Este ano assinalam-se 120 anos sobre a chegada de Manuel da Silva Mendes (MSM) a Macau (1901) e 90 anos sobre a sua morte (1931).
MSM parte para Macau em Abril de 1901 acompanhado pela mulher, dias depois de casarem. A viagem começou no comboio (Lisboa-Elvas-Badajoz-Córdova-Algeciras) que os levou até Gibraltar. Aí embarcaram no “Arcadia” da empresa de navegação britânica P&O - Peninsular & Oriental Steam Navigation Co. Passam por Port Said, Suez, Aden, Colombo e Singapura chegando a Hong Kong no final de Maio. O percurso final da viagem até Macau durava cerca de quatro horas em embarcações a vapor como o ‘Sui An’ ou o Sui Tai’ da Hong Kong, Canton & Macao Steamboat Co., de fundo chato – por causa do constante assoreamento do delta do rio das Pérolas – que atracavam no Porto Interior.
Vejamos como foi essa viagem pelas palavras do próprio MSM:
Estava eu, no princípio do ano de 1901, no meu escritório de Vila Nova de Famalicão a fazer um requerimento, quando recebi inesperadamente este telegrama: ‘Vagou lugar professor Liceu Macau responda convém telegraficamente (ass.) Santos Viegas.’ Li, reli e fui logo procurar um amigo meu, médico, que tinha consultório defronte. - Leia isto. - Parabéns! - É que (atalhei) eu não pedi lugar nenhum e não sei se quero ou não. - Como assim? - É o que lhe digo. Certo é que há meses, monsenhor, tendo eu ido visitá-lo a São Tiago d’Antas, disse-me: o meu amigo aqui não está bem; o seu republicanismo só o prejudica, isto aqui, regenerador ou progressista; a república há-de vir para Portugal daqui a um século, se vier... Porque não vai o meu amigo para o ultramar?! Podia arranjar lá colocação e dedicava-se a estudos, que para isso é que o meu amigo tem mais feitio. - E o que lhe respondeu? - Eu respondi-lhe que para terra de degredados não iria - a não ser, sim para lugar de bom clima, e ganhando bem; que aqui auferia o suficiente para viver e não me convinha ir estrumar terra de pretos. Mas diga-me o meu amigo: Macau, Macau é lá para a China, no inferno, pois não é?... - Olhe que eu também só sei isso... Mas vamos ver o compêndio de geografia por onde estudei, há trinta anos, sim, mas Macau deve estar ainda no mesmo sítio... Cá está: «Macau, colónia portuguesa situada no extremo sudoeste do distrito de Heungshan, latitude tal e tal, na confluência de um dos ramos do Rio das Pérolas… bom porto, porto que assaz assoriado pelas correntes, e tal…
- Adiante; não me assoriam a mim, nem eu vou para lá para ser piloto… - E tal e tal, tendo por autoridade superior um governador com os seguintes poderes; primeiro: - Deixe lá os poderes; veja o clima, veja se há lá dinheiro… - E tal e tal, com várzeas e hortas férteis… - Mau, deixe isso: eu não vou para lá cavar nem ser jardineiro; veja o clima, o dinheiro… - Sujeita, uma vez por outra, a tufões e pestes… - Mau, lá isso mau!... - Bom clima. Próspero comércio, e tal e tal, população pacífica, embora muito dada a demandas…
- Alto, estou no meu elemento! Mas os tufões e as pestes… hesito… - Parece-me que não há motivos para hesitar (atalhou o meu amigo); leva daqui quinino e pronto. - Muito bem (acrescentei); telegrafo para Lisboa que talvez aceite. E redigi logo o seguinte telegrama: «Monsenhor Santos Viegas - Câmara deputados nação portuguesa - Agradecido preço reserva falaremos (ass.) Silva Mendes.
Monsenhor Santos Viegas era um político graúdo; presidente, então da câmara dos deputados (o primeiro lugar abaixo do rei em soberania, segundo a sua opinião), a abade de São Tiago de Antas, a freguesia mais rendosa do arcebispado-primaz de Braga: para cima de três contos, contos desse tempo, fortes.
