sábado, 14 de março de 2015

“Ich bin ein macaense... di alma e coraçom"

"Ich bin ein Berliner" ("Eu sou um berlinense", em alemão) é uma citação de um discurso feito a 26 de Junho de 1963 pelo presidente dos EUA, John F. Kennedy, em Berlim Ocidental. Kennedy enfatizava assim o apoio dos EUA à Alemanha Ocidental, 22 meses depois do Estado comunista da Alemanha Oriental, aliado da União Soviética, ter erguido o Muro de Berlim como forma de impedir qualquer movimento entre as regiões orientais e ocidentais da cidade.
Por mim diria, “ich bin ein macaense” porque, embora nascido em Portugal, vivi em Macau cerca de uma década e sinto-me macaense, de alma e coração. Uma das primeiras palavras que aprendi de cantonense quando vivi no território foi "ho lok". Uma expressão 'estranha' para uma bebida muito apreciada pelos jovens, como eu na altura.
Vem tudo isto a propósito da recente campanha de marketing e publicidade com a palavra "macanese" inscrita nas latas da mundialmente conhecida bebida. Mas já antes existiram edições especiais feitas localmente. Na década de 1990 surgiu uma embalagem específica para a época do Natal. E já neste século (XXI) seriam assinalados os 60 anos de presença da marca no território (1949-2009), os Jogos Asiáticos, e a 50ª edição do Grande Prémio (2003), entre outras.
"Primeiro estranha-se. Depois entranha-se", a frase é atribuída a Fernando Pessoa e foi feita quando a Coca-Cola entrou no mercado português na década de 1920. Pessoa era amigo de Manuel Martins da Hora, o homem que levou a bebida para Portugal e escreveu o slogan quando trabalhava para a J. Walter Thompson, a primeira agência de publicidade em Portugal. Num anúncio de 1927 publicado em Portugal pode ler-se "Coca-Cola: o refresco americano. No primeiro dia estranha-se. No quinto dia entranha-se". Curiosamente, na época o slogan serviu de pouco. O director de Saúde da Região de Lisboa (Dr. Ricardo Jorge) mandou apreender todas as garrafas. Alegava-se que a bebida era feita de "coca" (cocaína), um estupefaciente que cria habituação. A Coca-Cola só se instalaria definitivamente em Portugal após o 25 de Abril de 1974.
O xarope criado em 1886 por John S. Pemberton, na farmácia Jacob’s, de Atlanta, Estados Unidos, está actualmente presente em 200 países e vende quase dois mil milhões de latas por dia. Macau também tem a sua quota-parte na história desta marca centenária que quando ‘chegou’ ao território já existia uma outra marca de refrigerantes, a "Gasosas da Ásia" cuja fábrica ficava no Porto Interior.
A chamada "água suja do capitalismo" chegou a Macau em Setembro de 1948, um ano antes da subida ao poder dos comunistas na China e da criação da República Popular, pelas mãos de um norte-americano, a partir de Hong Kong e com a ajuda de um português radicado no território. No dia 19 de Setembro de 1948 "Anker B." engarrafador autorizado da marca em Hong Kong "tem o prazer de anunciar que uma sucursal acaba de ser estabelecida em Macau - Av.Almeida Ribeiro, 1 J". O escritório fica na principal artéria da cidade com o nº de telefone 2442. O anúncio dirige-se essencialmente aos revendedores a quem se informa "o preço por grosso do conteúdo de cada garrafa 0,25" e se recomenda que o preço de venda ao público seja de 0,40 "por cada garrafa de coca-cola gelado.
Início década 1980: Liceu (esq.), hotel Sintra e Ed. Rainha D. Leonor (em frente) e o campo dos operários (dta)
Em Agosto de 1949 é publicado um anúncio de página inteira no jornal "Notícias de Macau" com a frase "Símbolo da Amizade". A ilustração é uma garrafa tendo como fundo um globo terrestre. O anúncio é da Hong Kong Bottlers Federal Inc., onde a bebida erra engarrafada. Num anúncio publicado em 1950 no "Notícias de Macau" lê-se: "O descanso do homem atarefado. Bebam Coca-Cola. Engarrafador autorizado Hanker B. Henningsen. Sucursal em Macau". A fábrica da marca surgiria em 1951 na Estrada Marginal da Ilha Verde. A empresa começou por por se denominar "Macau Industrial Ltda", primeiro como "distribuidora autorizada" e depois como "engarrafadora autorizada". Actualmente dá pelo nome de "Macau Coca-Cola Beverage Co., Ltd". No final da década de 1960 a imagem da marca também acabaria por ficar 'associada', ainda que de forma indirecta, às manifestações do denominado "1,2,3" evidenciando-se nas fotografias das manifestações na avenida Almeida Ribeiro junto ao Leal Senado.
Em chinês o nome da bebida significa algo como "beba e sinta-se feliz". Nos primeiros anos de presença no território a marca espalhou-se um pouco por toda a cidade existindo diversas máquinas de venda automática da bebida. Nessa altura foram pintados (literalmente) vários anúncios em fachadas de edifícios. Existiam por exemplo junto às ruínas de S. Paulo, na Rua das Estalagens, Rua dos Mercadores e na rua do Campo, perto do jardim de S. Francisco.
É aí que se encontram estes caracteres:
可 口 可 樂 – mandarim pinyin: kè Kou Kè lè; cantonense jyutping: ho hau ho lok. Tradução literal: capacidade /possibilidade para a boca; poder /possibilidade de alegria.
美 味 怡 神 – mandarim pinyin: mèi wèi yi shén; cantonense jyutping: mei mei ji san. Tradução literal: sabor agradável, alegria dos deuses/espírito
Nas décadas de 1950/1960 foram instalados painéis publicitários nas fachadas de edifícios no Largo do Senado (antigo cinema Apollo e junto à fonte). Mais ou menos por essa altura começaram a ser espalhadas pelo território umas garrafas de cerca de 2 metros de altura feitas em cimento. Existiam, por exemplo, junto à Fortaleza do Monte, na baía da Praia Grande e nas ilhas. Aliás, estes exemplares ainda podem ser vistos na Taipa e Coloane, por exemplo. Luís Machado recorda-se disso na década de 1960/70. "Digamos que não seriam geniais mas que nos levavam a beber com mais frequência, geladinhas, tiradas do fundo das geleiras, que não passavam de enormes baús de alumínio ou latão, repletos com blocos de gelo, que descongelavam, vindos directamente da fábrica de gelo do Porto Interior!" O formato da garrafa, um ícone da época e um case study do design foi, curiosamente, criado por um sueco.
A marca ficaria ainda associada ao Grande Prémio com uma das curvas do circuito da Guia (junto ao Reservatório) a ser baptizada de “curva coca-cola”…
Texto da autoria de João Botas inserido na edição de Fevereiro de 2015 da newsletter "A Voz "da ADM Associação dos Macaenses 澳門土生協會 (em memória do meu amigo macaense José Francisco)

2 comentários:

  1. documento interessante e agradável em dia de calor!

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  2. Sempre achei curioso que no tempo do Estado Novo a "Coca-Cola" se vendesse em Angola, Moçambique e, pelos vistos, em Macau, mas fosse proibida na então Metrópole. Se era boa naqueles sítios, seria boa nestoutro; se era má neste, seria má também naqueles. Enfim, peculiariedades bem à portuguesa...

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