quarta-feira, 26 de julho de 2017

Um Marco de Macau

Manuel Silva Mendes tem sido um nome esquecido na história de Macau. A biografia feita com paixão por João Botas resgata-o e mostra-o como um nome fundamental do território no século XX.
Macau ainda tem muitas histórias para contar. E muitas delas encontram eco no blogue "Macau Antigo", que João Botas vem animando ao longo dos anos e que é uma fonte sem fim de luz sobre o antigo território sob administração portuguesa e sobre as pessoas que por lá passaram e ali deixaram a sua impressão digital. Algumas delas foram esquecidas pelo tempo, sobretudo em Portugal, onde a história se faz muitas vezes à base de "heróis" ou de dignatários. Esquecendo muitos dos que, em diferentes latitudes, impuseram os seus sonhos. É por isso que esta biografia de Manuel da Silva Mendes vem preencher uma enorme lacuna na história de Macau na transição do século XIX para o XX.
Manuel da Silva Mendes foi, como recorda João Botas, "um dos intelectuais mais relevantes da história de Macau na primeira metade do século XX. Foi professor e reitor de liceu, juiz, vereador e um dos melhores coleccionadores de arte chinesa". Foi ali que morreu, por sua vontade expressa, já que sentindo a chamada do seu fim, para ali fez uma derradeira viagem, para comungar os seus últimos dias com a terra que amou. Ao logo das páginas, vamos desvendando a sua vida e, especialmente, a sua diversificada vida em Macau, onde fez de tudo um pouco, resguardando-se quase sempre de actividades de forte índole política. Apesar das suas convicções republicanas e, dizem, anarquistas.
Não deixa de ser curiosa a citação de Manuel da Silva Mendes que surge quase no início da biografia e que acaba por definir o próprio: "Afeiçoei-me à terra e aqui fiquei. Nunca ganhei nem perdi dinheiro no jogo, porque nunca joguei; nunca ganhei rios de dinheiro nem cousa que com isso parecesse, porque, para além de outras razões, em Macau rios de dinheiro, honestamente, ninguém pode ganhar. Mas consegui amealhar o bastante para viver modestamente e tem-me Macau, a China e amigos chineses proporcionado meios de satisfazer as minhas necessidades intelectuais. Nunca me intrometi em irritantes questões políticas ou administrativas, nunca me foi oferecido lugar algum de benesses ou honrarias, nem solicitei, nem ambicionei. E, assim, e posto que tenha sido, em regra, tratado com menos consideração do que muitos que nem sequer seis deveres tem cumprido, tenho vivido contente".
A biografia escrita por João Botas é elucidativa sobre o que estas palavras encerram. Ele foi uma figura ímpar num tempo de convulsões em Portugal, em Macau e na China.
João Guedes, talvez um dos maiores conhecedores da história de Macau, escreve no prefácio outros dados muito interessantes sobre o alvo desta biografia: "Certo é que MSM chega a Macau num momento em que nos mentideros locais (portugueses já se vê) se discutia então com certo calor a necessidade de deitar abaixo a monarquia e implantar a república". A importância da Maçonaria e das ligações anarquistas (com forte influência então na própria China) são analisadas por João Guedes, num texto muito interessante. Todo o contexto da vida e actividades de Manuel Silva Mendes está também nesta biografia que ilumina um tempo e um homem que merece sair da obscuridade a que foi destinado.
Fernando Sobral in Jornal de Negócios - 30.06.2017

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