos nós comíamos em casa. No comércio era só vendido para os próprios chineses. Não se vendia nada para nós. Nós éramos considerados como europeus. Claro que não se vendia nada para os portugueses também. Havia problemática que houve. Fazer o quê? Através de um amigo chinês a gente fazia as compras. Ele trazia. (Doré,2001:66)

Roberto, nasceu também entre os meados da década de 40 e 50.
Desde de pequeno já ouvi dizer que esse dia chegaria. Ouvi de alguns chineses adultos, que talvez tivessem alguma mágoa com os não-chineses ou que fossem comunistas radicais? Não liguei muito e achei que fosse uma “besteira”. Mas tornou-se mais real com a revolução dos “guardas vermelhos” que atingiu também Macau nos anos 60. As bandeiras vermelhas da China estavam hasteadas em todas as partes, os “ativistas” vestiam-se de um conjunto de roupa azul (índigo), medalhões com o retrato de Mao Tse Tung, pregadas no peito, e alguns até com bonés do tipo “operário chinês” gritando slogans anti-ocidentais, anti-capitalistas, etc. Os “guardas” proibiam os macaenses, portugueses e qualquer ocidental, de utilizarem qualquer transporte público, as feiras estavam proibidas de venderem comidas para a gente, assim como os restaurantes, cinemas etc., porque a maioria destes estabelecimentos eram de propriedades de chineses. Os meus amigos chineses “viraram a cara” para mim. Mas só depois entendi os seus comportamentos, após a explicação que um deles me deu. Eles tinham que “obedecer” as ordens dos “guardas” por serem chineses e temiam represálias caso não o fizessem, e especialmente se a gente (macaenses e ocidentais) não abandonasse Macau, como o boato teria sido espalhado. Pensei: “Chegou a hora, eles tinham razão quando me disseram que Macau voltaria para a China um dia”. Não voltou daquela vez, mas agora em 1999 voltou.
(Entrevista realizada individualmente em sua casa)

O juiz Rodrigo Leal de Carvalho, o único a exercer funções em Macau, recorda assim os incidentes.
"Tentaram parar-me o carro e forçar-me as portas. A minha volta só via expressões de ódio. Fui andando devagar em primeira, para não atropelar ninguém, mas sem deixar que imobilizassem o carro. Lá acabei por conseguir passar, no meio de uma chuva de pedras." (Pinto,1998).
Relato de João Francisco Lopes Machado, nascido em 1950
"Estava com 16 anos, teve o “1, 2, 3” em que o China estava prestes a invadir Macau, tanto que na companhia da minha mãe, fomos até Hong-Kong e minha mãe levou as jóias dela, pra guardar lá em Hong Kong e eu fui com ela de navio pra guardar as jóias dela. Aí já prontos pra deixar Macau de vez, por causa da invasão chinesa. Naquela época, criou-se a idéia... isso que motivou a imigração da grande população de Macau pra Hong Kong. Isto aí, que fez todo mundo enxergar que Macau realmente não tinha mais futuro, porque seria tomado pela China de um modo ou de outro, não tinha mais aquela segurança de continuar sendo uma colônia portuguesa, então as pessoas começaram a ir embora. E meu pai falou assim: Macau não tem futuro mesmo, a China vai tomar tudo de bom e nós vamos perder tudo, porque naquela época a China não era a China capitalista de hoje, era uma China que realmente iria acabar destruindo  toda a nossa cultura e a gente iria virar refugiado, com certeza. (...) Acredito que Macau... já não se poderia viver, pois depois que passou aqueles acontecimentos em Macau, a gente sentiu que no fundo, no fundo...também como fui embora logo no ano seguinte... mas a mentalidade era realmente que a gente já não dominava Macau como antigamente. Antigamente, antes da Revolução, realmente era mais colonialista, vamos dizer...era mais o estilo português de governar, sem ter que se preocupar com os chineses, depois dos acontecimentos... pode ser que passamos a enxergar os chineses de um modo um  pouco diferente."
Henrique de Senna Fernandes, macaense que nasceu entre os finais da decada de 20 e o início da década de 30...
Anos antes da Revolução Cultural, a arrogância dos funcionários era uma coisa horrível e visível! Aqui é Portugal. Eram todos militares. Vivíamos na ditadura do tempo do Salazar. Colônia era só exploração. E Lisboa não servia as colônias. Sou português, sinto-me português também, mas acho que não poderia viver em Portugal. Eles traziam uma mentalidade e não se modificavam. Os chineses nunca foram colonizados, tinham seus costumes, não eram meia dúzia de portugueses que iriam modificar. O “1, 2, 3” foi como uma onda que cresceu – coisa do Mao, que deviam ser nossas autoridades. Indivíduos que... Havia os chineses corruptos, houve abusos. Os chineses não eram muito cumpridores de leis. Os portugueses também davam pontapés nas mercadorias chinesas e a partir de um certo momento... Começou a fervilhar, fervilhar a comunidade chinesa. O partido comunista fez a rebelião opressiva, rebelião estupidamente opressiva. Contra os chineses, 100 mil pessoas. Com pessoas que não são nem pretos e nem índios, com sua civilização. Havia de tratar dos chineses com certa diplomacia. Realizava-se uma política que não podia ser. O Estado Novo era contra o comunismo. Queriam construir uma escola comunista na Taipa. Os atritos começavam a crescer assim como os requerimentos: “não podemos espalhar o comunismo em Macau”. Os distúrbios na Taipa foram antes do Grande Prêmio de Formula 1 de Macau. A administração da ilha chamou a polícia e fizeram feridos. Os comunistas de Macau começam a se reunir. Na Associação Comercial Chinesa, fazem as demonstrações comunistas. Resolvem ir ao palácio do governo ler a cartilha de Mao. Ocorre que uma grande multidão se reúne em direção ao palácio e deitam abaixo o herói macaense e partem o braço de Jorge Álvares. Outra grande asneira: o encarregado do governo colocou no comando o comandante das forças militares, Mota Cerveira, que amava Macau, mas queria transformá-la à sua maneira. O macaense, pai do chefe executivo hoje em Macau, explicou-lhe que ele deveria ceder, pois não podiam conter os comunistas, mas ele sequer o recebeu. Resultado foram oito mortos, alguns nacionalistas foram entregues. E em Hong Kong não conseguem fazer o mesmo porque era Portugal que os comandavam. Corríamos o risco de perder tudo. E muitos fugiram para Hong Kong (Entrevista realizada em Macau em 06/12/2004).

