Macau foi desde sempre vista de Lisboa muito mais como uma “pérola exótica” de diletantes e intelectuais, decorrente dos escritos de poetas e prosadores, nacionais e estrangeiros, que por aqui passavam, do que uma colónia credível, verdadeiramente importante, ou pragmaticamente rentável para o Estado. Os jornalistas das mais diversas nacionalidades acrescentavam pontos ao tema que romancistas e realizadores de cinema desenvolviam sobre este diminuto cantinho peninsular do Sul da China.
O filme “Macau o Inferno do Jogo” permanece como estereótipo protagonizado por Robert Mitchum e Jane Russell sobre uma cidade que, ao mesmo tempo era e não era, nos anos 50 e seguintes. Na literatura o estereótipo permanece no que escreveu, por exemplo, o grande novelista republicano espanhol W. Fernandez Flores sobre a Rua da Felicidade, retracto exacto de um bairro dos anos 30 (século XX) que igualmente era e já não era. Os senhores de “chapéus brancos de abas largas”, o canto morno das “pei-pai-chai” que tocavam cítaras e alaúdes, na pequena viela eram muito mais produto de uma imaginação ocidental fértil perante o exótico oriental do que realidade quotidiana que pouco romance continha. Aliás essa imagem de W. Fernandez Flores é um retrato que já se perdeu da memória da cidade há décadas e décadas tal como a própria viela. Quanto ao “Inferno do Jogo” nem tanto. Um pouco mais realista, já que americano ainda hoje contém em si traços de alguma verdade hodierna ainda que excessivamente ficcionada.
Sendo assim, Macau com os seus 16 quilómetros quadrados de perímetro (actualmente são 28.6 Km2 e mais se aguardam) perfilava-se negligenciável na geoestratégia de Portugal. Porém, nos domínios da cultura o seu estatuto era outro e de quase primeiro plano. Mas a história e a cultura sempre foram disciplinas de ordem negligenciável perante dividendos financeiros e ganhos eleitorais, que só têm em conta estatísticas e grandes números.
Em Macau a demografia era escassa não indo além das duzentas mil almas que habitavam a cidade e as ilhas nos idos da década de 70 do século XX. Além disso, nesses tempos, para a ditadura do “Estado Novo” os votos nada contavam já que a vitória estava sempre assegurada pelo partido único. Primeiro a “União Nacional” de Salazar, depois a “Acção Nacional Popular” de Marcelo Caetano. Por isso, Macau permanecia como sempre, aliás, última prioridade do antigo “Império Português das Descobertas” quanto mais não fosse pela erosão da História!
Não é portanto de admirar que, no cômputo dos problemas gerados pela descolonização de regiões tão vastas como Angola e Moçambique, Macau, mais as suas pequenas ilhas anexas (Taipa e Coloane que na altura nem para Macau contavam coisa que se visse, já que nas ilhas a população era demasiadamente diminuta para mal conter um freguesia e meia), permanecesse durante algum tempo na gaveta dos assuntos pendentes da “Revolução de Abril”, protelando-se até à eventual chegada de representantes oficiais do Governo de Lisboa que trouxessem indicações claras sobre o que iria acontecer, facto que parece ter contribuído para fazer aumentar o “stress” local (Stress: - vocábulo novo com que a psiquiatria moderna elidiu o nervoso e a histeria antigos).
Isto tanto mais que a República Popular da China (RPC), do mesmo modo, parecia não ter pressa em dar qualquer indicação das suas intenções sobre o futuro do território português (se não o tinha dado nos trezentos, ou quatrocentos anos anteriores que urgência teria em fazê-lo agora?...). Mas, nesse tempo a urgência de um sinal claro sentia-se profundamente não só entre portugueses, mas com igual intensidade entre chineses também.
Esse vazio de respostas a interrogações prementes levou o governador Nobre de Carvalho a enviar a Lisboa o seu chefe de Gabinete (Lajes Ribeiro) que manteve um encontro com o Ministro da Coordenação Interterritorial (Almeida Santos) e trouxe boas notícias: - “Vim de lá com uma certa tranquilidade porque senti que o Ministério estava a encarar o Governo de Macau com muito realismo, com muito pragmatismo e foi quando ele (Almeida Santos) anunciou que viria a Timor e a Macau”.
Mas a boa impressão trazida por Lajes Ribeiro, não parecia capaz de apaziguar receios. Por isso, quando é finalmente anunciada oficialmente a deslocação de Almeida Santos para tratar da descolonização extremo-oriental, a notícia é recebida com certo cepticismo, para não dizer mesmo pânico, principalmente entre a população chinesa, já que se registaram nessa altura corridas aos bancos e a toda poderosa Associação Comercial pareceu pela primeira vez titubeante.
Negócios eminentes e apalavrados foram desfeitos de um momento para o outro; projectos de investimento de grande envergadura congelados pelos seus promotores e até pequenos construtores civis deixaram a meio a erecção de edifícios nas avenidas Novas (Horta e Costa e Ouvidor Arriaga) e também, na frontaria principal da Praia Grande, esperando que a situação se clarificasse.
A pataca sem o aval do “Império Português” que patentemente se esboroava com a revolução poderia passar a valer zero e, por isso, o povo reagiu acorrendo às caixas bancárias para levantar as suas economias antes que fosse tarde.
O que é que iria dizer Almeida Santos quando chegasse? Ninguém sabia!...
Tentando desdramatizar a situação, o Governo Português esclarece que o termo “descolonização” contido no dossier do Ministério da Coordenação Inter-territorial se referia exclusivamente a Timor. Os esclarecimentos, porém, não produziram efeitos, nem imediatos nem seguros. Garcia Leandro, que acompanharia o Ministro no seu périplo oriental, refere mesmo ter encontrado em Macau “um grande receio. Era como se para a população local o 25 de Abril tivesse aberto uma grande porta para lá da qual era a mais completa escuridão”.