Em Vila Nova de Famalicão era ele quem ganhava sempre as eleições; tinha por este círculo um deputado certo. Estava quase todo o ano em Lisboa, onde tinha casa, ou, se não, em uma quinta da Beira - que ele era Beirão. Em São Tiago de Antas aparecia no Verão por um mês ou dois a tomar o fresco; em Setembro, banhava o corpo nas amaras águas da Foz; pelo natal e pela páscoa, vinha, por uns dias, a Famalicão receber os cumprimentos dos vilanovenses.
Era meu amigo. Doía-lhe, porém, notei várias vezes, que eu andasse metido na republicanice (se bem que só mui velada e polidamente me dissesse coisa que significasse querer atrair-me ao seu partido). Fulano bem podia ser um deputado regenerador (dizia ele às vezes aos amigos; mas a mim, não...)
Eu, era, de facto, republicaneiro, nesse tempo. Dizia mal da odiosa monarquia e dos monárquicos no Porvir de Sousa Fernandes - Sousa Fernandes vindo da Rua da Quitanda para Famalicão, donde era natural, com alguns fumos de rico e muitos de liberal-republicano. No Rio tinha feito muitos discursos vermelhos: sabia de cor Danton e Robespierre e fundou na vila O Porvir, que era como quem dissesse a República à porta... Eu estava com ele e com o doutor Henrique Machado, proprietário, advogado a sério e republicano amador.
Metíamo-nos nas eleições; propunhamos também o nosso deputado: Bernardino Machado, Manuel de Arriaga ou qualquer outro vulto grande. Votos atingimos o máximo de vinte: uns quinze do doutor Machado e os outros comprados por Sousa Fernandes. Eu, o meu papel, era queimar foguetes no Porvir. Bem sabíamos que a urna se ria de nós, e o doutor Machado, advogava, sem calor é certo, a abstenção (preferindo, secretamente, dar os seus votos aos progressistas); mas Sousa Fernandes impunha a luta, citando Robespierre.
Dos três chefes, passo eu, no público, por ser o mais vermelho. Os meus inimigos políticos iam mais longe. Para me prejudicarem casamento com menina de boa (rica) família, apontavam-me como anarquista... perigoso... e ateu! Eu ia, no entanto e apesar disso, fazendo os meus requerimentos e ameaçava-os no Porvir com a República à porta…
O que aos políticos, e a muito público também, perturbava, era monsenhor Santos Viegas ser meu amigo. Os mais atilados explicavam que, por certo (não podia ser outra coisa), era medo de alguma bomba. E monsenhor Santos Viegas, conhecedor um dia da explicação, apoiando-a, comentou: não é bom estar de mal com o diabo.
Passadas três semanas, veio Monsenhor a Famalicão; e, como me cumpria, fui logo apresentar-lhe os meus respeitos. - Então, convém-lhe o lugar ou não?... Eu, monsenhor, se o clima for bom e se… - Magnífico (respondeu); conhece a Primavera aqui em Portugal, pois não conhece? Pois em Macau é a mesma Primavera, mas todo o ano. E o lugar é melhor do que ser abade de São Tiago das Antas. Estou perfeitamente informado disso por um amigo meu que, durante muitos anos foi lá governador.
- Se é melhor do que ser abade de São Tiago d’Antas, quero; mas parece que, por lá, há uma peste ou outra, às vezes… (respondi). - Deixe-se disso; o senhor leva de cá quinino. Prepare-se para partir. Olhe, do lugar já viverá muito bem, com tempo de sobra para os seus estudos; mas o principal não está aí: está nos partidos, na advocacia. Em chegando a Hong Kong, esperam-no, já lá, os chineses ricos dos monopólios a oferecer-lhe partidos… para não fazer nada. Enfim e em resumo, a advocacia dá lá rios de dinheiro. Estou perfeitamente informado disso pelo tal meu amigo.
Voltei para casa contentíssimo e resolvi casar-me. O despacho saiu daí a dois meses e marchei para Lisboa, amarrado pelos laços do santo sacramento do matrimónio. Entregaram-me no ministério a papelada, os bilhetes de passagem e ajuda de custo. E disse-me um senhor Marques Pereira, chefe de repartição: há de querer também o adiantamento de três meses do ordenado?
Eu não sabia bem o que isso era; mas como era para receber dinheiro, respondi, sem hesitar, que sim. E entregou-me logo este amigo uma dinheirama que me fez um arranjo especialíssimo… E comecei a perceber que a coisa era ainda melhor do que monsenhor dizia.