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Novo recorde mensal de visitantes

Em Novembro último - data do 17º aniversário - o blogue Macau Antigo registou num novo recorde mensal de visitantes com um total de 233.337. Dá uma média diária de quase 8 mil leitores diariamente. Ainda de acordo com os dados da plataforma onde o blogue está alojado - Blogger - em Novembro a maioria dos leitores teve origem nos EUA, Portugal, Macau, Brasil e Singapura (top 5).
Filmes em exibição no Cinematógrafo "Vitória" há 100 anos
O cinema ficava na Av. Almeida Ribeiro/San Ma Lou
referência actual: ao lado do hotel Central

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Restauração da independência, Eduardo Brazão e Escola Camões em Hong Kong

Em mais um aniversário da Restauração da Independência (1640) - data relevante tb para Macau * onde existem duas ruas da Restauração (em Macau e na Taipa) - ocorreu-me o nome de Eduardo Brazão (1907-1987), proeminente diplomata e historiador português com forte ligação ao Oriente e a Macau, tendo sido Cônsul de Portugal em Hong Kong entre 1946 (chegou em em Abril de 1947) e 1951.
The  China Mail 4.4.1947

Sabia que actualmente existe a "Escola Camões" em Hong Kong? Na sua origem está Eduardo Brazão. Diplomata, académico e historiador considerado um visionário. Neste aspecto, uma das ideias que preconizou foi a criação de uma Universidade em Macau na década de 1940. O projecto acabou por não vingar. O mesmo não aconteceu com a criação da Escola Camões em Macau e do Instituto Português, também na então colónia britânica.
Imagens fornecidas por antigos alunos da Escola Camões em Hong Kong
Fundada em 1947, começou por funcionar no nº 7 da Cox's Road (Tsim Sha Tsui) e abrangia os primeiros anos de escolaridade, da creche ao ensino primário. Embora se destinasse a alunos portugueses/macaenses, depressa passou a aceitar alunos de outras nacionalidades, incluindo chineses. De início teve apoio do Governo de Macau e posteriormente do Governo de Hong Kong e da comunidade portuguesa local. Em 1957 há registo de mais de 200 alunos inscritos.
A primeira director da escola foi a macaense - nasceu em Shameen, Cantão - Maria Lourdes de Oliveira Sales (1926-2022).
No início da década de 1950 o jornalista Armando de Aguiar (Correio da Manhã, do Brasil) visitou Macau e Hong Kong, tendo-se encontrado com Eduardo Brazão. Aqui fica o seu testemunho:
"Num dos navios do magnate macaense Sr. Fu Tak Iam fiz-me transportar a Hong-Kong. O braço amigo do Dr. Eduardo Brasão levou-me a visitar a cidade e os arredores, incluindo Kowloon, que em chinês quer dizer ‘nove dragões’, de Kow (nove) e Lung ou Loon (dragões). E levou-me também a transpor as páginas da história pátria no que diz respeito à presença de Portugal no ‘Porto Perfumado’. Numa das barulhentas e policromas ruas da cidade chamou-me a atenção uma casa revestida de azulejos de aspecto português. Dei- me à curiosidade de investigar a sua origem e apurei serem, realmente, de origem nacional, fabricados em Aveiro. O Clube de Recreio, em Kowloon, é uma afirmação do espírito social da comunidade portuguesa, assim como o Clube Lusitano, fundado em 1866, marca um lugar do mais alto relevo entre as instituições culturais que exaltam e prestigiam o nome de Portugal em países estrangeiros. Pois foi dentro das veneráveis paredes daquela patriótica instituição que o actual secretário nacional da Informação fundou, em Novembro de 1947, o douto Instituto Português de Hong-Kong, destinado à divulgação da nossa cultura naquela colónia britânica, onde, graças ao fecundo impulso que desde o início lhe foi dado por aquele brilhante diplomata, têm sido versados os principais problemas relacionados com a obra da inteligência em Portugal, no passado e no presente. O Instituto Português de Hong-Kong deve ser considerado o remate da obra de defesa da língua de Camões naquela colónia inglesa, onde vivem cerca de mil portugueses. O Instituto e a Escola de Camões, também patriótica iniciativa do Dr. Eduardo Brasão, constituem dois instrumentos onde vibra a alma de Portugal."
Em 1996 os destinos da escola para Po Leung Kuk, adoptando o nome "Camões Tan siu Lin Primary School" e mudando de instalações. Acualmente proporciona esporádicamente cursos de português.
Da vasta obra que Eduardo Brazão deixou publicada destaco:
- "Macau, Cidade do Nome de Deus na China, Não Há Outra Mais Leal",1957
* Macau manteve-se fiel à coroa portuguesa durante o período de união ibérica (1580-1640) e, como recompensa pela "lealdade", o rei D. João IV concedeu-lhe o título de "Não há outra mais leal" em 1654. A aclamação de D. João IV como rei ocorreu em Macau dois anos após a restauração em Portugal, em 1642. 

