"(...) Quem desce a Calçada do Gaio e deseja encurtar caminho para a Rua do Campo dobra a esquina e inevitavelmente atravessa, de lés a lés, um dédalo de vias estreitas, dominadas por um casario amontoado e incaracterístico, que constituem o Cheok Chai Un*.
Nem sempre foi assim. O Cheok Chai Un, com a área delimitada pela Rua Nova à Guia, Rua do Brandão, Rua do Campo e pelo tardoz do Colégio de Stª Rosa de Lima, onde se erguem alguns dos restos da antiga muralha de Macau, foi até os princípios dos anos 60, mais ou menos, um bairro muito típico que o progresso dilacerou.
Em tempos mais remotos, pertenceu a uma zona arborizada, que subia a encosta de S. Jerónimo e se estendia, já esparsamente, para as hortas e várzeas do Tap-Seac, na planura do Campo da Victória, zona esta que mereceu dos chineses o nome de Jardim dos Pássaros.
Com o desenvolvimento da Cidade do Nome de Deus, atraindo populações das aldeias circunvizinhas, em demanda de uma vida de melhores oportunidades, nasceu a povoação de Cheok Chai Un, que, decorridos anos, com a construção da muralha de Macau, ficou a fazer parte da cidade, mantendo-se, todavia, com as características de uma aldeia chinesa, sem se deixar contaminar pela influência da cidade cristã, paredes meias. Nem mesmo com o derrube da citada muralha, quando se transformou em bairro, modificou o seu peculiar cariz. O traçado primitivo de aldeia de cor cinzenta foi alterado com o terrível tufão de 1874, que praticamente arrasou o bairro, com muitas vítimas a lamentar. Substituíram-no ruas e vielas, em linha recta, mas persistiram os casebres e casas pequenas de dois pisos e mais raramente de três pisos. E, com esta feição, durou mais algumas décadas.
Ocupava-o gente ciosa do seu pequeno mundo, muito endógena, casando-se entre si, desconfiada e mesmo hostil a toda a cara estranha que por ali se demorasse, fosse ela europeia, fosse ela chinesa doutros bairros e com hábitos mais citadinos. Tinha o seu mercado e o seu templo, as suas lojecas e casas de pasto, os seus curandeiros e ervanários, as suas casamenteiras e homens-bons que resolviam conflitos de dinheiro, rixas de família, disputas de negócios e outras quesílias. Esses homens-bons gozavam do prestígio da idade e das cãs ou de uma situação económica mais desafogada.
Desde o início, já como povoação, o Cheok Chai Un ficara marcado de má fama. Era um sítio imundo, endeme de muitas doenças, um antro de malandrins e de todo o rebotalho humano. Nem mesmo quando se transformou em bairro, esses rótulos se dissiparam. Sobretudo, quanto aos jovens, considerados desordeiros e refilões, sangue nas guelras e mão pronta para todas as tropelias. Havia grande dose de exagero nessa classificação, mas do ferrete ignominioso não se livravam. Tanto assim é que, quando qualquer mancebo se portasse mal, andasse em pancadarias e em outras tranquibérnias, desrespeitoso com as regras da sociedade, apodavam-no, na gíria macaense, de a-tâi de Cheok Chai Un, significando a-tâi um valdevinos. Era um insulto degradante!
A população de Cheok Chai Un orçava à roda de alguns milhares, quase todos gente pobre, amontoados em espaço diminuto que era o seu mundo. Havia, é certo, uma quadrilha de patifes, mas a maioria era ordeira e pacífica, ganhando a dura tigela de arroz de cada dia. Eles, operários, marceneiros, carpinteiros, moços de recado, condutores de jirinquixá, vendedores ambulantes, carregadores de zorras etc. Elas, serventes, tecedeiras, varredoras de rua, penteadeiras, lavadeiras, aguadeiras etc. Eram, por junto, pessoas que se dedicavam a profissões humildes e raro atingiam a condição de patrões.
