Luís Gonzaga Gomes escreveu um texto sobre "Os Primitivos Bombeiros de Macau" de onde retirei estes excertos:
"Há umas poucas de dezenas de anos, esta cidade ainda não possuía um serviço de incêndios mantido pelo Estado e, por este motivo, os precursores dos actuais bombeiros ainda não faziam parte duma organização centenária. A maioria das ruas da cidade era constituída por estreitíssima vielas, ladeadas de velhas casa que porfiavam em sair do seu alinhamento e que decerto se desmoronariam à menor trepidação dum Thornicroft, se é que fosse possível fazer circular por entre elas um monstro desses.
Nessa época, cada rua tinha de concorrer para a manutenção dum grupo de bombeiros que guardavam em suas casas uns metrozinhos de mangueira, uma agulheta e uma bomba de incêndio, que consistia em uma caixa que se movia sobre duas rodas, tendo num dos lados um rudimentar maquinismo que servia para comprimir a água.
Quando fosse preciso fazer trabalhar esse precioso engenho ia-se buscar água, aos baldes, nos poço ou no mar e, uma vez lançada para dentro da caixa reservatório, o líquido extintor era comprimido pelo maquinismo, que era por sua vez accionado à força dos músculos de vigorosos mocetões. Ora, embora os jactos de água não atingissem mais que uns metros de altura, nem por isso esse maquinismo deixava de ser eficiente quando se dava qualquer incêndio, porquanto, nessa altura, ainda não existiam risca-céus, não sendo também, portanto, necessário o uso das complicadas escadas articuladas Magyrus.
Como nem todas as ruas podiam dar-se ao luxo de possuir uma bomba, quando ocorria um incêndio os bombeiros da rua sinistrada tinham de se entreter a atacar a conflagração com baldes de água até à chegada das bombas das outras ruas. Mesmo assim, punham às vezes tal empenho em atacar as terríveis labaredas e tal era a profusão de água que o entusiasmo dos seus esforços congregados os levavam a lançar para cima das flamejantes áscuas, que era raro o incêndio capaz de resistir à sua improvisada táctica e à sua espontânea estratégia.
Nesse tempo, existia uma combinação tácita entre os bombeiros e a população da cidade. E assim, logo que fosse dado o rebate saíam todos os bombeiros dos seus alojamentos e o grupo que chegasse primeiro, através do dédalo das ruelas da velha cidade, recebia como recompensa dos seus esforços um magnífico leitão assado e dois almudes da melhor aguardente chinesa, custeados entre os moradores da rua vitimada pelo sinistro.
Ora o grupo mais afamado era o da fábrica de tabacos “Tchü-Tc`heong-Kei”, que mantinha um grupo privativo com o seu respectivo equipamento, o mais completo possível, pois necessitava de se prevenir contra qualquer incêndio dentro da fábrica cujo negócio era enorme.
Além do grupo de bombeiros, a fábrica obrigava todos os empregados a exercitar-se, constantemente, em destreza e acrobacia, de forma a que todos pudessem acudir pronta e eficientemente em qualquer caso de fatalidade. Estimulados com um bom salário, era nesse grupo que estavam reunidos os melhores bombeiros da cidade.
Assim que fosse dado o sinal de alarme, quer de noite ou de dia, esses valorosos mocetões saltavam imediatamente das suas camas e, num abrir e fechar de olhos, fazendo repercutir com estrépito nas pedras das vielas os seus sapatorros, chegavam ao local do desastre, no meio dum ensurdecedor estrupido de rodados e de brutais imprecações, pondo toda a rua alvoroçada numa convulsão de actividade e, em alguns minutos, dominavam com uma presteza sem igual qualquer abrasamento por mais violento que fosse.