Mandei, portanto, fazer logo, no melhor alfaiate, uma sobrecasaca e respectiva calça às risquinhas, fazenda inglesa, e comprei um forte casacão de peles e uma cartola igual à de monsenhor Santos Viegas. Queria minha mulher que eu comprasse também um relógio e uma corrente de oiro; mas opus-me com receio de ser ludibriado. Eu, de oiro, sabia, pouco.
Voltei, daí a alguns dias, ao ministério, a fim de me despedir daquele generoso amigo, de cartola. Vai muito bem, (disse-me ele), eu nasci em Macau; vim para Portugal aos sete anos; conheço aquilo lá perfeitamente. O meu amigo desembarca, dirige-se ao hotel Hing Kee, um hotel, o melhor da cidade, e fica nele o tempo que lhe apetecer; o seu ordenado dá para isso e sobra-lhe ainda dinheiro. Macau é uma barateza! Conheço aquilo como os meus dedos. E, então se quiser advogar (que há-de querer), enche-se de dinheiro em pouco tempo. Demais a mais com o seu talento!... Muito boa viagem e seja muito feliz.
Saí e fui, visto o caso, comprar o relógio e a corrente de oiro. Para que queria eu o dinheiro?! Ludibriado, ou não ludibriado, não me faria diferença nenhuma.
Na véspera da partida fui, cumprindo o meu dever, despedir-me de monsenhor. Morava ela à Graça em um bom prédio mobilado em severo estilo dom João Quinto de tremidos. Tinha sobre a secretária, de pau do Brasil, montões de relatórios, propostas de leis, ofícios, diários do Governo e discursos. Com o seu habitual aprumo e lhaneza disse-me que eu mal podia imaginar a saudade que lhe deixava; que estava velho e muito fatigado de tantos serviços que tinha presado, sempre desinteressadamente, à monarquia e à nação.
Caiu a conversa, daí a pouco, em Macau. Era uma terra excelente; eu ia muito bem, não me havia de faltar nada. «E então com o seu talento»… - Mas (atalhei eu ao talento) ouvi dizer, ou já li, que os chineses não são lá muito boas pessoas com os estrangeiros… “Não creia nisso (acudiu ele a tranquilizar-me); eu conheço a questão perfeitamente; têm tido lá, é certo, os boxers, coisas com missionários, quando estes se não comportam bem. Também sou padre, mas liberal e gosto de dizer a verdade; liberal em religião e liberal em política.”
- Assim (ousei ainda insistir), não há que recear?... “Absolutamente nada; vá descansado, eu conheço isso perfeitamente; e então, por nós os portugueses, têm os boxers, os chineses, uma consideração que o meu amigo não imagina: não passam por um português que não se curvem todos, chimchim chimchim. Bem, meu caríssimo amigo, adeus, muitas saudades e muitas felicidades!”
Esparzia a aurora suas madeixas doiradas pelo rúbido horizonte, quando, no dia seguinte, recostados, eu e minha mulher, nas poltronas do rápido Lisboa-Algeciras (verdade literária), vôo desferimos para Macau. Assobiam os melros nos olivais; nos silvedos, pipilavam toutinegras; elevadas nas alturas, cotovias soltavam suas hossanas; e, à margem das fontes, ocultos nas franças dos amieiros, melodiavam, às ninfas, rouxinóis os seus amores. Uma harmonia à Natureza!
Nos fofos cadeirões da carruagem, oram em um, ora em outro, repimpado, para mostrar o muito em que eu, no conceito público, devia ser tido, ia o meu pensamento, campos e montes fora, não só na minha felicidade posto, como também embebido nos arrulhos harmoniosos dessa manhã luminosa de primavera.
E, nesta idealização de todos os sentidos, eu elevava-me às regiões feéricas de Ossiam, de Hoffman e dos contos orientais e, ali, em vôo planado, antegozava as crésicas riquezas que em esperavam em Macau, num clima delicioso.
Ia atravessar as terras viciosas que outrora devassaram os Gamas, os Albuquerques, os Almeidas e os Pachecos por mares nunca dantes navegados; de longe, talvez pudesse ver aquele monstro grande e horrendo que ao Gama mostrou os dentes amarelos; mais além, me apresentariam seus respeitos as gentes da Taprobana, de Malaca, de Samatra e do Mecon; e quem sabe se aqui não iria achar algumas folhas inéditas dos Lusíadas ou do épico, algum soneto «dos procelosos baixos escapado», porque não?
