"Todas as outras ocupações humanas tendem mais ou menos a explorar o homem: só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo". (Eça de Queirós, Correspondência, Porto, 1928; carta datada de Paris, 8 de Fevereiro de 1895).
Quando falamos em literatura, somos muitas vezes levados a esquecer que existem literaturas ditas marginais, e entre estas a literatura oral, literatura popular de transmissão não escrita que, na China, atingiu o seu ponto alto no espírito criativo dos contadores de histórias. Nos aterros novos da Praia Grande, em Macau, ouvimos, nos anos 60, um destes velhos contadores chineses.
Quando falamos em literatura, somos muitas vezes levados a esquecer que existem literaturas ditas marginais, e entre estas a literatura oral, literatura popular de transmissão não escrita que, na China, atingiu o seu ponto alto no espírito criativo dos contadores de histórias. Nos aterros novos da Praia Grande, em Macau, ouvimos, nos anos 60, um destes velhos contadores chineses.
À luz dos petromax, ou de pequenos candeeiros de luz vermelha e frouxa, nas cálidas noites de Verão, muitos eram os moradores que procuravam, na Praia Grande, a brisa fresca, vinda do rio, brisa às vezes morna, como o ar quente que as ventoinhas de tecto agitavam nas casas pequenas e mal ventiladas. Estacionavam, ali, vendilhões de achares, de sopas de fitas, de frutas, de chás frescos, de mil e uma quinquilharias. Porém, era o contador de histórias o pólo atractivo da multidão. Um grande leque preto, onde duas borboletas sobre peónias pareciam volitar; uma pequena esteira e, sobre ela, o homem feito de sombra e luz. Era um ancião de barbas brancas e ralas, de mãos esguias e nodosas, de faces vincadas por rugas, que o tempo e a adversidade haviam desenhado. Viera, há muito, da China. O contador de histórias, ao falar, movia as mãos num ritmo rápido ou lento, ora em gestos de quem abraça ora de quem repele. Mãos de actor de ópera, mãos de poeta ou de letrado ou mãos de asceta... E ficávamos ali, sentados nos calcanhares, a ouvi-lo contar lendas da China milenária, histórias da História do grande Império do Meio, histórias de kwâi, que empolgavam sempre os seus ouvintes e histórias de alguém, que talvez tivesse vivido apenas na sua imaginação.
Hoje, Macau já não tem quem saiba contar; quem saiba mergulhar no mundo da fantasia, no mundo do irreal, só realizável no acto de dizer. Para onde foram os últimos contadores de histórias chineses de Macau?
Contar histórias, é tradição talvez tão antiga como a própria Humanidade. Na China, porém, o contador foi, de todo o sempre, o animador do povo humilde das aldeias, indispensável na arcaica casa dos Homens, durante a Estação morta. (1)
Se o contador era, por vezes, um letrado que falhara num exame, outras vezes era um homem do povo, de espírito criativo, de imaginação fértil, que à maneira dos nossos jograis medievos percorria a China a vender fantasia, a vender a ingénua distracção de contar histórias. E, muitas vezes, não a vendia; oferecia, apenas, a sua arte. E isto porque, para os chineses, toda e qualquer criação não tem preço. (2) Para dar uma ideia do que contava um contador de histórias em Macau, apresentaremos apenas um exemplo: A história do gato do Magistrado Lei. Esta história é, ao que supomos, uma adaptação de uma antiga narrativa clássica da velha China, que parece datar da Dinastia Ming. (3) Escolhemo-la, porque a ouvimos a um contador de histórias de Macau, tendo passado ao povo, talvez por esta via e também porque constitui um exemplo típico do carácter cíclico do pensamento chinês, o que distingue a sua filosofia da lógica linear dos gregos, modelo típico do pensamento clássico ocidental. Nesta história nada se passa. E no entanto é profundo o pensamento que ela consubstancia.