Por este motivo, quando acontecia uma calamidade desta natureza, os ânimos pusilânimes dos moradores da rua onde se manifestava o sinistro só se asserenavam com a chegada do grupo da fábrica “Tchü-Tc`heong-Kei”. Então, alijados do receio de o fogo se alastrar, devastando as suas casas, exclamavam jubilosos: - Já não há receio! Já chegou o grupo de “Tchü-Tc`heong-Kei”! E assim não consta que nesse tempo algum outro grupo tivesse conseguido conquistar mais porcos assados e almudes de aguardente chinesa do que esse famigerado punhado de bravos cujo componentes caprichavam em se excederem uns aos outros em denodadas dedicações e nobres lances.
Houve um ano em que se deu um violento incêndio numas casas da Rua da Parede de Pedra, em Sân-K`iu. Logo que correu a notícia do sinistro, imediatamente acorreram a prestar os primeiros socorros as três bombas de incêndio que havia na cidade e os tíbios moradores desse bairro ficaram varados de angústia quando não viram chegar o grupo campeão, que estava aquartelado onde é hoje a Rua do Almirante Sérgio. Deste sítio até ao local de incêndio dista pelo menos uns bons vinte minutos e as eversoras chamas, desenvolvendo-se com toda a violência, pareciam querer lamber todo o quarteirão.
Já toda a gente se encontrava descoroçoada por julgar que o grupo da “Tchü-Tc`heong-Kei” não compareceria desta vez, por qualquer extraordinário impedimento, pois todos os grupos, de há muito que se encontravam afadigados em extinguir o pavoroso incêndio.
Nisto, toda a rua aglomerada de povo estrugiu num grito uníssono de exultação. Com uma velocidade louca acabavam de chegar, correndo ovantes, os bombeiros do grupo da “Tchü-Tc`heong-Kei” carreando consigo a pesadona carripana portadora da bomba de incêndio. Trabalhando afanosamente e atirando-se com denodo às chamas, aqueles esforçados bravos dominaram completamente o terrível incêndio dentro de brevíssimo espaço de tempo, salvando não poucas vidas.
Ora o principal segredo dos bombeiros da “Tchü-Tc`heong-Kei” de serem quase sempre os primeiros a abalar para qualquer incêndio residia no facto de viverem sob a mais rígida disciplina, numa espécie de quartel, onde eram obrigados a dormir todos juntos, não sucedendo o mesmo com os dos outros grupos que dormiam cada um em sua casa, sendo necessário estar-se à espera de uns pelos outros para poderem fazer sair a sua carripana.
Desta vez não conseguiram ser os primeiros a chegar, em virtude da enorme distância que separava o seu quartel do local do incêndio, mas, embora não tivessem ganho o porco assado e os dois almudes de aguardente china, nem por isso deixaram de com-participar na patuscada do costume, pois que foram para isso especialmente convidados por terem sido os que mais eficientemente trabalharam na extinção daquele horrível incêndio."
30 de Julho de 1942, in “Curiosidades de Macau Antiga”
Nessa época, cada rua tinha de concorrer para a manutenção dum grupo de bombeiros que guardavam em suas casas uns metrozinhos de mangueira, uma agulheta e uma bomba de incêndio, que consistia em uma caixa que se movia sobre duas rodas, tendo num dos lados um rudimentar maquinismo que servia para comprimir a água.
Quando fosse preciso fazer trabalhar esse precioso engenho ia-se buscar água, aos baldes, nos poço ou no mar e, uma vez lançada para dentro da caixa reservatório, o líquido extintor era comprimido pelo maquinismo, que era por sua vez accionado à força dos músculos de vigorosos mocetões. Ora, embora os jactos de água não atingissem mais que uns metros de altura, nem por isso esse maquinismo deixava de ser eficiente quando se dava qualquer incêndio, porquanto, nessa altura, ainda não existiam risca-céus, não sendo também, portanto, necessário o uso das complicadas escadas articuladas Magyrus.
Como nem todas as ruas podiam dar-se ao luxo de possuir uma bomba, quando ocorria um incêndio os bombeiros da rua sinistrada tinham de se entreter a atacar a conflagração com baldes de água até à chegada das bombas das outras ruas. Mesmo assim, punham às vezes tal empenho em atacar as terríveis labaredas e tal era a profusão de água que o entusiasmo dos seus esforços congregados os levavam a lançar para cima das flamejantes áscuas, que era raro o incêndio capaz de resistir à sua improvisada táctica e à sua espontânea estratégia.