Elvas! Chegados somos à altaneira Elvas, os dentes a Badajoz arreganhado… E, na minha ardente inspiração, a história a ferver-me na memória, levantando-me eu, para minha mulher, disse:
Vês tu aqueles altos baluartes, os portugueses,
Ousados, destemidos, feros Martes,
A ponta-pés correram muitas vezes
Para terras de Espanha e outras partes
Espanhóis, muçulmanos e franceses.
E não tentaram mais, pois que sabiam
Que à pátria sem orelhas voltariam.
Ao que minha mulher que, nesse tempo sofria também de inspiração, prontamente respondeu:
Quem te manda a ti ser tolo,
Meu poeta de ginjeira!
Dá-me um naco desse bôlo
Que meteste na algibeira…
Água fresca! Quem quer água!... O Século, o Diário de Notícias, o Pimpão!... Uma esmolinha, minhas ricas almas, a esta ceguinha que não vê nada! Cinco reisinhos pelas alminhas de quem lá têm!... O Século, muito escamado; o Pimpão!... Merque-me, meu senhor, um arrátel destas cerejas tão vermelhinhas!... Cachopa, entre depressa que está o comboio a partir…
Por terras entrei, então, ufanamente, de Badajoz e, a toda a velocidade, léguas fui galgando através de campinas verdejantes. Também aí, nas melenas dos choupos e salgueiros, cantavam rouxinóis; mas cantavam desafinados, que em terras de Torquemada, não podiam cantar bem.
Ao anoitecer, chegando a Córdova, muitos «frailes» pelas ruas. «Cantais agora» - lhes disse baixo, em português (para não lhes perturbar a digestão) - cantais o «de profundis» da pancadaria que, por muitos séculos, fugindo de vós da terra que era vossa, dos moiros apanhastes? Olhai para mim: eu sou do ameno e suspiroso Minho, onde nem eu nem os meus jamais a moiros consentiram que lá pusessem pé, nem a vós que lá entrásseis ou entreis a não ser para fazer fretes…
E, do lado, no sofá, recostada, minha mulher a mim se dirigindo:
Deixa esses ladavrazes,
Meu raminho de alecrim!
Olha lá: porque não fazes
Teus versos antes a mim!?...
Tinha razão (e poesia) minha mulher; porque, de facto, essa noite era uma das noites em que o amor se sente pendurado dos raios argentinos da lua cheia e o espírito, desatado do vil poste chamado corpo, se libra nas paragens luminosas das quimeras.
Tomei-lhe, então, com jeito, a mão erbúnea, e, a fantasia arroubada de delícias, das almofadas da carruagem, como se fossem um caramanchão abobadado de frondosas faias e loureiros, a vista pus alongadamente por de sobre as quebradas dos montes onde íamos rapidamente perpassando, e onde seu clarão, a lua, a medo difundia, em mágicas, poéticas, trémulas, subitâneas luzinhas, que eu tomei por fadas, e que afinal não eram senão as candeias dos lavradores que andavam dos casebres para os redis a distribuir, às azémolas, palha…
Algeciras A! «Quien se vá para Gibraltar necessita cambiar mas adelante!» “Vês (disse eu a minha mulher); este aviso é por nossa causa” consideração! E, com mais velocidade, marchámos para Algeciras B. Querem chegar, ainda de noite, ao termo (acrescentei), para que não possamos ver Gibraltar, que perderam na Guerra da Sucessão, palermamente, e lhes tem dado e há de dar muitas insónias.
Como um monstro, que após pantagruélicas refeição prostrado estivesse fazendo aquilo, esperava-me, na baía de Gibraltar, o «Arcadia» da P. and O. Para em seu bojo me receber. Dirigi-me para ali com armas e bagagens em um barco tripulado por espanhóis. A meio, porém, da baía, «los hombres» levantam-se e irrespeitosamente dizem-me: «tiene usted que pagar cincoenta pesetas…» “ Las pagaré si, en el buque.” “Nó (redarquiram); usted las paga ahora, si nó…»”
Que «ladrones, que ladrones» (disse eu, para dentro, enquanto saíam para fora as pesetas…) O «buque» estava dando mostras de inquietação; eram mais que horas de partir. Subi, e logo do portaló: «Ladrones, ladrones ladrones!» (atirei-lhes à cara enfaticamente).
