Os estrangeiros em Macau
A população de Macau, que não é chineza, consta de:
estrangeiros, europeus portuguezes, alguns canarins e malaios, por ultimo, de macaistas (filhos de Macau), como
elles próprios se designam.
Trataremos por agora dos estrangeiros.
Durante o tempo da emigração chineza, negregado trafico, que começou em 1851 e terminou em 1874, havia na
cidade do Santo Nome de Deus grande numero de estrangeiros, principalmente hespanhoes, peruanos e cubanos.
Estes indivíduos, que faziam rápidas e colossaes fortunas,
viviam bizarramente e davam grande animação à terra.
Hoje está o seu numero muito diminuído, vêem-se apenas
em Macau alguns negociantes de chá, ou seda, cônsules
de varias nações e poucos inglezes de Hong-Kong, que ali
passam o verão em chácaras ultimamente adquiridas.
Este decrescido numero de estrangeiros que por lá estanceia pouco anima a cidade. Pode dizer-se que fazem
vida á parte e conservam os hábitos das colónias dos seus
respectivos paizes.
Durante o entrudo, por occasião das festas chinezas aos
sabbados, etc, etc, apparecem, ás vezes, em Macau grandes caravanas de inglezes da vizinha colónia, os quaes vêem
ali divertir-se a seu modo. No carnaval vão alguns aos bailes de particulares, club e grémio militar, mas, em geral,
dirigem-se logo ás casas de fan-tan e acabam á noite por
se emborrachar.
É summamente curioso que o dono do único hotel para
europeus, um china de nome Pedro Yen-kee,* tenha quartos
especiaes e reservados para os inglezes que vêem a Macau
embebedar-se. Estes aposentos têem uma situação accommodada ao fim, de sorte que os outros hospedes nada soffrem com os distúrbios que, porventura, ali se façam.
Na nossa resenha esqueceu-nos mencionar alguns negociantes árabes, o que em nada transtornava a physionomia
da população, porquanto estes, sobraçando sempre o koran,
tratam apenas do seu trafico; vivem segundo a sua feição
peculiar.
* (Pedro) Hing Kee Hotel; ficava na Praia Grande perto do então Palácio das Repartições, sensivelmente onde hoje está o Edifício Comercial Nam Tung.
Este grupo é constituído principalmente pelos funccionarios públicos, civis e militares, podendo aggregar-se-lhes
alguns, mas pouquíssimos negociantes.
Estes elementos formam, por assim dizer, uma sociedade á parte; vivem uns com outros e conservam em geral, quasi todos os hábitos pátrios, com pequenas diferenças, absolutamente impostas pelas condições do clima, etc,
etc.
A cozinha é pouco mais ou menos a que temos por cá;
o vestuário pouco varia, a não ser no verão, em que se
usam fatos brancos.
Os homens passam as noites no club, ou no grémio militar, sociedades onde ha bilhares e partidas de jogo de
vasa, cavaco, jornaes, e terraços para se tomar o fresco
no estio.
Hoje ha reunião em casa d'este, amanhã d'aquelle; de quando em quando, organisam-se diversões e merendas no campo, caçadas, etc, etc.; aos domingos toca
a musica da guarda policial no passeio publico, etc, etc.
Bastantes dos funccionarios públicos são convidados para casa dos macaistas e vão a festas, casamentos ou banquetes, dados pelos chins ricos.
Os creados que nos servem são todos chinas, tornando-se difficil ao europeu obter creadas, mas arranjando-se em
compensação, bons cozinheiros e espertos ataes (rapazitos),
que remedeiam perfeitamente. (...)
Depois de alguns mezes de residência em Macau são as
cadeirinhas acceitas como excellente meio de transporte.
Entabolam-se relações com facilidade, a vida é barata,
o mercado abundante e a gente da terra obsequiosa para
connosco. (...)
Duas palavras acerca do vestuário.
Como já demos a entender, é Macau talvez a única cidade da China em que se mantém o uso de trajos europeus.
Os rapazes da cidade do Santo Nome de Deus são apuradissimos no vestir e apresentam-se nos passeios, na
Praia Grande, etc, etc, sempre correctos e aprumados.
Exhibem fraques e sobrecasacas acatitadas, calças de cores
vistosas, botas feitas a capricho, collarinhos bem engom-
mados e gravatas espalhafatosas.