Garcia Leandro, oficial ligado ao Movimento das Forças Armadas (MFA) e desde o início vocacionado para os assuntos de Macau e Timor, manteve-se no Território algum tempo auscultando a população sobre o perfil do novo governador que deveria substituir Nobre de Carvalho, sobre o qual Almeida Santos, perante o “Teatro Diocesano” repleto, teceria “rasgados” elogios que terão calado fundo nalguns corações, mas não nos da maioria.
Pouco depois, Garcia Leandro regressaria a Portugal, apenas para voltar, mais tarde e dessa vez graduado em major a fim de ocupar o assento vago do Palácio da Praia Grande com a partida do velho general retirado.
Tanto para os democratas como para os conservadores, as notícias da eclosão do 25 de Abril de 1974 causaram generalizada satisfação.
Para os primeiros abria-se uma nova era de liberdade. Para os outros a possibilidade de conseguir a tão almejada autonomia ansiada desde os idos da revolução de 1822. No entanto, passada a euforia inicial, uma parte da população, incluindo a comunidade chinesa temeu (como disse antes) pelo futuro.
A descolonização tomava prioridade em todas as agendas do Portugal político e revolucionário e nenhuma indicação chegava que permitisse claramente depreender que Macau seria tratada de maneira diferente de Angola, Moçambique, Guiné, Timor, Cabo Verde, ou S. Tomé e Príncipe.
É neste contexto de reserva generalizada que o Ministro da Coordenação Interterritorial do primeiro Governo Provisório (Almeida Santos) efectua a referida deslocação ao Oriente.
Uma deslocação vista com ansiedade or Macau (como se disse antes), mas principalmente pela vizinha colónia inglesa de Hong Kong, onde o Governador Lord Crawford Murray MacLehose (preocupado) enviou insistentes telegramas a Almeida Santos para se encontrar com ele antes de embarcar no “hidrofoyl” (“hidrofoyls” eram os navios rápidos que antecederam os “jetfoils” ainda mais rápidos dos dias de hoje, que faziam a carreira entre Macau e Hong Kong e vice-versa) para Macau.
Almeida Santos encontrou-se de facto com o governador britânico antes de chegar a Macau e procurou descansá-lo, ainda que não se saiba se inteiramente o conseguiu. Foi em razão dos receios crescentes que o “Foreign Office” fazia sentir que Almeida Santos, depois de ter estado em Timor entendeu ser indispensável passar por Macau, ainda que aqui pensasse ir tratar de um problema menor e mais fácil de resolver do que o da Insulíndia. Mas não foi assim. Quando chegou constatou que as informações que possuía não seriam exactamente as que esperava: “Quando cheguei havia uma grande ansiedade de facto. A pataca tinha baixado de cotação e as pessoas estavam preocupadas. Qual vai ser o futuro de Macau? E eu pude fazer uma comunicação pública num teatro da cidade em que afirmei: Macau é uma jóia rara. É um caso especial, para nós não é uma colónia. Para Macau não se põe o problema de nenhum processo de descolonização. Isso aquietou os ânimos. No dia seguinte a cidade era outra e eu fiquei muito feliz por ter contribuído para desfazer essa ansiedade”.
Nesse intróito (dramático, pode dizer-se), Nobre de Carvalho teria ainda ensejo de concluir da melhor maneira o seu atribulado mandato inaugurando em 5 de Outubro de 1974 (simbólico acto que coincidiu com a comemoração dos 64 anos da implantação da República Portuguesa) a nova e primeira ponte entre Macau e a Taipa que receberia o seu nome. Cinco dias depois partia para Lisboa convencido de que Macau não viria a beneficiar muito com o 25 de Abril.
– “Viria a beneficiar sim, de uma maior representatividade dada à população nos órgãos do governo próprio do Território e nas autarquias. Isso impunha-se e principalmente aquilo que eu nunca tive, que era ter maior liberdade de acção, não estar piado como sempre estive em consequência das leis que então estavam em vigor, pelo Terreiro do Paço, digamos, por Lisboa”.
Uma opinião subscrita também por Garcia Leandro que sublinha: “A primeira impressão com que fiquei foi que o território teria grandes possibilidades de desenvolvimento, estava numa área económica muito importante, mas devido ao sistema político que existia então se encontrava atrofiado”.
Depois da partida de Nobre de Carvalho, o inevitável processo de adaptação às novas condições levantou ainda mais a agitação. Uma agitação centrada quase exclusivamente na comunidade portuguesa civil e militar. Quanto à liderança da comunidade chinesa perante a “Revolução Cultural” “rampante” tinha muitas outras coisas políticas, financeiras e económicas, com que se preocupar.
Nos meses seguintes acentuaram-se clivagens e divergências, a polémica redobrou nos jornais e os comícios inflamaram-se mais ainda, culminando num período que registou algumas semelhanças, ainda que de escala bem diferente, com o que ficou conhecido em Portugal por “Verão Quente de 1975”. Todavia, apesar das divergências de pontos de vista é hoje unânime que mais do que qualquer outro anseio, o 25 de Abril trouxe para Macau, acima de tudo, uma autonomia que tardava pelo menos desde que os liberais de 1822 tinham fracassado na sua tentativa de se eximir à obediência de Goa e governarem-se a si próprios quase duzentos anos antes. A história repete-se e irá com certeza repetir-se. É pena que as gerações por vezes teimem em esquecer-se da história.
Artigo da autoria de João Guedes publicado no JTM de 26-4-2011Edição de 30 de Abril de 1974 do suplemento em inglês do diário Gazeta Macaense.
Mais um excusivo "Macau Antigo".
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