Sugestão de leitura:
A Aclamação del Rei D. João IV em Macau (Subsídios Históricos e Biográficos) da autoria  de José Frazão de Vasconcellos publicado em Separata do N.º 53 do Boletim da Agência Geral das Colónias em 1929.

domingo, 30 de novembro de 2025

"Explosion of a Portuguese frigate"

O irmão de Francisco Maria Bordalo (1821-1861) - ver post de ontem - Luíz Maria Bordalo, também oficial da Marinha portuguesa, foi uma das vítimas de uma das maiores tragédias humanas em Macau e um dos maiores desastres navais a envolver a marinha portuguesa. Ocorreu a 29 de Outubro de 1850  - era dia de aniversário do rei D. Fernando II e estava Francisco Maria Bordalo a caminho de Macau - quando por razões ainda hoje desconhecidas ocorreu a explosão no paiol da fragata D. Maria II - ancorada ao largo da Taipa - que continha 300 barris de pólvora. Morreram mais de 200 pessoas. A maioria pertencia à guarnição da D. Maria II. Dos 224 elementos da tripulação morreram 188 e os que se salvaram, apenas 36, foi graças ao facto de estarem em terra (hospitalizados ou destacados) e um grumete, o único que sobreviveu entre os feridos transportados para o hospital de Macau. Consta que apenas foram encontrados 71 cadáveres - os únicos sepultados - tendo os restantes desaparecido. Da lista de vítimas mortais constam ainda três marinheiros franceses presos e cerca de 40 chineses que estavam a bordo da fragata ou em embarcações próximas que foram atingidas pela força da explosão.
Em Portugal, cerca de dois meses depois, o jornal "O Patriota" escreve na edição de 28.12.1850: "Hontem espalhou-se uma noticia que tem causado profunda e geral consternação (…) Há jornaes que a dizem ocorrida em Macau, outros a referem como acontecendo em Calcutá, na India Inglesa. (…)" 
A notícia termina referindo haver esperança que a notícia fosse falsa. Mas não era... E o tema  volta na edição de 30.12.1850 escrevendo que "Por outras notícias parece que mesmo da fragata D. Maria alguém escapou".
A dimensão da tragédia foi amplamente noticiada na imprensa mundial, com especial enfoque na de língua portuguesa, incluindo no Brasil ao longo de 1851. O jornal "O Patriota" dedicou grande parte da edição de 30 de Janeiro de 1851 ao acontecimento publicando em duas páginas relatos oficiais, cartas de testemunhas e os nomes das vítimas. 

"Finalmente chegaram de Macau noticias officiaes e miudas do desastre acontecido á fragata D. Maria II. Infelicidade para o paiz, e para tantas familias! Mas cumpre que aquellas que só tem que lamentar a perda de seus chefes ou de alguns dos seus membros, tenham informações exactas a esse respeito. Por isso, com o officio do sr. Isidoro Francisco Guimarães Junior*, copiamos do Diario de hontem as relações que acompanham o mesmo officio. Fica manifesto que não pereceu ninguem estranho á fragata. Copiamos tambem do Boletim official de Macau sobre a impossibilidade de explicar aquelle infeliz acontecimento. Damos igualmente a nossos leitores a parte principal de uma carta particular que trata do mesmo acontecimento; e abonamos a intelligencia e a por nós conhecida boa fé da pessoa que a escreveu. A tudo isto ajuntamos um resumido extracto de outras cartas, tambem escriptas em Macau por homens que sabem ver as cousas; neste extracto se pinta o estado daquella cidade, e se indica a origem dos seus males. Lamentamos amargamente tanta desgraça! Todas as noticias, tanto officiaes como particulares, são conformes em attestar que a guarnição americana da corveta Marion fez todos os esforços possiveis para salvar os infelizes que podessem ser salvos. O governo de Macau escreveu e publicou officialmente uma carta dos mais expressivos agradecimentos ao commandante daquella corvetta."
* Era na altura capitão-tenente e comandante da corveta D. João 1º, estacionada em Macau. Viria a ser pouco tempo depois governador de Macau.
“Explosão da Fragata D.ª Maria 2.ª  em Macao no anno de 1850”
título desde óleo sobre tela -33x54cm -  de autor anónimo (provavelmente chinês)
Espólio do Museu Marítimo de Hong Kong

Copia de uma carta de Macau datada de 24 de Novembro de 1850 também publicada n'O Patriota a que juntei algumas notas. Não está assinada, mas o autor foi Carlos José Caldeira (1811-1882), que viveu em Macau entre Setembro de 1850 e Dezembro de 1851, e escreveu relato idêntico no livro que publicou em Lisboa em 1852 intitulado "Apontamentos d'uma viagem de Lisboa a China e da China a Lisboa".

"Eu achava me no dia 29 do mez passado a jantar com o bispo*, quando a explosão abalou todo o palacio, ouvindo se o estrondo como de um forte tiro de canhão. Em poucos momentos, olhando para a Taipa ou ancoradoiro, conhecemos a causa e os tristes effeitos. Sahi logo, e fui dos primeiros a chegar a bordo da curveta americana, onde estavam os dez desgraçados salvos pelos escaleres della; e dos quaes vi morrer dois; soffriam todos horrivelmente. A curveta americana nada soffreu; julga se que quem a salvou foi a proximidade em que se achava da fragata, por ficar exactamente debaixo do arco da curva que descreveu a explosão. Peças de 18** voaram por cima da curveta, com a felicidade de não a tocarem. Disseram me alguns officiaes americanos que um momento antes da explosão viram a fragata elevar se quasi seis pés ***fóra d agua. Tal foi a resistencia que apresentou o paiol e a forte structura do navio!