Os funccionarios públicos e outros europeus portuguezes deixam-se levar, ás vezes, pela commodidade e condições climatológicas, elles não.
As senhoras de melhor tom ostentam vistosos vestuários de cores vivas, procurando acompanhar as modas de
Paris, que, seja dito de passagem, chegam lá bastante antiquadas.
Ha, porém, um trajo característico das macaistas. Consiste este n'um dó (mantilha de seda preta que cobre a
cabeça e parte do busto), em que vão completamente embiucadas, e n'uma saia preta de lã, com miúdos folhos
de alto a baixo. Cremos que por terem, quasi sempre,
pé e perna bem feitos, costumam arregaçar bastante as
saias e mostrar garridas meias.
Em casa usam, homens e mulheres, cabaias de seda. (...)
As senhoras de Macau são bastante indolentes e estão
acostumadas a ter creadas para tudo. Apreciam muito as
suas partidas de pau preto, jogo a que são muito aferradas e em que se entretêem ás noites; é o dominó modificado.
Isto pelo que toca a usos caseiros, pois que no respeitante á vida exterior torna-se necessário juntar algumas
palavras.
Durante o dia é raro verem-se nas ruas nhonhas (senhoras de Macau).
De manhã, porém, ahi das seis ás nove horas, encontram-se em grande quantidade, a caminho das igrejas, ou
regressando já de missas e officios.
Poucas vezes se vêem á janella, todavia estão quasi sempre
por detraz das persianas e gelosias, dando fé do que se
passa. Á noitinha, no verão, é frequente saírem a passeio
em busca de algum fresco.
É claro que nos temos referido ás nhonhas propriamente ditas, isto é, às senhoras dê Macau aferradas aos costumes antigos, porquanto ha algumas que dão reuniões, frequentam a nossa sociedade e até fazem gala em europeizar-se, permitta-se-nos o neologismo.
Em todo o caso, em geral são muito acanhadas, e têem
grande dilficuldade em sustentar uma conversação comnosco, o que não impede que as nhonhonhas (raparigas solteiras) se não dêem por muito felizes em casar com europeus.
Os homens são menos atados para comnosco, mas muito cheios de si e dos seus merecimentos.
Quasi todos têem necessidade de empregos públicos,
porque as fortunas feitas com a emigração foram breve
dissipadas pelo luxo e hábitos de grandeza, porém não
querem acceitar senão logares importantes. D'aqui resulta
terem alguns sido forçados a abaixar a proa, acceitando
cargos somenos em relação ás suas aspirações, mas só
depois de luctarem com grandes difliculdades. Outros vêem-se obrigados a expatriar-se, indo para Hong-Kong, vários
pontos da China, Cochinchina, etc.
É preciso dizer, em
abono da verdade, que são muito apreciados como empregados de commercio e que têem habilidade para quasi tudo quanto se mettem a fazer. Dentre muitas qualidades
boas que possuem, avulta um defeito grave, que consiste
em estarem sempre promptos para dizer mal de Portugal,
facto que faz péssimo effeito perante estrangeiros.
Que os macaistas não tomem entre dentes esta asserção,
porquanto não temos duvida em confessar que ficámos
sempre gratos á acolhida que nos fizeram, ao que acresce querermos suppor que tal modo de proceder lhes vem
do contacto comnosco, que, infelizmente, também temos a
mesma pecha. Tenham paciência; a probidade de escriptor
obriga-nos a pôr a verdade acima de tudo, tanto mais que
nos é lisonjeiro affirmar também que estes sentimentos só
se manifestam da boca para fora, pois que o coração é
portuguez de lei.
Alguns, mas poucos macaistas, occupam-se ainda da vida
do mar; outros mantêem emprezas commerciaes, ou são
intermediários dos chinas nos seus negócios; terceiros,
advogam, etc, etc.
Á noite reunem-se os macaistas em grande numero no club**,
onde jogam, cavaqueiam e tomam fresco no verão, em varanda apropriada. Poucos frequentam o grémio militar,
mas quando lá vão são muito bem recebidos, o que sempre acontece em soirêes, etc, para as quaes são convidados. (...)
Excertos de "Macau e os seus Habitantes", da autoria de Bento da França, publicado em 1897.
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