"Eu fui vagabundo" é o título de um livro editado em 1973 que inclui várias reportagens de José Augusto Roussado Pinto (1926-1984), jornalista, escritor e editor. Como jornalista marcou o panorama da imprensa em Portugal com o «Jornal do incrível», foi também autor de reportagens e de romances policiais usando pseudónimos. Neste livro está uma reportagem intitulada "Sete dias entre a população chinesa de Macau" de que reproduzo aqui alguns excertos...
"No momento em que desembarcámos em Macau ,
crescia sobre a cidade o espectro do tufão «Georgia» (1), e todos os olhares, por isso mesmo, se dirigiram para a Fortaleza do Monte, em busca do sinal
luminoso que indicasse a situação exacta do perigo.
Era um sábado. O barco que nos trouxera de
Hong-Kong levara quatro horas de viagem, sob um
calor insuportável, que provocando suores congelados
por uma humidade a cem por cento, se transformaram
numa espécie de banha pegajosa que cobria a pele.
O barco trazia centenas de turistas de todas as
raças: brancos, pretos e amarelos. Nada de uniformidade quanto a trajos: o «smoking» misturava-se
com o tronco nú. Mas todos sorriam, satisfeitos,
como se adivinhassem um bom fim de semana, indiferentes ao relógio que acabava de bater a meia
-noite.
No momento da atracação desabou uma chuva
inesperada de pingos grossos, que obrigou toda a
gente a precipitar-se em corrida pela ponte de desembarque e procurar refúgio sob o tecto do edifício do cais. Seguiu-se o natural sacudir das roupas com
a descontracção própria de quem está habituado
a estas chuvadas repentinas, e logo todos se encaminharam para a bicha lenta e morosa do tradicional visto de passaportes.
-Porquê esta multidão? -perguntamos a quem
nos acompanhava, admirados daquele afluxo de turistas.
-Vêm para o jogo- esclareceram-nos.
Foi a primeira vez que ouvimos a palavra «jogo»
em Macau, e essa palavra iria acompanhar-nos
durante os sete dias em que convivemos com a sua
população chinesa.
Mas comecemos pelo princípio...
Um "restaurante" volante, especializado em cozinhados de carne de cão
Os dois amigos que nos serviram de guias e
intérpretes, alternadamente, ao longo desta reportagem, eram de opinião que os chineses, em Macau,
têm «mundos» muito seus - «mundos» de hábitos,
aos quais permanecem arreigados, para lá de todos
os progressos. Um desses «mundos» reside nesses
pitorescos «restaurantes» que se descobrem em determinadas ruas, quase sempre às esquinas, cujos donos
todos os dias carregam para ali mesas, bancos, fogões,
tigelas, pauzinhos, copos e vinho, e tudo voltam
a levar quando resolvem «fechar».
Para que os víssemos, levaram-nos a um deles que se dedicava a uma especialidade: cozinhado de
carne de cão.
- Carne de cão? - admirámo-nos.
-Carne de cão. Um petisco. Uma maravilha.
A perspectiva era curiosa. O «restaurante» fora
improvisado atrás da Escola Comercial, com as suas
mesas a quarenta centímetros do solo e as cadeiras
a vinte. No meio, uma mesa maior com as tigelas,
os pauzinhos e os copos. Por detrás dela, o cozinheiro
com a panela em feitio de cone, entre as pernas.
Esta panela mantinha um molho em ebulição, devido
a um pequeno fogo. Ao lado, outra panela com PS
bocados, já partidos e cozidos, de carne de cão.
O cozinheiro era um chinês simpático, de olhos
alegres, que sorria para todos os clientes ao mesmo
tempo e atendia os rapazes que serviam as mesas
com rapidez dando-lhes as tigelinhas e o vinho. Ele
só metia os bocadinhos de carne de cão no molho
depois do cliente pedir. E havia quem seleccionasse
o que preferia: mais gordura mais pele, mais magrinha ou com «uns ossinhos». A todos satisfazia tirando
os bocadinhos do molho, colocando-os nas tigelinhas
e passando-os aos rapazes, que os serviam nas mesa; acompanhados de um copo de vinho chinês (vinho
de arroz). Cada tigelinha, incluindo o vinho, custava
2 patacas (9$50). Estivémos mais de vinte minutos à espera de lugar. Os
chineses vêm chegando, a pé ou de bicicleta e tomam lugar .
Conversam naquela sua impassibilidade aparente, onde os olhos estão fixos e só os lábios mexem. Ali marcam encontros: Tratam de negócios. Não há pressa nem precipitação. Aceitam as tigelinhas da mão dos rapazes que os servem...
(1) Reportagem publicada no dia 5 de Fevereiro de 1971
O barco que nos trouxera de Hong-Kong levara quatro horas de viagem, sob um calor insuportável.
ResponderEliminarNão será exagerado dizer que nos primeiros dias de Fevereiro estava um calor insuportável em Macau? cumprimentos.
Não me admira. Um Fevereiro excepcionalmente quente e húmido.
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