sábado, 20 de abril de 2019

"Cathedral de Macau" no Archivo Pittoresco de 1858

Este artigo publicado no Archivo Pittoresco (ed. 35 - Fev. 1858) aborda muito mais do que a história da Sé Satedral. Tendo por base a ilustração o autor (assina apenas como C.) refere-se aos nhonhas, às saraças, aos parses, às cadeirinhas... Fica o convite para a leitura de como era Macau em meados do século 19.
"A velha cathedral de Macau que existia no mesmo logar da nova que representa a estampa era construida de taipa, terra com cal humedecida e batida como a maior parte dos antigos edificios da cidade. Os estragos do tempo e os furiosos vendavaes ou tufões que de vez em quando assolam aquellas paragens a reduziram a tal estado de ruina que o cabido pelos annos de 1835 ou 1836 achando-se a sé vaga resolveu cessar a celebração dos oficios divinos naquella egreja e com auctorisação do governo passou a servir de cathedral a egreja do convento de S Domingos.
Este templo posto tivesse melhores condições por ser mais moderno vasto e construido de tijolo estava mal situado para aquelas funcções por causa da proximidade do basar chinez, onde sempre ha muita agitação e estrondo. Por isto começou a pensar-se no concerto da antiga cathedral muito melhor situada e contigua ao palacio episcopal. Tão reconhecida era a necessidade desta mudança que a curia romana quando expediu as bullas de confirmação do bispo de Macau D Nicoláo Rodrigues Pereira de Borja em 1843 recommendou particularmente este assumpto ao zelo daquelle prelado. Este não descurou delle conseguindo por suas representações que fosse expedida pela secretaria da marinha e ultramar em 26 de fevereiro de 1844 uma portaria auctorisando o mesmo prelado para fazer na antiga sé, de acordo com o governador da colonia, os reparos e concertos que se julgasse necessarios. Feito o competente exame ao velho edificio achou-se que não admittia concertos e resolveu-se com a reedificação. Promoveu-se subscripção entre os habitantes que produziu de seis a sete mil patacas (seis a sete contos de réis) e deu-se começo á obra em dezembro do mesmo anno de 1844 sob melhor fórma e nova orientação. 
A antiga sé tinha o frontispicio para oeste e estava como apertada entre as casas proximas e o palacio episcopal que ficava a um canto e encoberto em grande parte pela mesma sé. A nova egreja tem a frente para o norte ficando a frontaria do palacio desembaraçada e mais vistosa como mostra a estampa. 

A este tempo já o actual bispo de Macau D José da Matta tinha áquella na qualidade de bispo coadjutor e futuro do referido prelado D Nicoláo e já com idéas e diligencias concorreu para este novo plano mas ao seu antecessor é que cabe o merito de a executar pouco antes de falecer em 21 de março de 1845.
A antiga egreja achava se então quasi completamente demolida lançados alguns dos novos alicerces e feitos os ajustes de toda a obra com operarios chinezes. Foi neste estado que o novo bispo D Jeronimo tomou a direcção da obra que teve a fortuna de fazer concluir nos principios de 1850 sagrando-a elle proprio em 14 de fevereiro desse anno havendo por essa occasião sumptuosa festividade em que toda a população christã de Macau que tomou o mais vivo interesse participando com o seu bispo as alegres commoções que este sentia por ver concluido um novo templo consagrado ao verdadeiro Deus lá nesse remoto imperio da China tão entranhado ainda nas trevas do paganismo.
Muitas dificuldades houve a vencer para que a cathedral se concluisse em tão pouco tempo principalmente por escacearem os meios pecuniarios e talvez não estivera ainda hoje acabada se não fôra o poder do credito que largamente se exercita na China. Um velho chim chamado Ahon, especie de mestre ou emprezario de obras, ajustára a da reedificação da sé com o bispo D Nicoláo mas logo nos primeiros mezes do novo episcopado foi lhe declarado pelo bispo D Jeronimo que era necessario suspender os trabalhos por falta de dinheiro no que o honrado velho não consentiu continuando-os sob a confiança que lhe merecia aquele prelado de que lhe pagaria logo que podesse. Dispendeu assim adiantadas para mais de 30 000 patacas ou 30 contos de réis que depois foi recebendo em prestações devendo-se ainda algum pequeno resto aos herdeiros de Ahon quando o actual bispo saiu ultimamente de Macau. 