Partimos. Bonançoso o mar. Misters, misses e mississes, todos, all right, «flartavam». Eu, era a primeira vez que, sobre amaras águas me encontrava; a primeira vez, minto: já uma vez tinha feito uma viagem de hora e meia, da Foz a Leixões, pra ver o Senhor de Matosinhos, atirando, por sinal, todo o almoço ao mar… a fim de chegar mais leve; e outra vez, na Póvoa de Varzim, tendo na véspera perdido seis libras à roleta (quantas tinha), fora ao mar ousadamente pescar fanecas.
Mas ia isso há tanto tempo, que nem me lembrava já, e, portanto, para psicológicos efeitos, era essa a primeira vez. Saudou-nos o capitão, a mim e a minha mulher - bem, muito obrigado, all right. - E os meninos (chidren)? - No have; by and by talvez, perhaps… E seguimos, a todo o vapor, singrando o verde-azul campo por onde, antes do nosso grande Dom Henrique ser gente, os argelinos pirateavam sem que ninguém lhes pudesse ir à mão.
Veio a noite, uma noite morna de luar. Eu e minha mulher, em fofo divã recostados, contemplávamos a lua e as asas brancas que seguiam para a pesca do atum. Tudo era poesia. E minha mulher, tendo uma nuvem escurecido a lua, cantarolou na sua língua, qual outra Margarida:
Meine Ruh’ ist hin
Mein Herz ist schwer;
Ich finde sie nin mer
Und nin mermehr.
Marselha! Não gostei das marselhesas; pareceram-me muito pintadas, «fanées», muito amaneiradas; e minha mulher foi da minha opinião, como bem se compreende. Poucas horas o «Arcadia» ali se demorou. Meteu malas, meteu carga e mais alguns ingleses que vieram via Calais, e partiu.
Port-Said! Gostei de ver aquilo: aquelas moiras, árabes e egípcias, ou o que eram, embiocadas, com um canudo amarrado ao nariz. Para que servia o canudo, não o soube. Supus que fosse símbolo das casadas, pois que outras vi sem ele. Burros, camelos ao longo do canal davam uma nota característica à região. Temperatura, a de um forno: até os burros suavam. O país das pragas verdadeiramente.
Suez! Tocas de árabes e mais nada. É preciso ter muito maus gosto para se nascer ali. Compreendi, então, porque foi que há dezassete séculos desses lados se abalaram, abrindo caminho a espada em punho, para a Espanha e outras partes, as muçulmanas gentes. É lei da natureza: onde há milho, há pardais.
Seguimos. Suavam às estopinhas os gordos «bifes»; elas, as misses e mississes paus, de virar tripas, não tinham donde exsudassem uma gota; tudo gâmbias, verdadeiras espadelas! Ah, maiatas da minha terra…
Andaram, nos meus tempos de rapaz, por aqui, ou seria lá mais para baixo, os italianos, durante a era política de expansão colonial de um senhor Crispi, arás dos abissínios a querer mandar neles. Mas foi tal a sova que apanharam, que ainda hoje sem lembram dela e milhares deles, diz-se, voltaram a Roma «truncados».
Também os nossos velhos portugueses andaram por aqui a meter bico. Queriam visitar o falado Preste João, mostrar-lhe a cruz, fazê-lo bom cristão; mas suspeito que, mais que a cruz, os impeliram a estas terras, magnas riquezas de que se dizia que estavam atulhadas… histórias da carochinha.
Rei me fizessem destes calvos montes, destes penedos, oferecessem-me os abissínios para eu reinar aqui, um harém, dizia-lhes imediatamente que não. Valia lá a pena trocar por isso as patacas e o delicioso clima de Macau!? Demais disso, eu já sabia que também aqui havia pipachais…
Surgiu ao longe, nas Arábias, o Monte Sinai. E disse eu para minha mulher: “por aqui, mais metro menos metro, atravessaram os israelitas este mar, Moisés à frente, em marcha para a Terra Prometida… Sei isso muito bem. Sabes? Mas o resto é que tu não sabes.”
- Sei muito bem: foi acolá que Jeová, o Padre-Eterno, entregou a Moisés as tábuas da lei, os dez Mandamentos. E depois? Depois, mais nada.”
