“Se me perguntarem qual a sensação mais profunda e duradoura da minha viagem à volta do mundo, talvez afirme que é a viagem de Macau a Hongkong, sobre um mar adormecido como uma lagoa, sob a cúpula duma noite esplendorosa, com o incentivo de avançar no mistério, rodeando perigos e quase ao nível das águas”.
O excerto faz parte da obra "La Vuelta al Mundo de un Novelista” editada em 1924/25 em três volumes e baseada numa volta ao mundo feita pelo escrito espanhol Vicente Blasco Ibanez (1867-1928) a partir de Outubro de 1923 a bordo do "Franconia".
O 1.º volume é dedicado aos “Estados Unidos-Cuba-Panamá-Hawai-Japão-Corêa-Mandchúria“; o 2.º é sobre a “China-Macau-HongKong-Filipinas-Java-Singapura-Birmânia-Calcutá“; e o 3º é dedicado a “Índia-Ceilão-Sudão-Núbia-Egito”.
Macau surge no segundo volume.
Em Portugal foi traduzido como "A Volta ao Mundo" e teve a primeira edição em 1931.
Nome maior da arte e cultura espanhola, Blasco Ibanez licenciou-se em direito, foi escritor, jornalista e político. Inicia a sua carreira literária escrevendo em catalão, mas depois passa a escrever em castelhano. Tem alguma actividade política, aderindo ao republicanismo federalista. Desenvolve uma intensa actividade como jornalista e orador, destacando-se na sua juventude como agitador democrático e anticlerical. Em 1891 funda o jornal El Pueblo, criando depois as editoras Prometeo e Sempere, a partir das quais leva a cabo um importante trabalho de divulgação cultural e política entre as classes populares. Em 1909 vai para a Argentina, criando ali duas colónias agrícolas que fracassam economicamente. Em 1914 estabelece-se em Paris e a partir de 1920 faz várias viagens aos Estados Unidos, onde é nomeado doutor honoris causa pela Universidade de Washington. Em desacordo com a política do ditador Primo de Rivera, sai de Espanha e fixa-se em Nice.
Com mais de 40 livros publicados tornou-se mundialmente conhecido devido à adaptação para o cinema de títulos como “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse“/“The Four Horsemen of the Apocalypse), 1921 e "Sangue e Areia" / "Blood and Sand" (com Rodolfo Valentino), 1922.
"Esteve de visita a Macau o conhecido romancista espanhol Blasco Ibanez", é o que escreve a imprensa macaense a 13 de Janeiro de 1924. Em Portugal o Diário de Notícias também dá conta dessa visita: "No dia 13 deste mez desembarcou em Macau o grande escriptor hespanhol Blasco Ibanez. O governador da província, avisado da sua chegada por um telegramma do cônsul de Portugal em Hong-Kong, enviou ao cáes o seu chefe de gabinete, para lhe dar as boas vindas, e offerecer-lhe a hospitalidade que o governo da Republica da colônia entendia dever prestar a tão distincto embaixador da Arte."
O excerto também faz parte de um manuscrito intitulado "Notas de Reportagem", sete páginas escritas para o governador de Macau na altura (e revistas por ele), Rodrigo José Rodrigues (1923-1925), que conhecera Ibanez 14 anos antes. Tomé Pires é quem assina o artigo que também seria publicado na edição do jornal brasileiro "A Noite" de 26 de Maio de 1924.
É mais uma prova de que Ibanez se encontrou com Camilo Pessanha e Manuel da Silva Mendes, sendo o próprio governador a acompanhá-lo aos locais mais emblemáticos do território, incluindo o verdadeiro motivo da sua viagem, a Gruta de Camões.
A 12 de Janeiro de 1924 chega a notícia ao Palácio do Governo. Um telegrama do cônsul de Portugal em Hong Kong informa: "Blasco Ibanez chega amanhã Sui An". O Sui An era um dos vapores que assegurava a ligação marítima entre Macau e a colónia britânica.
E assim foi. Às 13 horas de um domingo "luminoso e tépido" desembarcou no Porto Interior tendo à sua espera o chefe de gabinete do governador "para lhe transmitir, com as melhores boas vindas, uma ordem expressa de ficar preso da hospitalidade que o Governo da República na Colónia entendia dever prestar a tão distinto embaixador da Arte."
E assim foi. Às 13 horas de um domingo "luminoso e tépido" desembarcou no Porto Interior tendo à sua espera o chefe de gabinete do governador "para lhe transmitir, com as melhores boas vindas, uma ordem expressa de ficar preso da hospitalidade que o Governo da República na Colónia entendia dever prestar a tão distinto embaixador da Arte."
Ibanez aceita o convite e dirigem-se ao Palácio do Governo de carro através da Avenida Almeida Ribeiro.
À chegada ao palácio, do "grupo de limitadas pessoas escolhidas para lhe fazer companhia durante a permanência em Macau", constam Camilo Pessanha, "o subtil poeta", Manuel da Silva Mendes, "o erudito cultivador e coleccionador da arte chinesa", e António de Meireles, "espírito delicado e vice-presidente do Conselho Legislativo".
Ainda segundo as "Notas de Reportagem" depressa "generalizou-se a conversa em tom de intimidade" com Ibanez a perguntar ao Governador por Bernardino Machado, Afonso Costa, Magalhães Lima, a política em Portugal (onde o escritor ainda iria) e em Espanha...