O velho Ahon infelizmente morreu pagão mas no leito da morte recommendava aos filhos que nas suas tribulações recorressem ao seu amigo biso de Macau que desde a mocidade bem o era tambem d elle e que em tudo seguissem seus conselhos. Fallando de Ahon é justo mencionar tambem outro chim, Francisco Volong, christão e rico negociante estabelecido em Macau, que quando se concluiu a cathedral ofereceu ao bispo D Jeronimo um jogo completo de paramentos brancos de setim bordados a ouro para funcções episcopaes que valeria para mais de mil patacas ou um conto de réis. Francisco Volong é hoje subdito portuguez. Requereu e obteve carta de naturalisação passada pela secretaria da marinha e ultramar em setembro de 1856. Já depois outro chim, appellidado Ahon, tambem se naturalisou portuguez. Julgâmos que são estes os primeiros actos de tal natureza praticados por chins e os mais insolitos e criminalmente inconcebiveis na opinião dos habitantes do celeste imperio. Renegar o seu paiz e fazer-se estrangeiro ou barbaro o que é synonymo quando os chins falam dos outros povos não tem castigo possivel na legislação chineza que estabelece a pena de morte para quem apenas sáe fóra do imperio.
Mas voltando a falar da cathedral de Macau cumpre saber que em nada concorreu para a sua reedificação a fazenda publica da provincia então em grandes apuros. Além da referida subscripção applicaram-se áquelle fim alguns fundos proprios da sé e quotisaram-se osofres que ali ha sob a administração ecclesiastica. Os reparos porém posteriormente feitos para a conservação do templo tem sido á custa do governo.
A nova sé de Macau regula nas dimensões pela egreja de Nossa Senhora da Encarnação em Lisboa e, como esta, é cheia de luz e alegre no interior. O primitivo plano foi feito por um architecto macaense chamado Thomaz d Aquino mas o proprio D Jeronimo lhe fez modificações. O travamento de madeiros que sustem o telhado é digno de solidez e engenhosa disposição e por ter ligação alguma com o tecto interior do edificio.
Entre este tecto e o telhado ha vasto espaço onde se anda á vontade em longas coxias com muita luz e ar como convem naqueles climas para evitar os estragos da formiga branca especie de caruncho ou verme roedor que ataca as traves ou quaesquer grossas madeiras succedendo por vezes caírem repentinamente os tectos e sobrados das casas onde se introduz este damninho insecto. Propaga-se tão mysteriosa e terrivelmente que apesar de muito debil e pequeno destroe ás vezes o edificio inteiro tendo a sagacidade de fazer caminhos cobertos para se internar nas madeiras cujo interior mina tão completamente que apenas lhes deixa a superficie quasi delgada como papel. Contra tal flagello não se conhece outro remedio senão a muita claridade e arejamento de todas as partes do edificio.
Numa das torres da cathedral ha um relogio que se póde chamar monumental porque commemora a elevação do senhor D Pedro V ao throno dos seus maiores. Quando em Macau se festejou este fausto acontecimento o bispo D Jeronimo suscitou a lembrança duma subscripção para compra e colocação dum relogio que utilisasse a todos os habitantes da cidade porque a cathedral está edificada na parte mais alta da povoação. A idéa foi logo acceita e applaudida e em pouco tempo subiu a subscripção a quasi 1500 patacas ou um conto e quinhentos mil réis. Concorreram com 800 patacas os subditos portuguezes residentes em Cantão, os de Hong Kong com 223 e os habitantes de Macau com o restante. 
