A José dos Santos Ferreira (1919-1993), Adé, para os amigos, coube a arte, o engenho e a glória de comemorar literariamente a alma macaense através da cultura do “papiá cristám di Macau”. Dizia que “não quiseram os macaístas puros daqueles tempos comunicar entre si em chinês ou noutra língua e como também não houvesse quem lhes ensinasse o idioma pátrio, é bem de crer que muito se esforçassem por manter regras próprias que lhes permitissem regular a sua linguagem falada e escrita, conservando-as através dos anos, sem dúvida, por entre dificuldades, até ao aparecimento dos primeiros mestres que lhes começaram a ensinar a língua portuguesa com boa gramática e pronúncia correcta”.
De um modo simples e directo, Adé aponta essa lacuna que existiu ao longo de gerações, a ausência de uma estrutura escolar, de ensino e de difusão da língua portuguesa. Os clérigos regentes e os primeiros mestres régios já se queixavam da penúria do ensino oficial e a pedagogia da cultura e da língua disseminada pelo Seminário de S. José não chegava, evidentemente, a todos.
Quanto ao resto, e que não era de somenos, ele fez o seu trabalho de casa, publicando em edição de autor, em 1978, “Papiá Cristám di Macau: Epítome de Gramática Comparada e Vocabulário. Dialecto Macaense”.
Contudo, sem “torá português”, que significava exactamente uma “pessoa que se esmera em falar correctamente o português, com pronúncia afectada”.
Vale a pena fruir esta quadra retirada do “Jardim Abençoado”:
Macau sã casa cristám
Qui Portugal já ergui;
Tudo gente vivo aqui
Têm fé na su coraçám.
Espreitam os valores éticos e morais por esta frincha estética, fazendo-nos lembrar, subtilmente, o peso específico da cultura católica, apostólica e cristã em toda a história desta cidade-estado, sem esquecer a modelação da pessoa e a valoração da alteridade.
Na apresentação do enredo camiliano da “História de Maria e Alferes João”, Adé salienta esta constelação de valores: “Terra de sonhos da nossa infância despreocupada, Macau, toda ela bondade e beleza, é o orgulho de tantas e tão nobres gerações de lealíssimos macaenses, toda a vida ciosos da sua nacionalidade portuguesa. Dizer coisas no dialecto antigo desta grei privilegiada de continuar Macau, dignificando Portugal, e exaltar Portugal, amando Macau, leva-nos a amar ainda mais esta santa terrinha”.
O toque de graça e de humor, também não perde pela demora:
O nosso grande mestre Camões
Se vivo fosse e a Macau viesse,
Ao ver esta versejadura eufórica
Na pena de tantos poetas,
Era capaz de abrir o olho cego
Para ver se isto aqui é realmente Macau.
Na pequena peça teatral “Chico Vai Escola”, poderemos notar a persistência desse velho problema escolar, que se transformou, afinal, numa oportunidade para se inventar e recriar uma língua particular de afectos e de sigilos, de orgulho e de afirmação, suficientemente opaca em relação ao português e suficientemente altiva em relação ao cantonense.
O trabalho de Adé foi simplesmente fabuloso, há que dizê-lo e que reconhecê-lo. Ajudou a dar solidez a esse linguajar nebuloso e sincrético, não só com a utensilhagem conceptual que criou, a gramática e o vocabulário, por exemplo, mas sobretudo com a criação literária e com a revisitação evocativa dos ambientes familiares e dos mitos urbanos. Impediu-se desse modo o vazio nihilista ao mesmo tempo que a comunidade ganhava uma densidade ontológica com essa língua de comunicação, esmagada por um destino que não merecia.
Reviver é reinventar a língua, com o sangue novo a circular nas velhas artérias da memória, irrigando um passado que assim se faz presente.
Graciete Batalha fará, depois, estudos magistrais sobre o dialecto macaense.
No vocabulário macaense encontramos a palavra “Bicha”, (uma palavra humilde com uma tão infeliz conotação, ontem como hoje), com um sentido tributário de uma antropologia cultural regional e ainda com uma fantástica ressonância cultural e cognitiva, que nos escapa sem esta mediação: “nome que se dá à rapariga chinesa que, outrora, era vendida ou dada pelos pais a outrem e que vivia em absoluta sujeição à pessoa que a recebeu”.
E continua com esta história deliciosamente insólita: “Bicha no dialecto macaense, dado o seu significado, pode ser tomado como termo depreciativo. A propósito se recorda o incidente, que dizem ter passado em Lisboa, entre uma senhora macaense de Xangai e um polícia lisboeta.
Estava a senhora à espera do autocarro, mas fora da bicha, tentando passar à frente dos outros. Nisto, passa o polícia, que lhe diz: ‘Bicha, senhora! Bicha!’. E a senhora, imaginando-se insultada, respondeu, toda indignada: ‘Iou bicha? Vós chomá iou bicha? Vós bicho!’“.
Figura benquista na comunidade, José dos Santos Ferreira foi chefe da Secretaria do Liceu de Macau, presidiu ao Conselho Provincial de Educação Física e pertenceu aos corpos gerentes da Santa Casa da Misericórdia, do Hoquei Clube de Macau, da Associação de Futebol de Macau ou do Rotary Clube.
Recebeu a comenda da Ordem do Infante D. Henrique e a Medalha de Mérito Cultural, do Governo de Macau. Há uma estátua de José dos Santos Ferreira num jardim público, o que significa o reconhecimento da comunidade pelas suas qualidades intelectuais e criativas, éticas e cívicas ao serviço da identidade cultural de Macau.
No livro “Qui-Nova, Chencho”, prefaciado por José Silveira Machado e com ilustrações de Leonel Barros, vamos encontrar, nas palavras do autor, a “história da alma macaense”:
Vós sã, Macau, jardim di Portugal,
N’estunga vanda di mundo semeado,
Como vôs, non-têm ôtro más lial!
Deixou colaboração assinada na imprensa do Território e participou em inúmeras peças de teatro, recitais, operetas e programas radiofónicos, valorizando o ‘papiá cristám di Macau’.
Registo a sua bibliografia principal: “Escandinávia, Região de Encantos Mil”(1960), “Macau sã Assi” (1968), “Qui-Nova, Chencho” (1974), “Bilhar e Caridade” (1982), “Camões, Grándi na Naçám” (1982), “Poéma di Macau” (1983), “História de Maria e Alferes João” (1987), ou “Poéma na Lingu Maquista” (1992).
Sob a direcção de José Silveira Machado, a Fundação Macau publicou as Obras Completas de José dos Santos Ferreira, garantindo, deste modo, a salvaguarda deste importante legado cultural doravante acessível a todos.
Artigo de António Aresta, docente e investigador, publicado no JTM de 17-2-2011
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