quarta-feira, 31 de março de 2021

Canhoneira Príncipe Carlos surta "no rio de Macau"

A 20 de Outubro de 1864 o Governo de Macau foi autorizado a construir duas escunas a vapor. Viria a construiu uma e comprou outra em Hong Kong. Esta última denominou-se Príncipe D. Carlos (escuna de guerra). A outra, baptizada "Camões", foi construída na China. Entrou ao serviço em 1865 e foi abatida em 1876. 
As duas embarcações foram classificadas como canhoneiras e usadas, entre outros fins, no combate à pirataria.
De seguida apresento o relatório do primeiro cruzeiro da Canhoneira Príncipe Carlos feito pelo comandante da mesma em 1867.
Ilmo e Exmo Sr   
Tendo regressado a este porto do primeiro cruzeiro que teve a canhoneira Príncipe Carlos, cumpre-me o de apresentar a V Exa as observações que fiz ácerca das condições nauticas da mesma canhoneira, consideradas em referência á sua qualidade de navio a vapor. São muitas e variadas as opiniões que tenho ouvido emittir a respeito deste navio e por isso esperava apresentar a minha quando bem a pudesse fundamentar. Proporcionou-me V .Exa para isso os meios necessarios dignando se dar a commissão que acaba de ser preenchida e na qual fiz as experiencias que as circumstancias do tempo permittiram e que me parecem sufficientes para dizer que o navio é dotado de excellentes qualidades nauticas. Havendo desde já declarado a V Exa a minha opinião passarei a relatar a derrota que segui no meu cruzeiro.
Largando a amarração sobre boia do meu ancoradouro no rio de Macáo no dia 29 do mez findo, ás 7 horas da manhã, dirigi a minha navegação, só a vapor para a Boca de Tigre, e segui pelo rio de Cantão até surgir defronte da cidade do mesmo nome onde ancorei. Cumpridas as instrucções que de V Exa para o digno e zeloso consul portuguez naquella localidade o sr Eduardo Pettit, larguei para Hong kong tendo me demorado alguns dias em Vam pú como tive a honra de participar a V Exa em officio nº 1 do corrente ano. Refeito de mantimentos, aguada e carvão em Hongkong segui para oeste não me afastando porém de Macao em conformidade das ordens que recebi de V. Exa. Nas circumstancias de bom tempo e vento brando o navio só com o pano seguia á bolina 4 milhas por hora virando por d'avante e em róda; largo do vento andou proximamente; o que faz suppor que deve ser muito veleir com vento fresco. Se o helice pudesse suspender-se seria um navio de primeira marcha.
O casco é de construcção solida e mui elegante, denunciando immediatamente o seu bom andamento. As madeiras empregadas são de teca e molave. Está bem reforçado nos logares onde giram os rodizios como tive occasião de verificar. O seu aparelho, de escuna, está bem aguentado e airoso; porém esta parte tenho a observar que a enxarcia real fosse d'arame e não de linho por que o fumo a deteriora facilmente. Pelo que respeita á machina direi que depois das alterações feitas em Macáo debaixo da direcção do habil engenheiro machinista Antonio José Dias, que a pedido do contractador se prestou gratuitamente durante cincoenta dias consecutivos a este arduo trabalho, ficou ella em bom estado e satisfez cabalmente a esperiencia de recepção. Não aconteceo o mesmo quando o navio veio de Vampú porque um conjuncto de circumstancias o tornavam inservivel.
A machina é de alta pressão, dá força de 30 cavallos nominaes ou 180 effectivos e do systema de Tronco ou de embulos annulares. As suas principaes peças são de solida e reforçada construcção. A 50 libras de pressão deu revoluções por minuto e imprimio navio a velocidade de 7 milhas nas circumstancias referidas. Auxiliada com o pano e á bolina esta velocidade augmentou de uma maneira notavel. Com o vento regular e para ré de 6 quartas desenvolvendo a machina a 25 libras obtiveram-se 50 revoluções seguindo o navio nestas circumstancias 9 milhas. A pressão nas caldeiras poderá ser elevada na actualidade a 80 libras sem risco. Terminarei esta parte dizendo que o consumo do carvão, por um calculo aproximado, é de 10 toneladas em 24 horas e que o paiol tem capacidade para 32. Se em logar de 3 caldeiras houvesse uma com 3 fornalhas a capacidade para o carvão augmentaria muito e vantagens em geral seriam mui importantes.
Devo tambem informar a V Exa este cruzeiro empreguei a guarnição em exercicios de pano, de artilharia e de fuzil. As peças de calibre 32 tem pouco alcance e são pesadas. Este navio carece de 2 rodizios raiádos Blackley que são de muito alcance e certesa, como consta pelos relatorios que dos navios da divisão de reserva, em Lisboa, dirigiram ao respectivo commandante da divisão em exercicios na enseada da villa de Paços de Arcos.
Concluindo direi que as aphreensoes de que alguns se possuiram das qualidades da canhoneira Príncipe Carlos e da sua machina, depois ter sido acceita, não podem ter mootivo justificado e devo crer que apenas se fundam em opiniões emittidas por individuos extranhos á profissão e sem conhecimentos de machinas a vapor. É possivel que a minha limitada intelligencia e pouca pratica me illudam mas posso asseverar que são exactas as bases que apresento neste relatorio para V Exa julgue o que for mais acertado.
Aproveitando este ensejo peço licença para significar a V Exa que a ordem e disciplina a meu bordo foi sempre mantida com regularidade o que é devido em grande parte ao meu immediato o 2º tenente Julio Monteiro Cabral que no desempenho das suas funcções tem sido sempre zeloso e activo. Não deixarei tambem de fazer menção do mestre Valerio que nesta qualidade tem até hoje dado provas de intelligencia e dedicação pelo serviço juntando a isto o respeito e afecto que tem sabido merecer da guarnição em geral.
Deus Guarde a V Exa 
Bordo Príncipe Carlos surto no rio, 14 de janeiro de 1867 -
António José Caminha 1º Tenente Commandante
in Boletim do Governo de Macau, 21.01.1867
Canhoneira Camões. Imagem: Museu de Marinha
Nota: 
A escuna (a vapor) de guerra (armada com 4 bocas de fogo) Príncipe D. Carlos era um navio mercante inglês adquirido em Hong-Kong pelo Governo de Macau em 1866 a fim de substituir a lorcha de guerra Amazona que se encontrava em muito mau estado.
Foi muito utilizada no combate aos piratas, viagens oficiais do Governador e como símbolo de soberania em viagens até Timor, Cantão e Xangai. Em 1869 passou a navio de vela "por conveniência de serviço".
No tufão que assolou Macau em  Setembro de 1874 afundaram-se alguns navios e entre eles o D. Carlos e o Camões.

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