«Ao criar pela primeira vez uma província ultramarina sediada em Macau e ao prever a sua organização político-administrativa local, o Decreto de 20 de Setembro de 1844 pode muito bem considerar-se o antepassado directo mais recuado do actual Estatuto Orgânico de Macau!»
1 — A expressão que serve de título a este pequeno apontamento histórico foi retirada da página 42 do livro «Macau 1999 — O Desafio da Transição», que Jorge Morbey recentemente publicou. E ela refere-se a um Decreto de D. Maria II assinado no dia 20 de Setembro de 1844!
Vejamos sucintamente qual a importância que esse diploma teve para Macau.
2 — Durante os primeiros três séculos da sua existência, o estabelecimento português em Macau gozou de ampla autonomia relativamente ao poder central metropolitano. Nascido graças à iniciativa pessoal dos portugueses que aqui desembarcaram em meados do século XVI, a sua pequena dimensão, a enorme distância a que se encontrava e as dificuldades de comunicação contribuíram para que raramente os monarcas se preocupassem com Macau. Embora colocados sob a dependência política do vice-rei da índia, os portugueses aqui estabelecidos institucionalizaram a sua própria forma de administrar os seus interesses, que assentava no predomínio do Senado e numa política de conciliação, de cedência e de subserviência face ao imperador e aos mandarins chineses.
Apesar das críticas que essa política mereceu, expressas, por exemplo, nas Providências Régias aprovadas por D. Maria I em 1783, ela foi porventura a única forma realista de preservar os interesses portugueses na região. Na verdade, o poder metropolitano, absorvido com a resolução dos múltiplos problemas militares e comerciais da Índia, nunca apoiou Macau com poder militar suficiente para resistir às ingerências da China. E, nos momentos de maior aflição, Macau sempre contou com o auxílio e a compreensão do império chinês para evitar a ocupação do território por outras potências ocidentais.
3 — Um conjunto de circunstâncias de vária ordem vai contribuir para que, por volta de 1840, haja uma alteração radical nesta situação.
Em Portugal, a vitória alcançada por Costa Cabral no dia 10 de Fevereiro de 1842 e a consequente restauração da vigência da Carta Constitucional de 1826 vão permitir, pela primeira vez, a consolidação do regime e das instituições constitucionais e um salutar período de acalmia política num país cansado de guerra civil e de constantes rupturas governativas.
Para a China, pelo contrário, a situação nessa época é bem mais difícil. Incapaz de resistir à pressão do expansionismo colonial do ocidente, o império chinês, derrotado na guerra do ópio, é obrigado a abrir os seus portos ao comércio internacional e a ceder aos ingleses a colónia de Hong Kong. O tratado de Nanking, ratificado a 26 de Junho de 1843, vem selar esta humilhação para a China e confirmar o crescente poderio dos ingleses na região, rompendo o tradicional equilíbrio de forças reinante até então.
Face à fraqueza evidenciada pela nação chinesa e à crescente ameaça britânica, Portugal sente que só lhe resta uma solução se quiser preservar Macau: o reforço da sua soberania no Território.
4 — É precisamente o Decreto de 20 de Setembro de 1844 que representa o primeiro passo nesse sentido. A sua finalidade é fazer ingressar Macau na organização administrativa ultramarina portuguesa, retirando-o da dependência do Governo Geral do Estado da Índia e passando a formar, juntamente com Timor e Solor, uma província autónoma, com sede em Macau: a «Província de Macau, Timor e Solor».
Os órgãos locais que o Decreto de 1844 vai institucionalizar em Macau são os que já existiam nas restantes províncias ultramarinas portuguesas, de acordo com a organização colonial delineada no Decreto de 7 de Dezembro de 1836; são eles o Governador e o Conselho de Governo.
O Governador, escolhido pelo rei, é o principal órgão da província. As suas funções, porém, são exclusivamente executivas e militares, estando o poder legislativo reservado em absoluto às Cortes, na boa tradição do constitucionalismo revolucionário francês, cioso na defesa do princípio da separação rígida dos poderes do estado e do predomínio político do parlamento.
Junto do Governador funciona um Conselho de Governo. É composto pelos «chefes das repartições judicial, militar, fiscal e eclesiástica, e de mais dois conselheiros, que serão o Presidente do Leal Senado e o Procurador da cidade» (artigo 4.º). O parecer deste Conselho não é vinculativo, mas é obrigatório em todos os «negócios de importância».
Continua também a existir o Leal Senado de Macau, mas já reduzido ao seu actual estatuto de órgão autárquico. A sua competência é a que o Código Administrativo da época atribui às Câmaras Municipais (artigo 7.º).
5 — Tem razão Jorge Morbey: ao criar pela primeira vez uma província ultramarina sediada em Macau e ao prever a sua organização político-administrativa local, o Decreto de 20 de Setembro de 1844 pode muito bem considerar-se o antepassado directo mais recuado do actual Estatuto Orgânico de Macau!
