sábado, 6 de abril de 2019

A paisagem como 'protagonista' nas obras de Henrique de Senna Fernandes: 2ª parte


“Gostava do rio e do mar, do cheiro a maresia, dos acenos dos Pescadores dos juncos, da nostalgia dos longos e rubros crepúsculos que cobriam os cimos da Lapa e doutras ilhas circundantes duma auréola cegante e doirada. (...)
As raparigas do atelier aproveitavam para passeios à Montanha Russa, ao pinheiral da Guia, à aprazível estância da Flora de vivendas elegantes e fora de portas, espreitando o conjunto harmonioso do Palacete de Verão do Governador e o seu pejado de canteiros e de chafarizes. Ou então iam aos miradouros da Estrada de S. Francisco e da Estrada de Cacilhas, de calma idílica, contemplando os longes do mar mosqueado de juncos e ouvindo em baixo os murmúrios ou os regougos do mar, ao encontro de rochas escavaladas. (...)
Era na contemplação da paisagem, sob a umbela das árvores de pagode e o cheiro da resina dos pinheiros, embalada pelo chilrear da passarada irrequieta que vinha à tona a dor pungente dos arcanos do coração. (...)
Não se saciava da contemplação do mar pontilhado de revérberos do sol, dos juncos que singravam ao largo, rasgando sulcos broncos na massa líquida e movediça. As ilhas distantes azulavam a linha do horizonte. Por trás, algures, estava Hong Kong. (…)
O campo de ténis, não muito distante, ocultava-se por detrás da Cortina dos bambuais. Outro caminho dirigia-se para a zona militar interdita da Fortaleza de D. Maria II. Mais além estendia-se o morro pedregoso da resting de Macau-Seak, guardando os marulhos do mar das Nove Ilhas.” 
in "Os Dores"
"Estava um belo dia de outono para a pesca, o céu límpido, a paisagem toda alumiada de tons metálicos, como só acontece nos meses de Outubro e Novembro. O Belo Adozindo escapulira de casa cedo, evitando encontrar-se com o pai. Eram sete e meia e encaminhava-se para a Praia Grande, onde embarcaria num barco à vela com amigos, para umas horas ao largo de Macau. Ia apetrechado para a pesca, o caniço e as linhas novas, os anzóis vindos de Hong Kong, duma casa da especialidade, o cesto contendo a isca. Vestia-se todo aperaltado e nada conforme como à vontade que tais excursões exigiam. Seria ridículo se não procedesse com naturalidade e espontaneidade, porque era incapaz de se apresentar doutra forma. O grande conquistador da praça tinha responsabilidades quanto a manter a sua fama. Nunca se sabia quem ia encontrar, embora ainda fosse cedo.
Respirou fundo a brisa matinal, a Estrada da Victória era uma recta dourada e não viu nenhum riquechó. Não se sentiu contrariado, cortou o Jardim de Vasco da Gama, ladeando os chafarizes, onde os fios de água prateada saltitavam, como garotos irrequietos. Para encurtar caminho, dobrou a primeira esquina, intemando-se na área do Cheok Chai Un.
Até então, esquivara-se do bairro de má fama, mas não acreditou que alguém fizesse mal, em pleno dia, a um homem pacífico que ia inocentemente à pesca, com o único peso na consciência de faltar ao trabalho. Mas os berros do pai podiam com facilidade serem amansados."

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