Já aqui referi por mais de uma vez o livro “Macau nos Anos da Revolução Portuguesa 1974-1979” (Gradiva, Lisboa, 2011), do General José Eduardo Garcia Leandro, primeiro Governador de Macau designado após a revolução de Abril de 1974. Desta vez volto ao tema dando a conhecer um pequeno excerto da nota introdutória de um livro que foi publicado segundo o seu autor tendo "como única finalidade deixar registado para actuais e vindouros interessados e investigadores o que foi a governação de Macau e muitas outras sensíveis questões associadas ao período tão difícil de 1974 a 1979, através do testemunho do seu primeiro responsável”.
António de Almeida Santos, então Ministro da Coordenação Interterritorial, escreveu no livro "Quase Memórias" (2º Vol.) que “Macau, sobretudo à época, era tudo menos fácil de governar", e o gov. Garcia Leandro, “impecavelmente sério, reflectido e prudente”, “exerceu o cargo com sabedoria verdadeiramente chinesa”.
Garcia Leandro em 1976 na Assembleia Legislativa de Macau |
Excerto da introdução:
Como foi possível que eu e quem me acompanhou e ajudou tivéssemos conseguido conduzir Macau pelos melhores caminhos?
Todo o enquadramento sociopolítico era indiscutivelmente mau. Desde o processo revolucionário em Portugal (e a descolonização consequente), passando pela situação na China ― com a Revolução Cultural, o fim do maoísmo e a consequente luta pelo poder ―, os últimos anos da Guerra do Vietname até à má situação da economia mundial, ainda não recuperada do choque petrolífero de 1973. A isto, acrescia a própria (e permanente) fragilidade estrutural de Macau, ainda não totalmente reequilibrado após os incidentes do «1-2-3» de 1966. Sem esquecer a idade com que iniciei funções de Governo, o que, no início, criou alguma desconfiança (compreensível) em certos sectores mais conservadores. Também não podia contar com grande apoio de Lisboa, onde se viviam outras preocupações bem mais prementes e onde os problemas passavam por abordagens ideológicas muito marcantes e demasiado genéricas que não interessavam, nem se deviam aplicar em Macau.
A instabilidade política nacional era muito grande. Basta lembrar que, durante o meu período de Macau, passaram por Portugal oito governos (do III ao VI Provisórios e do I ao IV Constitucionais) e cinco primeiros-ministros. Como Macau deveria ter um caminho próprio, não podia estar sujeito às consequências negativas de tanta mudança. Daí a minha visão política da questão: para controlar bem o que se ia passar em Macau, não poderia dar problemas a Lisboa, nem deixar que dali viessem instruções que pudessem prejudicar o futuro do Território. Havia, pois, que evitar a existência de poderes paralelos e, ao mesmo tempo, recusar a aplicação local de modelos desajustados. Macau não podia ser prejudicado pelo envolvimento no jogo dos partidos políticos nacionais.
O meu Governo tinha vontade de fazer bem e de deixar um bom exemplo, trabalhando para todos os que ali viviam, sem discriminações. A população chinesa pugnava pela tranquilidade e a República Popular da China, a atravessar grandes dificuldades internas, não queria novas fontes de problemas em Hong Kong e em Macau.
A consciência do momento difícil – se não único – que se vivia também foi sentida pelos responsáveis das comunidades locais e pelo Governo de Hong Kong. Recebi um apoio muito claro da comunidade chinesa e da Igreja Católica, e foram consolidados os mecanismos de coordenação e entendimento com o Governo da colónia britânica, ao mesmo tempo que se procurava diminuir o jugo económico que esta exercia sobre Macau.
A evolução foi boa e o crescimento económico permanente. Mas a memória é curta e hoje, em Portugal, são poucas as pessoas que têm conhecimento da situação de Macau em 1974, pensando muitos que este sempre foi uma espécie de «árvore das patacas» onde nunca existiram dificuldades económicas, políticas ou sociais.
Acresce que o conhecimento sobre Macau sempre foi reduzido em Portugal, mesmo entre muitos responsáveis da cultura e da política. Com o passar do tempo e a nossa saída de Macau, em finais de 1999, tal vazio de informação agravou-se. Encontro-me frequentemente com pessoas que assim pensam ou que tudo desconhecem, mas que têm ideias feitas sobre Macau. Fico perplexo com o desconhecimento com que deparo, por vezes com o desinteresse em conhecer a realidade, e com os erros de interpretação permanentes. É também para deixar um testemunho factual que este livro é necessário! Mas sinto que também tenho responsabilidades por não o ter escrito mais cedo. Por tudo isto, não ficaria bem com a minha consciência e com a História se nada fizesse para ajudar a corrigir esta situação.