- Mais nada, não; há o resto. Um anjo chamou Moisés que fosse lá acima e Moisés foi. E que tem isso? Moisés foi, e, apresentando a Jeová os devidos cumprimentos, este disse-lhe (em português antigo):
Passo bem, muito obrigado!
Acabei, não há momentos,
De escrever, muito cansado,
As tábuas dos Mandamentos.
Vai ler isso à tua gente
De vagar e em alto som.
Está nisto a salvação,
Se cumprido fielmente…
E Moisés, obedecendo,
Foi as íngremas encostas
Devagarinho descendo
Co’os Mandamentos às costas.
A essa hora, acocorado.
‘Stava o povo a tomar chá
Junto de um amontoado
De toaradas de maná.
Até ao quinto correu
A leitura muito bem.
Ao ler o sexto, porém,
Levantou-se um escarcéu.
Que não e que não – gritou
Todo o sexto feminino!
Que era «o sexto» (acentuou)
Um disparate supino.
Que riscasse, que riscasse,
Que queriam liberdade!
Que era «o sexto» a novidade
Contra os hábitos da classe.
E Moisés, atrapalhado,
Foi o caso relatar
A Jeováh; o qual, irado,
Entrou logo a esbravejar.
«Eu riscar!? Não risco nada!
Eu sou o juiz supremo!
Ou cumprem a ordem dada,
Ou vão todas pró inferno»!
Então, Moisés, confundido,
Avançando um pouco a medo,
A Jeováh disse ao ouvido
Não sei que, muito em segredo.
«Sim…de facto, assim não valem…
Não me ocorreu tal escolho…
Olha: diz’-lhes que se calem,
Que depois eu fecho um olho…
Entranhei a cor do Mar Vermelho. Eu sabia que vermelho propriamente não era; mas que alguma coisa de parecido tivesse, sempre tinha imaginado. E não: era a terra marginante toda fusca; ele, o mar, da cor de qualquer mar, apenas mais calorento do que os outros são.
Quantos dias levámos a passa-lo, não me lembro. Só sei que, uma tarde, o «Arcadia» parou em Aden, no fecho dele. Aqui, o mesmo calor tórrido, sufocante; eu, adentro da espessa sobrecasaca de lã que o melhor alfaiate de Lisboa me talhara, pingava de todos os poros, e tive vontade de atirá-la, e mais o bonito casacão de peles, ao mar.
Eu tinha comprado em Port-Said um fato de ká-ki (em moderna grafia: caqui!). Não provei. Teimou comigo o alfaiate que não provasse, que era operação completamente desnecessária, visto que de evidência se mostrava que me ficava muito bem, e que, além disso, podia constipar-me. Vesti-o no navio: um perfeito homem das máquinas!...
Partiu o navio. Uns oito ou nove dias navegou até chegar a Colombo, Ceilão. Ceilão, era, segundo as minhas reminiscências, a terra chamada antigamente, Taprobana para além da qual nós, os portugueses, ia para cinco séculos, tínhamos passado por mares nunca dantes, navegados. Devia ser; mas, pelo sim, pelo não, dirigi-me ao capitão, que devia saber melhor, nestes corteses termos: Please, sir: is or no tis this land the celebrated land called Taprobana? - What, please? - Yes, if this land i sor no tis the ancient, celebrated and famous Taprobana conquered by the valiant Portugueses…
- No savy… Ora, no savy! Sabia muito bem. Ele é que não queria dar o braço a torcer por não poder ver nos outros uma camisa lavada. Nesses tempos, estavam os ingleses ainda a dormir e nem «beer» sabiam ainda beber…
Na ilha e na cidade havia peste negra ou amarela; a cor não fixei, e venha o demo que diferencie. Foram avisados os passageiros de que teriam, os que desembarcassem, de sujeitar-se, no regresso, a uma forte chamuscadela. Não quis, por isso, desembarcar e fiquei-me a ver do convés as nativas gentes, das quais um clássico nosso diz, não me lembro qual, que são bem apessoadas e de boas feições.
Que homem de mau gosto o tal clássico! Eu, o que vi, foram só magras, para não dizer esqueléticas figuras, umas fuscas, outras da cor de tamarindo, e de feições, que eu imaginava, só o demo tinha… Corvos grasnavam por de sobre as enxárcias do navio, como que a pedir-nos por amor de Deus que intercedêssemos perante a Providência, a fim de que fossem libertados desta terra de degredo. Mas isto não afianço, porque talvez não os houvesse entendido bem: fome e mais nada também podiam ser os grasnidos desses bichos.