Regulamento do Corpo de Bombeiros (1952) |
Ora o grupo mais afamado era o da fábrica de tabacos “Tchü-Tc`heong-Kei”, que mantinha um grupo privativo com o seu respectivo equipamento, o mais completo possível, pois necessitava de se prevenir contra qualquer incêndio dentro da fábrica cujo negócio era enorme.
Além do grupo de bombeiros, a fábrica obrigava todos os empregados a exercitar-se, constantemente, em destreza e acrobacia, de forma a que todos pudessem acudir pronta e eficientemente em qualquer caso de fatalidade. Estimulados com um bom salário, era nesse grupo que estavam reunidos os melhores bombeiros da cidade.
Assim que fosse dado o sinal de alarme, quer de noite ou de dia, esses valorosos mocetões saltavam imediatamente das suas camas e, num abrir e fechar de olhos, fazendo repercutir com estrépito nas pedras das vielas os seus sapatorros, chegavam ao local do desastre, no meio dum ensurdecedor estrupido de rodados e de brutais imprecações, pondo toda a rua alvoroçada numa convulsão de actividade e, em alguns minutos, dominavam com uma presteza sem igual qualquer abrasamento por mais violento que fosse.
Desfile na Av. Almeida Ribeiro: década 1930/40 |
Por este motivo, quando acontecia uma calamidade desta natureza, os ânimos pusilânimes dos moradores da rua onde se manifestava o sinistro só se asserenavam com a chegada do grupo da fábrica “Tchü-Tc`heong-Kei”. Então, alijados do receio de o fogo se alastrar, devastando as suas casas, exclamavam jubilosos: - Já não há receio! Já chegou o grupo de “Tchü-Tc`heong-Kei”! E assim não consta que nesse tempo algum outro grupo tivesse conseguido conquistar mais porcos assados e almudes de aguardente chinesa do que esse famigerado punhado de bravos cujo componentes caprichavam em se excederem uns aos outros em denodadas dedicações e nobres lances.
Houve um ano em que se deu um violento incêndio numas casas da Rua da Parede de Pedra, em Sân-K`iu. Logo que correu a notícia do sinistro, imediatamente acorreram a prestar os primeiros socorros as três bombas de incêndio que havia na cidade e os tíbios moradores desse bairro ficaram varados de angústia quando não viram chegar o grupo campeão, que estava aquartelado onde é hoje a Rua do Almirante Sérgio. Deste sítio até ao local de incêndio dista pelo menos uns bons vinte minutos e as eversoras chamas, desenvolvendo-se com toda a violência, pareciam querer lamber todo o quarteirão.
Já toda a gente se encontrava descoroçoada por julgar que o grupo da “Tchü-Tc`heong-Kei” não compareceria desta vez, por qualquer extraordinário impedimento, pois todos os grupos, de há muito que se encontravam afadigados em extinguir o pavoroso incêndio.
Nisto, toda a rua aglomerada de povo estrugiu num grito uníssono de exultação. Com uma velocidade louca acabavam de chegar, correndo ovantes, os bombeiros do grupo da “Tchü-Tc`heong-Kei” carreando consigo a pesadona carripana portadora da bomba de incêndio. Trabalhando afanosamente e atirando-se com denodo às chamas, aqueles esforçados bravos dominaram completamente o terrível incêndio dentro de brevíssimo espaço de tempo, salvando não poucas vidas.
Do Regulamento de 1952 |
Desta vez não conseguiram ser os primeiros a chegar, em virtude da enorme distância que separava o seu quartel do local do incêndio, mas, embora não tivessem ganho o porco assado e os dois almudes de aguardente china, nem por isso deixaram de com-participar na patuscada do costume, pois que foram para isso especialmente convidados por terem sido os que mais eficientemente trabalharam na extinção daquele horrível incêndio."
30 de Julho de 1942, in “Curiosidades de Macau Antiga”
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