Gravura publicada no Diário Illustrado a 11.10.1873

A causa desta grande desgraça, isto é, o modo como chegou o fogo ao paiol da polvora, ficará para sempre desconhecido. Os que sobreviveram nenhum esclarecimento deram e só diziam que, estando cada um nos seus misteres, accordaram depois como de um letargo, ja a bordo da curveta americana. Com tudo, entre as varias hypotheses que lembram, a mais provavel parece a de ter sido lançado o fogo ao paiol pelo fiel d artilheria João Antonio, individuo de pessimo caracter e conducta e que naquelle mesmo dia fora asperamente reprehendido pelo commandante depois da salva ao meio dia. Embebedava-se, e dizem, que alguna vez soffrendo castigos, se lhe ouviram ameaças deste successo. Seria cousa bem curiosa a policia procurar a origem de um boato que correu em Lisboa da queima e perda da fragata do qual se fazia menção em uma carta escripta d ahi em Agosto pelo irmão do official Bordalo e por este aqui recebida e mostrada. Esta circumstancia é notavel; talvez o malvado fiel a alguem para Portugal tivesse communicado suas dannadas intenções.
Além da perda deste bello navio e de tantas vidas, havia talvez a bordo delle o valor de trinta a quarenta mil patacas em objectos e dinheiro dos officiaes e de comissões. Particularmente me affectou a morte do Assis e do Bordalo. Naquelle dia tinha o Assis tido o pensamento de jantarmos juntos a bordo da fragata, com o Sequeira Pinto, Guimarães e outros; e por algum inconveniente que teve tinha este jantar ficado para algum dos dias imediatos. Foi a providencia que nos salvou; provavelmente aquella hora por lá estariamos se lá tivessemos ido jantar.
Esta semana houve aqui outro acontecimento tambem desastroso. Um portuguez desta cidade casou se; achou a noiva impura e arrancou lhe a confissão de que o padrasto della era o culpado. Com toda a serenidade procurou a este na sua propria habitação e disparou una pistola n'um ouvido; deixando o nas agonias da norte, sahiu e na escada carregou outra vez a mesma pistola e deu outro tiro na sua propria cabeça morrendo immediatamente Parece que esta terra esta agora fadada para desastres!!!"

* Carlos José Caldeira era primo D. Jerónimo José da Matta, bispo de Macau entre 1845 e 1862; o palácio/residência episcopal era anexa à Sé.
** peso da bala disparada, neste caso, canhão de 18 libras (8,16 Kg).
*** quase 2 metros.

sábado, 29 de novembro de 2025

A "extensa bahia da Praia Grande orlada de formosas habitações"

"(...) não vês como se encurva ante as aguas do Oceano essa extensa bahia da Praia grande, toda orlada de formosas habitações, amplas e arejadas, sustidas sobre columnas ao gosto asiatico. Não vês lá no extremo os penedos escalvados que formam uma muralha exterior á fortaleza de S. Francisco e n'esta ponta a fortificação do Bomparto, como as extremidades de um Crescente, que segundo dizem os viajantes de Italia, fecham uma bahia muito similhante á de Napoles.
Isto é pelo lado do mar, agora pela parte do rio tambem encontrarás uma bonita perspectiva; a fortaleza portugueza da Barra e o pagode chinez do mesmo sitio (templo de A-Ma), o soberbo edificio da alfandega (Alfândega chinesa - havia esta no Porto Interior e outra na Praia Grande; o gov. Ferreira do Amaral acabou com as duas) entre palacios de particulares, e ao lado de cabanas chinezas, mil embarcações de estructuras phantasticas; e lá no fundo, as montanhas do Celestial Imperio.
Para o centro da cidade vês tambem as torres e cupulas de varios templos, as sotéas e mirantes de lindas casas apalaçadas, pequenos jardins, pobres fontes e ruas estreitas mas aceiadas no bairro portuguez, immundas e emaranhadas no bazar chim.
A cidade é do feitio de um X ou cruz de Santo André; por todos os lados lhe bate a água do Oceano ou do Tigre, e de todas as montanhas que a circundam se gósa o espectaculo completo da sua povoação.
Na base da fortaleza do Monte, cidadella d'onde partem as muralhas para uma e outra extremidade do logar, ha um bairro miseravel de pobres christãos de todas as raças em que predominam os Timores e as mulheres sem nome; são becos mal gradados na esquina de um dos quaes se vê este letreiro 'rua de D Queixote'.*
Uma das pernas do X é o isthmo que liga o territorio portuguez ao imperio e lá se vêem ainda as ruinas da porta do Cerco, ou do Limite, e um pouco áquem, um tosco pilar que designa o sitio onde caiu golpeado por seis chins o desgraçado temerario e honrado governador Amaral.
Para fóra do porto de Macau, no declive de uma colina, enxerga-se a fortaleza da Taipa e ao sopé mal saindo a espaços das ondas (...)
Excerto de "Um passeio de sete mil leguas: cartas a um amigo", da autoria de Francisco Maria Bordalo.
* Os registos do final do século 19 referem apenas a Travessa de D. Quixote, e já agora, também a Travessa de Sancho Pança. As duas ainda existem actualmente.
Baía da Praia Grande vista a partir da Fortaleza do Bomparto
Pintura de meados do séc. 19 (autor anónimo)
não incluída na obra referida

Várias vezes mencionado aqui no blogue, Francisco Maria Bordalo (1821-1861), oficial da Armada, foi secretário do governador de Macau entre Janeiro de 1851 e Maio de 1852. Neste período, com a patente de 1º tenente, trabalhou com os governadores Francisco António Gonçalves Cardoso (1800-1875) e Isidoro Francisco Guimarães (1808-1883).
Ficou também para a história como autor de múltiplos artigos na imprensa e alguns livros: "Viagens na África e na América" (1854), "Scenas de Escravatura" (1854), "Quadros Marítimos" (1854), "D. Sebastião, o Desejado - Lenda Nacional" (1855), "Navegadores Portugueses" (1855) "Navegadores Estrangeiros" (1855), "Viagem Pitoresca à Roda do Mundo" (1855), Trinta Anos de Peregrinação, Manuscrito Achado na Gruta de Camões (1852), "Sansão na Vingança" (1854), Um Passeio de Sete Mil Léguas (1854) e "Eugénio, Romance marítimo" (1846).