Em muita casa e casebre, rapariguinhas e velhinhas aplicavam-se na manufactura de incensos e caixas de fósforos. Havia ainda bordadeiras e cerzideiras que ficavam à porta do lar, aproveitando a luz do sol para melhor cumprirem o trabalho, ao mesmo tempo que coscuvilhavam os assuntos do bairro. A iluminação eléctrica só muito tarde ali entrou e eu me lembro ainda de ver os casebres alumiados pela chama bruxuleante das lamparinas de petróleo.
As condições higiénicas eram péssimas, muito referidas pelos relatórios dos Serviços de Saúde, os esgotos primitivos e não havia sanitários, no sentido moderno da palavra. Tão fechado se apresentava o bairro que a passagem do tempo, como se não existissem relógios, era marcada, durante a noite, por certos homens que, de espaço a espaço, tangiam pratos metálicos e bradavam as horas, percorrendo as ruas silenciosas.
Era assim o Cheok Chai Un e assim se conservou, mais ou menos, até os fins dos anos 1950. Quando se principiou o desmantelamento indiscriminado da cidade antiga, também o Cheok Chai Un não escapou. A construção de edifícios de vários andares e de cimento armado destituiu-o das suas características próprias, como, aliás, aconteceu com outros bairros de Macau, confundindo-se com o resto, numa uniformização dolorosa, monótona e inestética.
O meu contato com o Cheok Chai Un iniciou-se nos tempos do liceu. Morava na Estrada de S. Francisco, então, toda arborizada e calçada à portuguesa, e tinha dois caminhos a seguir para a escola. Ou optava por ladear a Boca do Inferno e atravessar a Estrada dos Parses, descendo depois a Calçada do Paiol, ou dobrava para a Rua Nova à Guia. Chegava ao alto da Rua Tomaz da Rosa, trotava de escantilhão abaixo a escadaria e estava no coração do Cheok Chai Un. Aproximava-me do poço e do velho templo de Tou Tei e desembocava na Rua do Campo. Daí, orçando para a direita, pisava em cinco minutos a porta do liceu, ao Tap-Seac. Eu seguia, de preferência, o segundo caminho.
Naquele tempo, não havia ainda no bairro a canalização de água da Companhia, e toda a gente se servia do poço, onde o precioso líquido, sempre potável e cristalino, dava para quem quer que fosse. Por consequência, em volta do poço, hoje desaparecido, como, aliás, todos os outros poços públicos, reunia-se de manhã ao anoitecer, sobretudo, o mulherio que ia bater a água, isto é, tirar a água para os baldes, num constante corropio. O local era também o ponto de convívio da vida social, ali se conversava, se mexericava, se elevavam e se destruíam reputações, se conheciam as novidades e a má língua.
Quando eu passava, pouco antes das nove da manhã, havia sempre um ajuntamento de aguadeiras gárrulas e alegres que enchiam os baldes de água e transportavam-nos, para diversos destinos, com o "tám-kón, um varapau de madeira forte, sobre os ombros, um balde seguro por cordas, em cada extremidade. Ganhavam, vendendo a água dos baldes, para as casas onde não havia água da fonte, isto é, água potável, indo o transporte para além de Cheok Chai Un, para a Rua do Campo, a Rua Nova à Guia, a Calçada do Gaio, a Rua do Brandão e cercanias. Havia aguadeiras de todas as idades, mas os meus olhos de rapaz, já espigadote, concentravam-se nas mais moças, usando o tun-sam-fu", a cabaia curta e calças, traje que, apesar de justo ao corpo, não lhes tolhia os movimentos. Morenas de sol, sem maquilhagem ou pó de arroz – coisas impensáveis para o ofício – andavam geralmente descalças, tanto no verão como no inverno. Tinham o peito andrógino, pois enfaixavam-no, apertando, por pudicícia e bom tom, a curva dos seios. O único luxo ou requinte de vaidade estava nos cabelos compridos, arrumados numa única trança que escorria até o fim das costas, o penteado uniforme de todas as raparigas chinesas do povo, de classe proletária. Era uma sedução contemplar essas tranças negras e luzidias, de madeixas enroladas em corda grossa, atadas quase no termo por um cordel vermelho.