Um alto funcionário chinês, letrado de grande renome, adquiriu, por elevada soma, um gato maravilhoso. De olhos verde-opala, corpo dourado felpudo, orelhas rebatidas, cauda reduzida, patas fortes e duas grandes asas de borboleta desenhadas no dorso em tom mais escuro, aquele gato, irregularmente listrado, era, realmente, um belo exemplar de felino doméstico. Orgulhoso de possuir gato tão lindo, o dono deu-lhe o nome de Tigre e convidou alguns letrados seus amigos para versejarem, jogarem xadrez e admirarem o novo "bibelot" vivo, que adquirira havia pouco. À sombra de um fresco bambual no extremo do jardim da grande e faustosa moradia, onde uma mesa de pedra tinha gravado no tampo um tabuleiro de chéong kei (xadrez chinês) os letrados, envergando cabaias compridas de boa seda, conversavam na sua maneira erudita de homens cultos e de bom gosto.
O dono da casa, apontando para o gato que dormia molemente ao sol sobre um velho banco, exclamou:
- Vejam como é belo o meu gato! Não é certo que lhe fica bem o nome de Tigre, que lhe pus?
Um dos presentes exclamou:
- É certo que o tigre é belo e é poderoso, mas o dragão é bem mais forte e tem ainda mais poder... Porque não lhe puseste o nome de Dragão?
Outro amigo interveio:
- Sem dúvida que o dragão é mais poderoso do que o tigre, mas não é menos certo que, ao elevar-se ao Céu, é encoberto pelas nuvens. Porque não chamas, tu, Nuvem ao teu gato? Nuvem dourada seria um nome lindo!
Um terceiro conviva tomou a palavra para dizer:
- Vejam bem; se as nuvens são capazes de cobrir todo o Céu, são menos fortes do que o vento, que pode dispersá-las. A meu ver, o nome mais próprio para o teu gato, será Vento.
- Vento? - interrogou um outro visitante. Que poder tem o vento contra uma forte palissada de bambu? Bambu seria o nome certo. Só Bambu.
O quinto letrado que até ali se mantivera mudo a observar o lindo felino, opinou então:
- Se a palissada de bambu resiste ao vento, os ratos podem roe-la, perfurá-la e passar através dela... Porque não se chamará Rato o teu gato tão lindo?
Um velho camponês que em silêncio escutava atento, desde o início, a conversa plena de erudição dos seis letrados, perguntou-lhes, então, com humildade, logo que eles acabaram de falar:
- Veneráveis Mestres pensai: quem é o mais forte porque pode matar os ratos? Não é o gato?
A forma cíclica desta verdadeira parábola mostra, também, até que ponto é frágil e relativa toda a noção de poder.... Além de historietas como esta, o contador de Macau narrava histórias muito longas ao gosto popular chinês, histórias que podiam demorar a contar horas a fio. Contava, também, anedotas e propunha adivinhas… um mundo de imaginação e de memórias! Diz uma antiga máxima chinesa: "Os meus livros falam ao meu espírito; os meus amigos ao meu coração; o Céu à minha alma. Tudo o mais aos meus ouvidos..." Mas certo é que o contador chinês de histórias, de Macau, falou ao meu espírito, ao meu coração e à minha alma através dos meus ouvidos.
Notas:
(1) Marcel Granet - La Civilization Chinoise; Col. "L'Évolution de l'Humanité", Albin Michel, Paris, 1968 (Reed. da ed. "La Renaissance du Livre" 1929).
(2) Sabe-se a partir de esculturas em terracota encontradas recentemente na China, que já desde a Dinastia Hón (漢) havia contadores de histórias que se faziam acompanhar pelo seu pequeno tamborim, como acontecia em Macau ainda nas primeiras décadas do século XX.
(3) O Nome do gato é um texto semelhante a esta historieta que se atribui a Yuan King, ensaísta chinês da Dinastia Ming.
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