Ibanez diz que a "A República é uma forma política dentro da qual as conquistas sociais, económicas e outras se podem desenvolver naturalmente sem sobressaltos. É preciso, portanto, que esteja estabelecida a tempo... senão tomam maior vulto as questões que dentro dela se podiam desenvolver. Está a suceder isso com a questão económica. As democracias que se implantaram tarde serão as primeiras a experimentar o atraso que lhe fizeram as classes que o não souberam compreender e adaptar-se". Dá o exemplo da Rússia e teme que o mesmo venha acontecer em Espanha.
"Usa um pequeno bigode (...) não fuma (...) aspecto magnífico" são as palavras das Notas de Reportagem para descrever Ibanez. Fala-se ainda de arte e música. Ibanez adora fado. A certa altura o escritor espanhol vira-se para Pessanha e pergunta: "Estava a ver que me lembrava (Guerra) Junqueiro". E Pessanha responde: "Só exteriormente". Terminada a conversa fica assente que Ibanez só regressaria a Hong Kong (e dali para as Filipinas) à noite, depois de jantar no Palácio do Governo. Até lá, o governador leva-o a passear numa visita guiada pelo território. "Sabe, esta visita a Macau faz parte de um largo plano que trago em laboração. ando numa viagem à volta do mundo, mas não me conduz só o diletantismo. A História, a Arte, a Vida.. são coisas que não se fazem na cozinha, como julgam e fazem tantos outros que escrevem. é preciso senti-las... vivê-las..." confessa Ibanez ao governador no início do passeio marcado por "uma conversa sempre animada e amiga, como entre velhos camaradas", testemunha o autor das Notas.
A primeira paragem é feita no Jardim de Camões onde o governador resume as façanhas dos portugueses até chegarem a Macau no início do século 16. Já na gruta, Ibanez presta homenagem ao poeta "que tão bem conhecia". Um grupo de portugueses ouvia música num gramofone e colocara os chapéus no busto de Camões algo que desagradou ao governador. Nas Notas escreve-se que Ibanez "na sua generosidade esquecerá certamente" o episódio.
Dali a viagem prosseguiu "até à histórica fortaleza do monte" e "pelas obras já concluídas do porto novo" e às "em plena actividade grandes obras do porto exterior". Para o governador "dentro de três a cinco anos Macau poderá voltar a ser um grande entreposto marítimo." Ibanez estranha tal facto não ser conhecido no Ocidente e promete ajudar nesse sentido: "Contem comigo, com a minha pena e as minhas relações..."
"Dali, porque a tarde avançava, foi-se em romagem à Colina da Guia, onde se ergue o primeiro farol que a civilização ocidental, pela mão dos portugueses, acendeu nas praias do Oriente". A vista proporcionada era deslumbrante acentua o governador. "Tombava uma tarde gloriosa de luz, de suavidade e harmonia. (...) Macau oferecia um espectáculo inolvidável, matisada do rubro poente em que o sol se afagava, explodindo entre a Lapa, e Ma-Lau-Chau até à côr glauca do mar e rôxo escuro da noite, vindo das Nove Ilhas e dos montes do Catai, de onde Marco Polo tirou o nome da China."
Fez-se noite e a "cidade salteou-se de luz electrica". Tinham de prosseguir o passeio e "descer para irmos ver as magníficas collecções de arte chineza do Dr. Silva Mendes e para apanhar em flagrante o Macau phosphorescente de fantan (jogo), de culaus (restaurantes) e do ópio."
Ao fim de duas horas, às 8 da noite, estava tudo pronto para o "jantar despido de protocollo" oferecido pelo governador. "À mesa conversou-se como em família. Ibanez falou da guerra e dos seus projectos literários futuros..."
O navio que levaria Ibanez para as Filipinas não tardaria a zarpar de Hong Kong pelo que o repasto foi de curta duração. "Eram dez horas da noite, quando na ponte da capitania * o illustre visitante se despediu do governador e entrou na lancha 'Coloan' do governo, posta às suas ordens para o conduzir a Hong Kong".
"Dali, porque a tarde avançava, foi-se em romagem à Colina da Guia, onde se ergue o primeiro farol que a civilização ocidental, pela mão dos portugueses, acendeu nas praias do Oriente". A vista proporcionada era deslumbrante acentua o governador. "Tombava uma tarde gloriosa de luz, de suavidade e harmonia. (...) Macau oferecia um espectáculo inolvidável, matisada do rubro poente em que o sol se afagava, explodindo entre a Lapa, e Ma-Lau-Chau até à côr glauca do mar e rôxo escuro da noite, vindo das Nove Ilhas e dos montes do Catai, de onde Marco Polo tirou o nome da China."
Fez-se noite e a "cidade salteou-se de luz electrica". Tinham de prosseguir o passeio e "descer para irmos ver as magníficas collecções de arte chineza do Dr. Silva Mendes e para apanhar em flagrante o Macau phosphorescente de fantan (jogo), de culaus (restaurantes) e do ópio."
Ao fim de duas horas, às 8 da noite, estava tudo pronto para o "jantar despido de protocollo" oferecido pelo governador. "À mesa conversou-se como em família. Ibanez falou da guerra e dos seus projectos literários futuros..."
O navio que levaria Ibanez para as Filipinas não tardaria a zarpar de Hong Kong pelo que o repasto foi de curta duração. "Eram dez horas da noite, quando na ponte da capitania * o illustre visitante se despediu do governador e entrou na lancha 'Coloan' do governo, posta às suas ordens para o conduzir a Hong Kong".
Blasco Ibanez despede-se com um "Adios! Hasta Siempre!"
* ponte-cais nº1, junto ao actual Museu Marítimo.
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