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

"Atlas de bolso sobre Portugal continental e províncias ultramarinas"

Designer, pedagogo, editor e tipógrafo amador em Portugal, Paulo de Cantos (1892-1979) produziu em 1938 um "Atlas de bolso sobre Portugal continental e províncias ultramarinas", com um forte pendor pedagógico e de divulgação do nacionalismo da época. Tem como sub-título "O que todo o português deve conhecer". O Atlas publicado pela Livraria Povoense (Póvoa de Varzim) inclui mapas de Portugal continental e das províncias ultramarinas.
Esta obra apresenta um pequeno mapa estilizado de Macau, acompanhado de um texto explicativo. O mapa é elaborado em estilo minimalista e abstracto, utilizando formas geométricas simples e uma paleta de cores limitada (predominantemente laranja e creme). Delimita as principais características geográficas de Macau, como a Península de Macau, a Ilha Verde, as Ilhas da Taipa e a Ilha de Coloane, bem como o Mar de Macau circundante. Os nomes dos lugares são apresentados em tipografia clara e legível.
Acima do mapa, o título está impresso em uma fonte sans-serif moderna: "Macau - A mais antiga colónia europeia do Extremo Oriente".* O mapa está emoldurado por uma borda tracejada, enfatizando ainda mais seu propósito esquemático e didáctico.
Transcrição do texto que forma verticalmente a palavra Macau:
Mar de Macau, ao S. O. da Ásia, banha esta Colónia. (Oferecida pela China no séc. de 500, por os portugueses a libertarem da pirataria.)
Área: 10 km2 para 1.000.000 de almas distribuídas pela península de Macau, Ilha Verde, 2 ilhas de Taipa, e de Coloane; 5 rincões.
Clima: saudável, húmido, muita chuva só no verão regulada por monções, muitas vezes tufónicas.
Artefactos: chá, ópio, charões, louças, fogos de artifício.
Uma gruta relíquia serviu a Camões para compor os imortais Lusíadas. Macau, nobre tradição de Portugal, ostenta os costumes pitorescos da China e beneficia da colonização Europeia. Possue igrejas e pagodes.

* O título "Macau: a mais antiga colónia europeia no Extremo-Oriente" é uma cópia da obra de Jaime do Inso, publicada em Macau em 1929.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

"A Voyage Round the World in 500 Days"

"A voyage round the world in 500 days, with details, compiled and arranged by G. Sutherland Dodman. Giving an account of the principal parts to be visited with a brief description of the scenery and all particulars connected with the undertaking; Illustrations and Map and Chart of the Route. Sailing from Liverpool, June, 1880"
Este longo título descreve a obra da autoria de G. Sutherland Dodman publicada pela primeira vez em Londres no ano de 1879. No título refere-se que a partida seria em Liverpool em Junho de 1880., ou seja em data posterior à publicação do livro. Estamos pois perante uma viagem programada. Na prática o autor compila todas as informações disponíveis na época e apresenta neste livro um guia para uma volta ao mundo ao longo de 500 dias.
O livro foi publicado pouco depois do grande sucesso de Júlio Verne, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias (1873), que despertou o fascínio do público pela circum-navegação do mundo. Capitalizando o interesse que a obra de Verne suscitou, Dodman apresenta o que diz ser um plano para uma viagem "realista" de 500 dias.
Macau surge referido na obra a propósito de uma escala em Hong Kong. De uma forma geral as informações sobre a história do território são fidedignas, com algumas excepções, apresentando o contexto do que era Macau no último quartel do século 19.
Aqui fica o excerto bem como uma tradução/adaptação do mesmo:


