quinta-feira, 23 de março de 2023

Cartas da Índia e da China: 1815 a 1835

"Cartas escriptas da India e da China nos annos de 1815 a 1835 por José Ignacio de Andrade a sua mulher D. Maria Gertrudes de Andrade."
A obra em dois volume teve várias reedições ao longo dos tempos. A primeira é de 1843. A das imagens é de 1847 (Imprensa Nacional, 2 vols.).

"Letters from India and China in the years 1815 to 1835" by J
osé Inácio de Andrade (1780-1863)
Pictures above are from the Second edition, by Imprensa Nacional, in 1847. The 2 vols. include twelve lithographed portraits and one wood cut. This account, which is written in 100 letters, discusses the history, customs, and present state of India, and China, especially Macao, and is based on the author's travels there. It also gives a history of the Portuguese discoveries, settlement and trade in the Far East. The lithographed plates include portraits of Chinese emperors, and portraits of the author and his wife. Andrade, born in the Azores in 1780, made numerous voyages to India and China.
José Inácio de Andrade nasceu nos Açores em 1780 e morreu em Lisboa, em 1863. Como oficial da Armada fez várias viagens à Índia e à China. Foi vereador e presidente da Câmara Municipal de Lisboa e figura destacada das letras portuguesas da época, deixando vasta obra. Publicou, por exemplo, uma curiosa Memória intitulada sobre a destruição dos piratas da China e o desembarque dos ingleses na cidade de Macau e sua retirada, em 1835, que aborda dois temas significativos da história de Macau, a luta dos portugueses, com os imperiais chineses, contra a pirataria e a tentativa de ocupação de Macau pelos ingleses, sob o pretexto da guerra napoleónica, em que, portugueses e chineses se opuseram, em conjunto, ao ataque britânico. 
Reprodução de uma das cartas (sobre Macau)
Carta XXXII
Estado actual de Macau 
Em outro tempo julgava eu ser este pequeno istmo propriedade lusitana; hoje, estou persuadido do contrário. O poder executivo do miserando Portugal está sem dúvida no mesmo engano. Maior desgraça é achar-se o poder legislativo nas circunstâncias do vulgo e do governo. De tudo quanto posso dizer-te acerca dessa ilusão nada é tão convincente como o decreto do imperador Chin-Tsoung, gravado em pedra na entrada dos Paços do Concelho desta cidade no ano de 1614 (1).
«Artigo 1.° – É proibido, da data deste em diante, aos portugueses admitirem japoneses em Macau.
Artigo 2.° – É igualmente proibido aos portugueses comprar súbdito algum do império chinês.
Artigo 3.° – É proibida a entrada de navio algum no porto de Macau, sem preceder medição, a fim de pagar o imposto que a lei exige.
Artigo 4.° – Era castigado rigorosamente qualquer contrabandista, além de perder os objectos apreendidos.
Artigo 5.° – É proibido aos portugueses edificar novos prédios, sob pena de serem arrasados: mas podem reedificar os antigos.»
Talvez sem a colocação deste monumento nos Paços do Concelho desta cidade não pudessem levantá-los os ilustres varões que os legaram a seus netos.
Assim como o governo chinês é singular, assim deve ser o governo desta cidade em tudo dependente da China. Além dos requisitos necessários para bem governar outro qualquer estabelecimento, precisam-se neste os seguintes: 1.° — verdadeiro conhecimento dos costumes chineses, para não os afrontar; 2.°-consumada prudência para tolerar o desaforo de quem sofre e sustenta homens estranhos em sua terra; 3.° – manter poucos e bons soldados, isto é, robustos e bem disciplinados. Em outro qualquer lugar, seria conveniente um corpo respeitável pela força bruta: em Macau torna-se prejudicial, já pela maior despesa, com que a cidade não pode, já para não ferir o orgulho dos chineses.
É irrisório ver o chefe de duzentos canarins, estacionado nas portas do mar (2) do império chinês, provocar a ira de cento e cinquenta milhões de tártaros à frente de duzentos milhões de chineses. O ministério português esteve sempre vendado acerca deste nosso estabelecimento. Os capitães gerais, não satisfeitos com os antigos privilégios, pediram à Senhora D. Maria I providências para si, e foram-lhe remetidas pela ignorância (em matérias de governo) do bispo confessor, e de Martinho de Mello, que, pouco tempo antes, havia deixado a patriarcal.
Macau é dependente dos chineses por muitas razões: a mais essencial é não produzir alimento algum para sustentar-se. Bastará saber-se que, não tem pasto para duas vacas, nem possui uma só embarcação de pesca. Também não é pequena dependência não poderem seus habitantes renovar uma telha da sua casa sem licença do mandarim, em virtude de não haver em Macau, pedreiro, carpinteiro, ferreiro, etc., que não seja chinês: e estes não trabalham em casa portuguesa sem licença do mandarim.
Acresce a isto, não haver nesta cidade padejo, mercearia ou taberna que não seja dos chineses: os donos, e os artistas, ao verem afixar um edital em nome do imperador para que deixem a cidade, bastam vinte e quatro horas, para de dezoito mil chineses não ficar um em Macau.
Que fará neste caso o capitão-geral? Onde irá buscar alimento para quatro mil e quinhentas pessoas? (3) Que recurso fica ao provocador? Pedir misericórdia, por via do Senado, ao vice-rei de Cantão, a fim de não perecerem à míngua de alimento.
Assim, vês que o governo desta cidade exige muitos conhecimentos especiais e grande prudência. Em todas as épocas anteriores, quem pôs Macau no risco de perigar foram os capitães-gerais, e quem o salvou foi o Senado; isto é, foram os conhecimentos especiais e a prudência dos cidadãos macaenses.
A parte mais essencial deste governo consiste em conservar amizade franca e sincera com as autoridades chinesas e não quebrar as leis do império em relação com a cidade: este requisito é de fácil desempenho ao Senado, já por ser o procurador considerado como autoridade chinesa, já por serem os vereadores os mais interessados na propriedade do estabelecimento.
O capitão-geral deve ocupar-se na disciplina dos soldados, e no emprego deles, em virtude de ordem emanada do Senado. Presida a ele muito embora, quando ali se tratar de negócios políticos, tenha um só voto, pois tem uma só cabeça: seja esse emprego conferido ao capitão-geral como são todos os mais do reino; porém, tenha o Senado faculdade para o demitir, quando abusar da força que se lhe entregou ou infringir as leis: fique o
Senado responsável se a demissão não tiver a razão e a justiça por fundamento.
A Ouvidoria não é agora mais precisa do que em 1588, época em que os macaenses pediram a Filipe II a sua extinção; graça que só vieram a obter no reinado do Sr. D. João IV, no ano de 1642. Haja na cidade um juiz de direito, mas sem ingerência na administração dos fundos públicos. Governe o Senado da Câmara por suas leis, anteriores às providências de 1784, enquanto o poder legislativo não fizer outras melhores.
Oxalá o governo de Portugal chegue a conhecer e a ordenar o que muito convém a este nosso estabelecimento; isto é, a conceder-lhe o que seus moradores pediram em 1821 ao Sr. D. João VI: 1.° a sua forma de governo antigo, acomodado à doutrina da constituição moderna; 2.° a dissolução do batalhão, substituindo-lhe a guarda antiga; 3.° a suspensão das despesas feitas com Timor e Goa (4); 4.° preferir nos empregos militares e civis, os portugueses casados ou nascidos em Macau (5).
Com esta reforma, discutida, votada e pedida pelos mais conspícuos cidadãos macaenses: Pereiras, Paivas, Almeidas, Pegados, Limas, Sarros, Marques, Georges, Cortelas, Figueire­dos, Lemos, e outros, entraria de novo em Macau a paz e a fortuna que dele fugiu há vinte anos. O desgoverno de Portugal, chegando a este país, motivou, além de outros males, emigrações que levaram consigo grande parte da fortuna pública.
A nenhum outro estabelecimento português é mais bem aplicada a epígrafe desta carta do que aos beneméritos e fiéis macaenses. Camões, em seus versos, fala com experiência adquirida entre eles. Tive a satisfação de fazer os apontamentos para esta carta sentado na gruta onde o nosso poeta compôs os Lusíadas.