Esta é a resposta à pergunta se vale a pena este trabalho mais de trinta anos depois. Crê-se que, desta forma, se contribui para um relato fiel e fundamentado da História. O tempo a todos vence, pela morte, pela mudança de gerações e pelo esquecimento, a menos que fiquem registos dos conceitos, das intenções e dos factos. E porque as pessoas envolvidas, com responsabilidades naquela época, têm vindo a morrer sem deixar registos, a memória vai desaparecendo. Daqui a dez anos, quase todos os testemunhos dessas experiências vividas terão desaparecido. Embora Macau já não esteja no centro de interesse dos portugueses, nem nas primeiras páginas dos jornais, este registo escrito é indispensável para quem queira compreender a evolução ocorrida a partir do 25 de Abril.”
Todo o enquadramento sociopolítico era indiscutivelmente mau. Desde o processo revolucionário em Portugal (e a descolonização consequente), passando pela situação na China ― com a Revolução Cultural, o fim do maoísmo e a consequente luta pelo poder ―, os últimos anos da Guerra do Vietname até à má situação da economia mundial, ainda não recuperada do choque petrolífero de 1973. A isto, acrescia a própria (e permanente) fragilidade estrutural de Macau, ainda não totalmente reequilibrado após os incidentes do «1-2-3» de 1966. Sem esquecer a idade com que iniciei funções de Governo, o que, no início, criou alguma desconfiança (compreensível) em certos sectores mais conservadores. Também não podia contar com grande apoio de Lisboa, onde se viviam outras preocupações bem mais prementes e onde os problemas passavam por abordagens ideológicas muito marcantes e demasiado genéricas que não interessavam, nem se deviam aplicar em Macau.
A instabilidade política nacional era muito grande. Basta lembrar que, durante o meu período de Macau, passaram por Portugal oito governos (do III ao VI Provisórios e do I ao IV Constitucionais) e cinco primeiros-ministros. Como Macau deveria ter um caminho próprio, não podia estar sujeito às consequências negativas de tanta mudança. Daí a minha visão política da questão: para controlar bem o que se ia passar em Macau, não poderia dar problemas a Lisboa, nem deixar que dali viessem instruções que pudessem prejudicar o futuro do Território. Havia, pois, que evitar a existência de poderes paralelos e, ao mesmo tempo, recusar a aplicação local de modelos desajustados. Macau não podia ser prejudicado pelo envolvimento no jogo dos partidos políticos nacionais.
O meu Governo tinha vontade de fazer bem e de deixar um bom exemplo, trabalhando para todos os que ali viviam, sem discriminações. A população chinesa pugnava pela tranquilidade e a República Popular da China, a atravessar grandes dificuldades internas, não queria novas fontes de problemas em Hong Kong e em Macau.
A consciência do momento difícil – se não único – que se vivia também foi sentida pelos responsáveis das comunidades locais e pelo Governo de Hong Kong. Recebi um apoio muito claro da comunidade chinesa e da Igreja Católica, e foram consolidados os mecanismos de coordenação e entendimento com o Governo da colónia britânica, ao mesmo tempo que se procurava diminuir o jugo económico que esta exercia sobre Macau.
A evolução foi boa e o crescimento económico permanente. Mas a memória é curta e hoje, em Portugal, são poucas as pessoas que têm conhecimento da situação de Macau em 1974, pensando muitos que este sempre foi uma espécie de «árvore das patacas» onde nunca existiram dificuldades económicas, políticas ou sociais.
Palacete de Santa Sancha |
Esta é a resposta à pergunta se vale a pena este trabalho mais de trinta anos depois. Crê-se que, desta forma, se contribui para um relato fiel e fundamentado da História. O tempo a todos vence, pela morte, pela mudança de gerações e pelo esquecimento, a menos que fiquem registos dos conceitos, das intenções e dos factos. E porque as pessoas envolvidas, com responsabilidades naquela época, têm vindo a morrer sem deixar registos, a memória vai desaparecendo. Daqui a dez anos, quase todos os testemunhos dessas experiências vividas terão desaparecido. Embora Macau já não esteja no centro de interesse dos portugueses, nem nas primeiras páginas dos jornais, este registo escrito é indispensável para quem queira compreender a evolução ocorrida a partir do 25 de Abril.”
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