É de notar que as subscripções de Cantão perfizeram mais de metade da total importancia de todas ellas não porque houvesse alli muitos portuguezes mas sim pela generosidade e bizarria com que nisto procederam os jovens macaenses então quasi todos empregados nas casas de commercio inglezas e americanas daquela cidade antes da queima das feitorias e dos successos que levaram ás actuaes hostilidades entre a Grão Bretanha e a China. O relogio foi expressamente feito em Inglaterra pelo acreditado fabricante Thwaites & Reed; a vista da planta e perspectiva da torre obsequiosamente e com muito primor tirada pelo macaense CA Osorio que com CV da Rocha depois mui intelligentemente dirigiu os trabalhos da colocação do mesmo relogio. Foi colocado na torre nos fins do anno passado e devia bater pela primeira vez horas á meia noite de 31 de dezembro isto é no solemne momento de começar o novo anno 1838. O relogio tem gravada a seguinte inscripção commemorativa 
RPVAD MDCCCLVII PME Que se lê REGNANTE PETRO V ANNO DO MINI MDCCCLVII POPULUS MACAENSIS EREXIT 
As figuras representadas no desenho são typos dos habitantes da cidade. Começando do lado esquerdo do espectador vê se um chin vendedor de ceias ou comidas feitas e quentes que traz em dois cestos que se separam em repartimentos pendentes duma vara de bambú a que tal modo de carregar chamam pinga e equilibrados sobre o hombro do conductor. Em seguida estão duas mulheres chins do baixo povo descalças e de pé grande, isto é, não quebrado ou reduzido á fôrma de pata de cabra como é de uso aristocratico na China. Uma dellas leva ás costas uma criança sostida numa especie de sacco á moda do paiz. Mais vão duas mulheres macaenses envolvidas nas saraças, singular mantilha ou cobertura sómente usada em Macau. E um grande panno ou coberta quadrilonga de tecido d algodão pintado de ramagens ou em listas de côres vivas e flammantes apresentando como barra certos desenhos em bicos que se podem dizer classicos porque os deve ter toda a saraça genuina. 
Mesmo as mais tafulas macaenses depois de vestidas ás vezes ricamente cobrem-se com a desgraciosa saraça que lhes envolve a cabeça e o corpo e lhes esconde o rosto quando elas querem. Já um velho bispo de Macau declamou numa pastoral contra semilhante uso dizendo que as mulheres com saraça pareciam derrabados e quanto a nós tinha razão o bom do bispo. Antigamente custavam muito caras as boas saraças comprando-se ás vezes por quarenta e cincoenta patacas ou de quarenta a cincoenta mil réis porque só vinham da India onde se faziam e pintavam com esmêro expressamente para Macau.
Hoje estampam-nas os americanos do norte e as vendem por haixo preço. Tambem são usadas saraças de seda preta para ir á igreja em occasiões solemnes e vestuario de lucto. Mais além vêem se dois parses, especie de judeus ou de povo sem patria que vive espalhado por toda a Asia. São oriundos da Persia e sectarios da antiga religião de Zoroastro ou adoradores do sol que seus ascendentes não quizeram renegar quando a Persia foi invadida pelos muçulmanos que obrigaram todos os habitantes a abraçar o mahometismo. Aquelles rigidos sectarios emigraram pelo golpho Persico e com suas grandes riquezas se estabeleceram na India. Os parses são uma bella raça de homens muito intelligentes dados exclusivamente ao commercio e em geral muito opulentos em Bombaim e Calcuttá os que vivem em Cantão e Macau são de ordinario agentes ou commissionados d aquelles. Usam de vestuario especial e é de fórma muito original o chapeo ou cobertura que trazem na cabeça. 
Vêem-se por fim na estampa de que tratâmos duas liteiras ou cadeirinhas A maior representa o bispo quando sáe em grande estado conduzido por quatro culis ou criados chinezes e outros dois com grandes umbrellas ou pára soes que vão ao lado da liteira. A mais pequena é das que se usam geralmente na cidade e que servem de vehiculos para todas as que os tem proprios ou alugados á do que se observa em toda a China. Em Macau não ha carruagens nem as ruas comportavam por serem quasi todas estreitas e lageadas. Ha porém alguns carrinhos para passear nos arredores cortados hoje por bellas estradas e onde ha sitios mui pittorescos. C. 

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