"(...) Some 40 miles distant across the Canton river and on a peninsula of the island of Heang shang, is the Portuguese settlement of Macao, another town of considerable interest. Macao was ceded to the Portuguese during the sixteenth century as a reward for services rendered in the suppression of a noted Japanese pirate and other acts for the well being of the Chinese empire, but the present Government do not care to recognize them as the owners of the Macao peninsula.
Since the treaty ports were opened, the trade of Macao appears to have sunk into insignificance and now that the coolie traffic has been abolished and the tea trade taken to the Yang tse Kiang ports, it has become a ruined town and its only revenue is derived from the licensing of the gambling houses of which there are not a few.
Visitors are admitted to a gallery in these places to see the novel way in which the Chinese, who, by the way, are inveterate gamblers win and lose their money.
The bay is very beautiful and is surrounded by very fine scenery. The Praya Granda, a fine broad promenade running along by the beach, contains the Government House and other good buildings with a great number of elegant mansions having large gardens. These were formerly the residences of the wealthy merchants of Macao.
A most delightful view of the coast and the curiously shaped islands adjacent may be obtained.
The Cathedral is a noble looking building and its interior contains some exquisite workman ship. The Jesuit Cathedral of St Paul, built over 300 years ago, was some time back destroyed by fire but the ruins which still remain give some idea of its original grandeur. The churches,  which are numerous, are most elegant structures. The Senate House, at the head of the principal thoroughfare, is a stately building and an object of much interest. The old convents on the side of the hills are now converted into barracks but are little used.
The gardens surrounding them were at one time very beautiful. The public gardens are very pretty and attractive and from their lovely situation might if tended with proper care become a most popular resort.
The Bar Fort is a very formidable defensive work and a visit to it will prove very interesting. The markets are full of novelty and much amusement may be derived from a walk through them. The Portuguese Barracks are large and discipline is strictly maintained but the men have not the fine appearance of British soldiers owing to their irregularity in height no fixed standard appearing to be enforced.
The Cemetery is full of interest and is the resting place of many famous residents in Macao, when it was the great emporium of Portuguese commerce in the East. The monuments and tombs are somewhat peculiar in their style and are worth a visit.
The Pagoda and Chinese Temples may be visited but they fall far short of the interesting character of the temples of Japan or of others to be seen in China.
The streets, as a rule, are narrow but clean and orderly. They are however for want of the ordinary wear of traffic more or less overgrown with grass. It may in fact be said of the inhabitants of this once famous port that they are allowing the grass to grow under their feet while other places are reaping the harvest of prosperity.
One of the most interesting spots here is the gardens behind the town where the great Camoens wrote his famous Lusiad, a portion of which he composed during the time he held the high office of Portuguese Judge at Macao. There is also the cavern from which he studied the stars and their satellites in their brilliant splendour. The natural beauty of these lovely gardens is beyond description and from their elevated position they command a most delightful view of the town, the neighbouring coast and the broad expanse of ocean. Few places can equal in picturesque beauty the gardens of Camoens. The climate here is healthy and the place is a favourite resort for invalids and pleasure seekers. (...)

Panorâmica da cidade vista da Penha ca. 1880
(imagem não incluída no livro referido)

Tradução/Adaptação
A 40 milhas de distância, do outro lado do rio Cantão, e numa península da ilha de Heang shang, situa-se o território português de Macau, outra cidade de considerável interesse. Macau foi cedida aos portugueses durante o século XVI como recompensa pelos serviços prestados na supressão de um notório pirata japonês e outros actos para o bem-estar do império chinês, mas actualmente não há o reconhecimento da posse territorial.
Desde que os portos do tratado foram abertos*, o comércio de Macau parece ter afundado na insignificância e, agora que o tráfico de cules foi abolido** e o comércio de chá foi levado para os portos de Yang tse Kiang, a cidade tornou-se uma ruína e a sua única receita deriva do licenciamento das casas de jogo, que não são poucas. Os visitantes estrangeiro são admitidos numa galeria nestes locais para ver a forma como os chineses, que, aliás, são jogadores inveterados, ganham e perdem o seu dinheiro.
A baía é muito bonita e está rodeada por uma paisagem muito delicada. A Praia Grande, um amplo e belo passeio marítimo que corre junto à praia, contém o Palácio do Governo e outros bons edifícios, com um grande número de elegantes mansões com grandes jardins. Estas foram outrora as residências dos ricos comerciantes de Macau.
Da cidade conseguem-se ter vistas fantásticas vistas panorâmicas costa e das ilhas adjacentes.
A Catedral é um edifício de aspeto nobre e o seu interior contém um trabalho artesanal requintado. A igreja jesuíta de São Paulo, construída há mais de 300 anos, foi destruída por um incêndio há algum tempo ***, mas as ruínas que ainda permanecem dão uma ideia da sua grandiosidade original. As igrejas, que são numerosas, são estruturas muito elegantes. O edifício do Senado, no topo da principal artéria, é um edifício imponente e de grande interesse. Os antigos conventos na encosta das colinas estão agora convertidos em quartéis, mas são pouco usados. Os jardins que os rodeavam já foram muito bonitos. 
Os jardins públicos são muito bonitos e atraentes e, devido à sua adorável localização, poderiam, se tratados com o devido cuidado, tornar-se um resort muito popular.
O Forte da Barra é uma obra defensiva formidável pelo que que uma visita será muito interessante. Os mercados estão cheios de novidades e proporcionam um passeio muito divertido. Os quartéis portugueses são grandes e a disciplina é estritamente mantida, mas os homens não têm a boa aparência dos soldados britânicos devido à irregularidade da altura, não oferecendo um conjunto homogéneo.
O cemitério**** é um local de bastante interesse e é o local de descanso de muitos residentes famosos em Macau, quando era o grande empório do comércio português no Oriente. Os monumentos e túmulos têm um estilo um tanto peculiar e merecem uma visita.
O pagode e os templos Chineses podem ser visitados, mas ficam muito aquém do carácter interessante dos templos do Japão ou de outros que se podem ver na China.
As ruas, em regra, são estreitas, mas limpas e ordenadas. Contudo, devido à falta do desgaste normal do tráfego, estão cobertas de erva. De facto, pode-se dizer dos habitantes deste outrora famoso porto que estão a deixar a erva crescer debaixo dos seus pés enquanto outros lugares colhem a ceifa da prosperidade.
Um dos locais mais interessantes aqui são os jardins nas redondezas da cidade, onde o grande Camões escreveu o seu famoso Os Lusíadas, uma parte do qual compôs durante o tempo em que ocupou o alto cargo de juiz português em Macau. Há também a gruta de onde ele estudava as estrelas e os seus satélites no seu brilho esplendoroso. A beleza natural destes jardins encantadores está para além de qualquer descrição e, da sua posição elevada, proporcionam uma vista deslumbrante da cidade, da costa em redor e do delta do rio. Poucos lugares podem igualar em beleza pitoresca os jardins de Camões. O clima aqui é saudável e o local é um resort favorito para pessoas doentes e pessoas que procuram prazer. (...)"