Artigo publicado na edição de «O Direito» de Novembro de 1990
1 — A expressão que serve de título a este pequeno apontamento histórico foi retirada da página 42 do livro «Macau 1999 — O Desafio da Transição», que Jorge Morbey recentemente publicou. E ela refere-se a um Decreto de D. Maria II assinado no dia 20 de Setembro de 1844!
Vejamos sucintamente qual a importância que esse diploma teve para Macau.
2 — Durante os primeiros três séculos da sua existência, o estabelecimento português em Macau gozou de ampla autonomia relativamente ao poder central metropolitano. Nascido graças à iniciativa pessoal dos portugueses que aqui desembarcaram em meados do século XVI, a sua pequena dimensão, a enorme distância a que se encontrava e as dificuldades de comunicação contribuíram para que raramente os monarcas se preocupassem com Macau. Embora colocados sob a dependência política do vice-rei da índia, os portugueses aqui estabelecidos institucionalizaram a sua própria forma de administrar os seus interesses, que assentava no predomínio do Senado e numa política de conciliação, de cedência e de subserviência face ao imperador e aos mandarins chineses.
Apesar das críticas que essa política mereceu, expressas, por exemplo, nas Providências Régias aprovadas por D. Maria I em 1783, ela foi porventura a única forma realista de preservar os interesses portugueses na região. Na verdade, o poder metropolitano, absorvido com a resolução dos múltiplos problemas militares e comerciais da Índia, nunca apoiou Macau com poder militar suficiente para resistir às ingerências da China. E, nos momentos de maior aflição, Macau sempre contou com o auxílio e a compreensão do império chinês para evitar a ocupação do território por outras potências ocidentais.
3 — Um conjunto de circunstâncias de vária ordem vai contribuir para que, por volta de 1840, haja uma alteração radical nesta situação.
Em Portugal, a vitória alcançada por Costa Cabral no dia 10 de Fevereiro de 1842 e a consequente restauração da vigência da Carta Constitucional de 1826 vão permitir, pela primeira vez, a consolidação do regime e das instituições constitucionais e um salutar período de acalmia política num país cansado de guerra civil e de constantes rupturas governativas.
Para a China, pelo contrário, a situação nessa época é bem mais difícil. Incapaz de resistir à pressão do expansionismo colonial do ocidente, o império chinês, derrotado na guerra do ópio, é obrigado a abrir os seus portos ao comércio internacional e a ceder aos ingleses a colónia de Hong Kong. O tratado de Nanking, ratificado a 26 de Junho de 1843, vem selar esta humilhação para a China e confirmar o crescente poderio dos ingleses na região, rompendo o tradicional equilíbrio de forças reinante até então.
Face à fraqueza evidenciada pela nação chinesa e à crescente ameaça britânica, Portugal sente que só lhe resta uma solução se quiser preservar Macau: o reforço da sua soberania no Território.
4 — É precisamente o Decreto de 20 de Setembro de 1844 que representa o primeiro passo nesse sentido. A sua finalidade é fazer ingressar Macau na organização administrativa ultramarina portuguesa, retirando-o da dependência do Governo Geral do Estado da Índia e passando a formar, juntamente com Timor e Solor, uma província autónoma, com sede em Macau: a «Província de Macau, Timor e Solor».
Os órgãos locais que o Decreto de 1844 vai institucionalizar em Macau são os que já existiam nas restantes províncias ultramarinas portuguesas, de acordo com a organização colonial delineada no Decreto de 7 de Dezembro de 1836; são eles o Governador e o Conselho de Governo.
O Governador, escolhido pelo rei, é o principal órgão da província. As suas funções, porém, são exclusivamente executivas e militares, estando o poder legislativo reservado em absoluto às Cortes, na boa tradição do constitucionalismo revolucionário francês, cioso na defesa do princípio da separação rígida dos poderes do estado e do predomínio político do parlamento.
Junto do Governador funciona um Conselho de Governo. É composto pelos «chefes das repartições judicial, militar, fiscal e eclesiástica, e de mais dois conselheiros, que serão o Presidente do Leal Senado e o Procurador da cidade» (artigo 4.º). O parecer deste Conselho não é vinculativo, mas é obrigatório em todos os «negócios de importância».
Continua também a existir o Leal Senado de Macau, mas já reduzido ao seu actual estatuto de órgão autárquico. A sua competência é a que o Código Administrativo da época atribui às Câmaras Municipais (artigo 7.º).
5 — Tem razão Jorge Morbey: ao criar pela primeira vez uma província ultramarina sediada em Macau e ao prever a sua organização político-administrativa local, o Decreto de 20 de Setembro de 1844 pode muito bem considerar-se o antepassado directo mais recuado do actual Estatuto Orgânico de Macau!
Artigo publicado na edição de «O Direito» de Novembro de 1990
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