quarta-feira, 19 de outubro de 2022

A cidade por Manuel da Silva Mendes em 1929

Em 1º plano o bairro de S. Lázaro; ao fundo assinalei a casa de MSM na encosta do monte da Guia onde se pode ver o farol e a ermida ao centro. Foto década 1920

"Um português que se deixasse adormecer em Lisboa e, por magia, acordasse em Hong Kong, não conseguiria identificar o lugar onde se encontrava, mas decerto que saberia que não se encontrava numa cidade portuguesa. Se o mesmo português acordasse perto das Nove Ilhas e conseguisse, a partir do seu navio, avistar ao fundo a Capela de Nossa Senhora da Guia, o Hospital de São Januário, o Quartel de São Francisco e as construções ao longo da Praia Grande, por trás destas as casas do Chunambeiro e, finalmente, no cimo da colina, a Capela de Nossa Senhora da Penha, diria para si mesmo: não sei que cidade é esta mas estou com toda a certeza em presença de uma cidade portuguesa à beira-mar. 
Ao chegar ao Porto Interior, o mesmo português sentir-se-ia de novo perdido: o que é isto? Que tipo de barcos é este? Quem é esta gente estranha? E aquela casa ali, como nunca vi igual? Estarei a sonhar ou estou acordado? Em seguida, ainda sob a mesma impressão, dirigir-se-ia à Praça do Leal Senado. Depois de esfregar os olhos, como que para acordar de um sonho surreal, olharia então para o Leal Senado e para o edifício de granito da prisão e sentir-se-ia na certeza de que tudo o que o rodeava era, na verdade, português. Depois de se passear pela zona da Praia Grande quereria ver o Chunambeiro e visitar as várias igrejas, todas indubitavelmente portuguesas.
Hoje em dia, apesar de tudo isto, o mesmo não acontece. A cidade tem infelizmente vindo a perder, ao longo dos últimos trinta anos, grande parte do seu carácter português. O governo e os habitantes da cidade têm gasto, praticamente sem qualquer hesitação ou interferência, milhões de patacas na substituição do bom pelo pior que se possa imaginar, arruinando e desnacionalizando a cidade. O que era tipicamente português ou tipicamente chinês foi destruído. Tínhamos uma cidade como ninguém tinha no Extremo Oriente, uma cidade que merecia ser visitada. Hoje temos uma cidade informe e incaracterística de onde foi praticamente removida, sem deixar qualquer rasto, toda a atracção e pitoresco. Ainda recordo, ao chegar a Macau, ouvir os estrangeiros admirar e contemplar a cidade".
Texto de Manuel da Silva Mendes publicado num jornal de Macau em 1929

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