*referência à década de 1860 e à segunda guerra do ópio.
** a abolição ocorreu em 1873.
*** 1835.
*** cemitério protestante junto ao Jardim Camões.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

“Macau, Terra Nossa – Solar de Portugal no Oriente”

Funcionário público, Afonso Correia, pertenceu ao quadro do Ministério do Ultramar e esteve vários anos em Cabo Verde antes de rumar a Macau em 1948 onde exerceu funções na Repartição da Fazenda e Tesouraria até 1954. No território foi um dos fundadores do Círculo Cultural de Macau. Na faceta de 'jornalista', escreveu e publicou inúmeras crónicas no jornal "Notícias de Macau", incluindo o teor das palestras proferidas em Portugal sobre Macau - por exemplo, no Rotary Club de Viseu em Outubro de 1952. O essencial do que foi publicando seria editado em dois livros:
"Macau terra nossa - solar de Portugal no Oriente", Imprensa Nacional de Macau, 1951; e "Um céu e três mundos", INM, 1954.

Excerto:
Este livro é bem teu, Macau.
Induziram-me a escrevê-lo os encantos das tuas feições. Quero dedicar-to, devotadamente, como um alegre presente de aniversário.
Uma grande parte foi escrita, em horas incertas, atravessando momentos em que a desdita, fruto de inexorável doença, me rondava a porta e já quando, volvida a tormenta, bebia o travo duma reparação dos tecidos orgânicos, quase impossível. Arquitectei-o, entretanto, com o espírito em teimoso desanuveamento, rendido à tua fronte auriverde, bafejado pelos estímulos da tua compostura, do teu busto de Rainha do Orien­te, dos teus enlevos que são o triunfo duma vida de labor e sofrimentos contados, dia a dia, como um rosário de amarguras nascentes da tua fatalidade geográfica. Os seus materiais de contextura são formados por crónicas ligeiras, feitas de observações ocasionais, mas tocadas de sentimentos amistosos e devotivos.
Sei bem que pouco valem estas crónicas. Deves recebê-las com franca tolerância e não ver nelas senão uma sinceridade amiga e uma admiração convicta. Estima-as. Cumprirás assim um imperativo de consciência bem formada e de gratidão bem nutrida pela ventura que nelas te é desejada. De entre as inúmeras crónicas que tenho publicado, em toda a minha vida jornalística, nenhuma guardei, nenhuma guardo, porque entendo deverem ser volantes os nossos escritos, como as palavras. Se o vento e a fatalidade os leva, já não nos pertencem, em contrariedade do conceito latino — verba volant, scripta manent.
Porém, uns amigos e camaradas da imprensa daqui e de Lisboa incitaram-me a coligir algumas, no livro que agora consagro ao teu exame. Seria impossível dar satisfação a essas vontades, tão cativantes para mim, se um bem estudado método de arrumação me não facilitasse o trabalho com a demanda e o encontro dos exemplares do jornal, onde as crónicas vieram a lume. Aqui lhes deixo o meu reconhecimento profundo.
A ti, Macau, antes de pôr fim a esta pobre inscrição, quero dizer-te mais algumas palavras de amizade:
Nasceste, promissora e feliz, sob o ideal protector, próprio necessariamente de quem crê, da Santíssima Trindade. “Santo Nome de Deus” é o teu lema dignificador e eternizante. Não sei porque nem como, mas descobri, na tua vida, no teu ser, nos teus segredos, no teu clima nacional e internacional, no teu poder e no teu inconfundível posto de província portuguesa, bem portuguesa, uma, influência decisiva do número três para os teus destinos, em paralelo débil e longínquo com a já por mim invocada de ti e para ti Santíssima, Trindade.
Baía da Praia Grande na década 1940
(imagem não incluída no livro referido)

Vê e considera o quadro que te confio, expresso nas seguintes pala­vras, que julgo dignas de atenção:
Em Macau são faladas três línguas — a portuguesa, a chinesa e a inglesa. A cidade é dominada por três colinas mestras — a da Guia, a do Monte e a da Penha. Apresenta três colégios de considerável frequência — Santa Rosa de Lima, Sagrado Coração de Jesus e S. José. Possui três hospitais, a saber: Conde de S. Januário, S. Rafael e Keang-Vu. E servida por três templos de capital importância — o da Sé, o de Sto. Antônio e o de S. Lourenço, que, por sua vez, dão os nomes às três freguesias existentes na cidade. Possui três grandes e predominantes artérias de trânsito constante —Avenida Almeida Ribeiro, Avenida da República e Avenida Marginal. Oferta aos budistas chineses três pagodes principais – o da Barra, Mong-Há e Bazar. Segue constantemente três rumos — Norte, Oriente e Ocidente. Alimenta, decisivamente, três civilizações — a portuguesa, a chinesa e a anglo-saxónica. Ostenta três imponentes arranha-céus — o Central, o Kuok Chai e o Oriental. Segue três religiões — a cristã, a protestante e a budista.
Dispõe de três territórios distintos, como capital da província que é, — o da península, o da ilha da Taipa e o da ilha de Coloane. Enamora-se de três cores fundamentais — a verde, a encarnada e a amarela. Mostra três jardins públicos ou publicitados — o de S. Francisco, o de Camões e o de Vasco da Gama; três estátuas, embora a última não figure ainda em lugar público — a de Ferreira do Amaral, a do Coronel Vicente Mesquita e a do Conde de Sena Fernandes; três cinemas, de melhor frequência — Capitol, Apolo e Vitória; três padroeiras a que todos os crentes rendem particular devoção — Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora de Lurdes e Nossa Senhora de Fátima. Observa três mundos distintos — o oriental, o ocidental e o austral. Dispõe de três meios de transporte — o automóvel, o riquechó e a bicicleta; três climas — o frio, o moderado e o quente. Aborrecem-na três barreiras —o mar, a China e as ilhas. Apresenta, como figuras predominantes do seu meio social e económico, três capitalistas chineses — Fu Tak Iam, Kou Ho Neng e Ho Yin. Conta três fases, na sua existência histórica — a construtiva, a expansiva e a evolutiva e segue à risca, no geral, as três grandes virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade.
Se nos abalançássemos a pesquisas mais prolongadas, talvez o quadro oferecesse maior extensão. Os números estão certos e faço votos por que eles, de algum modo, tenham provindo dos ditames protectores e beneficentes da Trindade em que tanto confias e que sempre tem guiado e amparado os teus passos, conforme é tua crença firme.
Não durmas, porém, confiando exclusivamente nesses ditames mesmo que eles, de certeza, sejam oriundos do Poder Supremo, invencível para os crentes.
Continua a remar sobre a maré das tuas fagueiras e nobres intenções, não esquecendo que vives rodeada pela inconstância, pelo desatino e até por signos de indesejável preponderância. A tua felicidade será a de todos nós, portugueses, filhos e não filhos desta amada terra a que não posso oferecer mais nada, além da modéstia deste livro.
Aqui o tens,
Afonso Correia."