(1) Chi-Tsoung foi quem cedeu Macau aos portugueses em 1557. Mo-Tsoung, que reinou de 1567 a 1572, conservou aos portugueses a posse que lhes dera seu pai. Chin-Tsoung, filho de Mo-Tsoung, foi quem deu o grau de mandarim ao procurador da cidade em 1584 e o referido decreto em 1614.
(2) Macau, no idioma chinês, significa: portas do mar
(3) Pelo último censo havia em Macau: europeus e mestiços … 1.620
Mulheres cristãs de várias raças e cores … 2.700
Soldados canarins …180
Total dos cristãos … 4.500
Chineses, dos dois sexos, residentes em Macau … 18.000
Total dos habitantes desta cidade … 22.500
Alguns escritores elevaram a sua povoação a mais de cinquenta mil vizinhos: enganaram-se.
(4) Colónias que não rendem para si, devem abandonar-se a seus recursos. Quando não, pagam assim os que têm virtudes para nutrir viciosos.
(5) Em 1835 eram ainda constantes no seu pedido.

Sobre Macau, José Ignacio de Andrade foi ainda autor do livro "Memoria dos feitos Macaenses contra os piratas da China: e da entrada violenta dos Inglezes na cidade de Macáo. & Segunda parte: Invasao das tropas Inglezas em Macáo e sua retirada." A segunda edição foi feita em Lisboa por A.C. Dias em 1835.

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