Navegámos no dia seguinte rumo a malásicas terras. Mentalmente desisti (depois de ter visto as «boas» feições dos taprobánicos habitantes) de aceitar os respeitos da gente de Malaca, Samatra e Mecon. Seria, como esses, o jau do épico? Custava-me a acreditar. Ele, o grande esteta, gostar de caras tais?! Como ainda hoje não acredito que a «alma minha gentil que te partiste» fosse, como alguns modernos críticos afirmam, uma pacóvia china, ou coisa equivalente, de olhos ao viés…
Aportámos daí a uns cinco dias a Singapura. É Malaca? - perguntei; - is not Malaca a big, big land, much comercial, much historic, tha the old valiant Portuguese fough and conquered, being captain the big Afonso of Albuquerque? - What, please? - why the ship do not toque at Malaca? - No savy!
No savy, porque não quer saber... Malaca, acredita (disse eu para minha mulher), é terra importantíssima, e, se mais não é, é porque os ingleses não sabem administrar. Importantíssima, digo-te eu: ou mentem as crónicas, o que ninguém deve acreditar. Ainda hoje, os malaquenses, quando os nossos bispos por lá aparecem (que o domínio espiritual, o principal, temo-lo nós), queimam foguetes, dão-lhes banquetes e fazem-lhes mil rapapés. Sei isto de raiz. Os ingleses, compreende-se, não gostam, porque gente neste mundo, cuidam, são só eles. Por isso… no savy, no savy…
Passada uma semana, estávamos em Hong Kong. Armas e bagagens foram logo para o Hong Kong Hotel. - Sir manager, one room of first class for us! - Yes, sir. - And if somedoby or somebodies, Chinese monopoly gentlemen, ask for Monsieur doctor Silva Mendes, quick, quick, please call quick me. - Yes, my lord!
Entrei no «room», mudei de colarinho, compus o melhor que soube o laço da gravata e, sentando-me num molíssimo sofá, esperei. Esperei uma hora, esperei duas horas, esperei três horas. Provavelmente (disse eu) enganaram-se no hotel ou teriam perdido o barco de Macau para Hong Kong. Mas logo todos!... Eles virão (atalhou confiante minha mulher); vamos nós dar um passeio pela cidade? - sim, vamos, eles que esperem; os interessados são eles…
Confesso: causaram-me desagradabilíssima impressão os chineses. Eu fazia-os muito outros. Nunca tinha visto nenhum em carne e osso. Conhecia-os porém: conhecia-os das figuras das caixas de fósforos e do Café Chinês da Póvoa de Varzim. Era este café (onde perdi as ditas seis ricas libras) mobilado todo à chinesa! Mesas, cadeiras, sofás, alizares das paredes com embutidos de osso e madrepérola, pintados com pagodes, chineses de rabicho sobre robes de chambre e chinesas coradinhas, mignons, pequeninas, muito engraçadas, todas chim-chim, envolvidas em mantons de seda bordada, coisa rica...
Eram estes chineses e estas chinesas que eu trazia na cabeça. Que contraste, porém, com os que e as que vi nas ruas de Hong Kong! A cidade, sim, sera para ver-se: casarões enormes, estabelecimentos ricos com tão bonitas coisas que até dava vontade de roubá-las, e, à noite, iluminação tão profusa, que parecia tudo aquilo um céu aberto.
De regresso ao hotel, dirigi-me logo ao «manager»: has somebody or have somebodies, all right asked for me? - No, sir; ah, two coolies... - Two coolies?! (interrompi); give them quick two kiks in the tief of the back... massadores! E subi para o meu «confortable room».
Pregam-me a partida os senhores dos monopólios, estou a ver… Fingem que não precisam de mim. Estão, porém, muito enganados. Aqui, faria-lhes a coisa aí por, sim, por duas mil patacas a cada um, por não fazer nada; em Macau, hão-de pôr para cá cinco, se não for mais. Estão muito enganados comigo… De resto (expliquei a minha mulher), tem vindo para cá, segundo me consta, às vezes, como advogados uns chochinhas e pensarão, os dos monopólios, que eu sou para medir pelo mesmo diapasão… Bem tolos, se tal pensam!
in Jornal de Macau, 31.10.1929
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