Aparentemente simples, o penteado exigia muito cuidado e muito tormento, mas elas entregavam-se docemente àquele masoquismo. Os fios de cabelo eram repuxados e esticados para trás, a ponto de arder o couro cabeludo. Passava-se e repassava-se o pente duro, embebido de óleo de madeira, as mãos da penteadeira também untadas do mesmo óleo, para dar à cabeleira o lustro e a resistência necessários. Os pequenos fios que ficavam no alto da testa e que não obedeciam, espetando-se como finos arbustos agrestes, eram eliminados à linha, um processo de desbaste doloroso que não arrancava, porém, um gemido ou protesto da estoica rapariga que se submetia àquele trato de polé.
Também nas proximidades do poço havia lavadeiras que esfregavam peças de roupa, nos tabuleiros próprios de madeira, hoje desaparecidos, com as máquinas eléctricas de lavar a substituí-los inexoravelmente. Não havia diferença no penteado e na vestimenta, andavam descalças ou, em ocasiões especiais, de chiripo ou tamanco. Lavadeiras e aguadeiras formavam praticamente uma sociedade à parte. Imperavam, mais que os homens, em volta do poço, dispersavam-se para os seus diversos destinos, para voltarem a se reunir mais tarde, vivendo do ofício e no bairro, não saindo dele, mesmo em horas de lazer.
Nem mesmo nos festejos do Ano-Novo Chinês, sentiam a mágica atração de se espraiarem para fora do bairro. Panchões, guloseimas, incensos da devoção, tudo se vendia nas lojecas e no mercado da zona. Até à Guerra do Pacífico, as mesas de clu-clu" ** encham as ruas e vielas e assim se jogava no Grande e Pequeno e noutras combinações, sem precisar de vaguear por outras vias, para além do perímetro de Cheok Chai Un.
Tão bairristas eram que batiam cabeça, a solicitar os bons auspícios e prosperidades, no seu próprio templo, o Tou Tei Mio, em vez de se dirigirem ao Templo da Deusa A-Má, na Barra, ou ao Kun Yam Tóng, em Mong-Há, tradicionais para esta cerimônia, para a população chinesa budista da Cidade do Nome de Deus.
Nas festividades próprias de Tou Tei, no dia 2º do 2º mês lunar, recaindo quase sempre nos primeiros dias de março do calendário gregoriano, por subscrição popular ou por réditos auferidos pelo templo, construía-se um barracão de bambu, onde se representavam peças de autochina,*** por profissionais e amadores, com grande número de assistência. Esse costume ainda se conserva hoje.
As mulheres, casadas ou solteiras, eram, na maioria, analfabetas, porque cedo se consumiam no trabalho. Os homens pouco mais tinham de instrução, também obrigados a mourejar, logo que espigassem. Era uma vida árdua, sóbria, destituída de exigências lúdicas e de conforto, mas as pessoas que a sofriam pareciam contentes ou simplesmente resignadas ou nem sequer pensavam noutra sorte.
Nesse contexto e nos princípios dos anos 1930, apareceu subitamente e por acaso, o Adozindo, o Belo Adozindo, para as raparigas românticas do tempo, que produziu, no seio do Cheok Chai Un, uma pequena revolução. (...)
*Jardim dos Pássaros, como literalmente seria traduzido, corresponde à Horta da Mitra, nome que os portugueses lhe deram, embora menos conhecido.
**Mesas de jogo do Grande-Pequeno.
***Ópera chinesa.
in A Trança Feiticeira de Henrique de Senna Fernandes
Romance cuja acção desenrola-se em Macau entre um rapaz rico de origem portuguesa e uma rapariga pobre chinesa. A tradição e o preconceito alimentam a trama desta história de uma paixão de dois jovens amantes condenada pela intolerância da sociedade.
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