Na imagem a procissão de um funeral ocorrido na década de 1950
Excerto de texto da autoria da professora Ana Maria Amaro sobre os antigos rituais de morte na China:
" (...) A noção de Alma, para os chineses, não é de forma alguma semelhante à do Ocidente. Não existe, para aqueles, uma essência una e imortal que tem o corpo como morada. Existem, sim, 2 grupos de espíritos, de acordo com a dualidade cósmica do Yin--Yang, considerado o princípio do eterno equilíbrio. Não sendo perfeita a equivalência entre alma (essência superior que anima o corpo) e espírito (energia vital), cada pessoa tem três almas (sam wan三魂 ) e 7 espíritos (chat pak七魄).
As almas são consideradas essências espirituais, celestes, e os espíritos, almas sensitivas, terrestres. A manifestação física das almas sensitivas, aparece sob a forma materializada do corpo. Da reunião deste conjunto dual, (respectivamente Yang-Yin), e ainda da actividade consciente ou vontade, o chama do I ( 意 ), resulta o San ( 神 ), a manifestação do Eu.
Um dos 3 wan, depois da morte, ascende ao mundo do Além, outro fica na terra acompanhando o corpo, e o terceiro fica a residir na estela funerária, que deve ser colocada e venerada no altar ancestral. (...)
Não há coisa mais importante, para um chinês conservador, do que ser sepultado "como deve ser", isto é, de forma a que os seus familiares, nomeadamente o seu filho mais velho, que o substituirá na chefia da casa, lhe dêem força bastante para alcançar o Mundo espiritual dos Antepassados, onde irá renascer e iniciar uma nova experiência. Daí o novo nome que, nessa altura, recebe.
Por outro lado, a pompa funerária é sempre um sinal de prestígio para a Família, e de consideração para o filho exemplar, que tão grandes mostras dá da sua piedade, chegando a empenhar-se, por vezes, para fazer um funeral condigno ao seu progenitor.
Ter um bom caixão, já comprado em vida e ainda com saúde, é, para um chinês, um motivo de paz e de tranquilidade, chegando a guardar tal objecto no seu próprio quarto, o que nos horrorizaria, a nós Ocidentais. Nisso, para o chinês, não há nada de macabro. É perfeitamente natural. Motivo de desgosto e de preocupação é não possuir o seu caixão, se possível em boa madeira, talhado num tronco de árvore antiga, e revestido de secções de madeira em lúnula, o que lhe confere uma forma muito característica. (...)
O caixão é colocado no meio da sala principal, que se reveste de panejamentos brancos, a cor lutuosa, que corresponde ao leste, o lugar da vida, de onde sopra a renovadora brisa Primaveril. Todos os familiares, segundo a sua proximidade de parentesco, bem estabelecida na China, envergam, então, fatos simples, em ramé ou burel chinês, cobertos de tecido grosso de canhâmo, bem' como barretinas de modelo antigo, no que respeita aos filhos varões e grandes capuzes no caso das filhas. As noras colocam na cabeça grandes lenços alaranjados com decorações vermelhas que fazem parte do seu próprio enxoval de casamento.
Simples faixas brancas na cintura e na cabeça, é o traje lutuoso dos netos e parentes próximos. Alguns ostentam uma pincelada vermelha aplicada no tecido para evidenciar parentesco mais próximo.
A cor branca lutuosa tem, na China, um significado simbólico: representa um estado de passagem, qualquer coisa de vazio, de provisório, que vai ser preenchido, contrariamente à cor negra que evoca uma perda definitiva, uma queda sem retomo no Não-Ser.
Mulheres de um lado e homens do outro, segundo uma ordem estabelecida, ajoelhados em esteiras, os filhos e as noras devem bater 3 vezes com a cabeça no chão em profundo Kau tau, reverência que antes era devida ao próprio Imperador.
O caixão fica exposto na casa familiar ou num quarto existente para esse fim, pelo menos durante 3 dias.
Entretanto, chegam os parentes afastados, os amigos, os conhecidos, com ofertas de tecidos para cabaias, mantas, porcos assados, frutos e outros alimentos. Curvam-se por três vezes em reverência perante o caixão, seguidos pelos familiares e ao som dos seus lamentos bem como dos das carpideiras profissionais, contratadas para a ocasião.
Os recém-vindos recebem um lenço, um doce e um envelope com lai-si, para afastar a má influência que, porventura, o contacto com semelhante cena de dor lhes possa provocar. Aliás, o doce, por homofonia do seu nome, t'im, com continuidade, é um voto simbólico de longa vida.
Após o passamento, a família manda preparar, em papel e bambu, a estela funerária, e também reproduzir os utensílios de que o falecido mais gostava, incluindo malas com roupas, acessórios, casas apalaçadas com mobiliário e criadagem, pontes de prata e de ouro, triciclos (ou, dantes, cadeirinhas) e, modernamente, automóveis, barcos e até um avião, para facilitar a sua travessia para o Além.
O primeiro sinal de luto que o mundo exterior tem de que faleceu alguém, é a colocação, à porta principal da casa familiar, de duas lanternas ou balões azuis e brancos, em sinal de luto e de uma placa armada em bambu, em forma de montanha, com faixas brancas e azuis ganga. (...)
O caixão não sai nunca pela porta da casa, mas sim por uma janela ou porta lateral ou por uma escada de bambu exterior, no caso de a Família morar num prédio de andares. Isto para não molestar os vizinhos e para que a alma do morto perca a noção da porta de entrada da sua residência, deixando a Família em paz.
Na rua, formam-se longas procissões. Adiante, segue uma das figuras mais espectaculares de chi-chat (nome do artesanato de papel relacionado com os rituais funerários). É o Deus do Inferno que abre caminho e afugenta todos os elementos perturbadores da alma do falecido que possam surgir no trajecto. Atrás, vai o neto mais velho, levando ao ombro um bambu de folha fina (Kun lâm chôk), que se crê ter o poder de afastar as almas penadas, tal como os bambus velhos as atraem. Enquanto caminha, vai espalhando mãos-cheias de sapecas em papel de cinco cores (rodelas de papel recortado nas 5 cores do arco-íris, correspondendo às 5 cores dos pontos cardeais, que na China incluem o centro).