terça-feira, 25 de novembro de 2025

José Celestino da Silva Maneiras: 1935-2025

Morreu em Macau o arquitecto José Maneiras. Tinha 90 anos. Nascido em Macau a 11 de Maio de 1935, foi para Portugal onde se licenciou em arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto em 1962. No mesmo ano regressou ao território passando a integrar uma equipa coordenada por Manuel Vicente com quem desenvolve vários planos urbanísticos para a cidade.
José Celestino da Silva Maneiras. Foto JTM (2018)

A partir de 1967, o arquitecto abriu um atelier próprio e foi responsável projectos privados. Em 1987 foi um dos fundadores da Associação dos Arquitectos de Macau. Entre 1989 e 1993 foi presidente do Leal Senado. Desde 2006 tornou-se membro honorário da Ordem dos Arquitectos de Portugal.

Malha urbana da cidade no final da década 1970

Alguns dos projectos em que participou:
Da lista de primeiros projectos realizados em Macau, muitos foram demolidos ou remodelados, mas deles constam: vários edifícios residenciais, incluindo conjuntos na Rua da Praia Grande (Conjunto São Francisco, 1964), na Estrada do Visconde de São Januário (duas residências, 1965), Belle Court na Penha (casa e bloco de apartamentos, 1968) ou o programa residencial para invisuais, a pedido da Santa Casa da Misericórdia (1970), na Rua Sete do Bairro da Areia Preta.
"Anuário de Macau - Ano de 1970" Centro Informação e Turismo

Edifício Si Toi (atual HSBC): em 1982 projectou este que foi o primeiro edifício em Macau a usar um sistema de "curtain wall" (fachada-cortina).
Requalificação da Praça do Tap Seac: entre 2003 e 2006 em colaboração com Carlos Marreiros e José Chui Sai Peng.
Reordenamento Viário da Rotunda Dr. Carlos de Assumpção: coordenou a equipa para este reordenamento em 2006.

domingo, 23 de novembro de 2025

O "Sui-An" da "Hong Kong-Macao Line"

Um dos navios que no início do século 20 assegurava a ligação entre Macau e Hong Kong.
Um testemunho de um viajante no Sui An pode ser lido aqui.
 




sábado, 22 de novembro de 2025

"História do Karting em Macau”

Editado em 2024 pela Praia Grande Edições a "História do Karting em Macau” é um livro trilingue (português, chinês e inglês) da autoria de Carlos Barreto e Pedro Dá Mesquita que como o título indica documenta a história do karting em Macau, incluindo muitas fotografias a cores e a preto e branco de competições locais e internacionais realizadas no território
O karting surgiu em Macau através da delegação local do Automóvel Clube de Portugal em 1965. A primeira edição da prova decorreu no circuito do Grande Prémio de Macau que nesse ano iria cumprir a  12ª edição. As edições de 1966 e 1967 aconteceram num circuito improvisado nas imediações do Liceu, campo dos operários e rotunda Ferreira do Amaral.
Na fotografia da capa do livro um aspecto da edição de 1967 frente ao Liceu, vendo-se muita assistência, não só no interior do recinto do Liceu como também no próprio edifício, incluindo no topo. Ao fundo o edifício Rainha D. Leonor. Do lado esquerdo seria construído cerca de uma década mais tarde o Hotel Sintra.

Os pilotos 'macaenses" dos primeiros anos do karting: Johnny Reis, Baltazar Botelho, Walter Reis e Leonel Barros.

As imagens acima são do livro referido.

A prova de 1967 - 2ª edição - decorreu em Setembro e mereceu destaque no jornal Notícias de Macau, logo a partir dos treinos. (imagens abaixo)
Teddy Yip, de Hong Kong, intimamente ligado ao Grande Prémio, foi um dos principais entusiastas do Karting em Macau sendo também piloto nas provas. Em 1967 por Macau correram os pilotos Walter A. Reis, José Walter Reis e Baltazar Botelho.
O circuito do "Go-Karting"  tinha a meta frente ao Liceu. Passava pela rotunda de Ferreira do Amaral seguindo em direcção ao Porto Exterior na então denominada Av. Oliveira Salazar (actual Av. da Amizade); voltava-se depois no sentido inverso passado frente aos terrenos já reservados para a construção do Hotel Lisboa.
Em declarações ao blogue Macau Antigo Calos Barreto revelou estar a ser preparado "um segundo projecto que vai reunir as histórias contadas pelos pilotos locais que participaram nas provas do Grande Prémio de Macau."