"(...) Embarcados na canhoneira Rio Lima levantamos ferro do porto de Hong Kong pelas oito horas da manhã do dia 23 de junho em direcção a Macau. Navegando contra vento e corrente cinco horas levamos a percorrer as quarenta milhas que separam as duas cidades. Pela uma hora da tarde entravamos na rade em frente da Praia Grande. (...)
Conde de Arnoso |
Inunda-nos a alma uma alegria sem egual ao ver nas fortalezas da Guia do Norte de S. Francisco e no frontão do palacio, tremular a nossa querida bandeira, achámos pittoresca a Penha de França surgindo de dentro do arvoredo risonho o aspecto da casaria assombreada pelas altas arvores em frente da curva graciosa da Praia Grande e até as ruinas do velho convento de S. Paulo recortando-se nitidas no ceu azul nos parecem um enorme arco triumphal. Lançámos ferro e entramos na galeota do governo commandada pelo immediato do porto e onde vem o secretario geral da provincia. Salvam as fortalezas. No caes, os governadores de Macau e Timor, o bispo cabido da Sé, o Leal Senado, os officiaes, todos os funccionarios, os chinas influentes e a grande massa da população china aguardam anciosos o nosso querido amigo Thomaz Rosa que durante os ultimos tres annos fora a primeira autoridade da provincia. Estrugem com enthusiasmo os vivas clamorosos que o presidente do Leal Senado levanta ao mesmo tempo que atròam os ares os estalidos alegres dos panchões. (...)
Encontrar terra portugueza a mais de 3 600 leguas de distancia da nossa querida patria é tamanha ventura que os cinco dias que estivemos em Macau contarão na nossa vida como para o caminhante no deserto contam as horas de descanço passadas á sombra bemfazeja das palmeiras d um oásis (...)
A peninsula de Macau cercada de ilhas pequena como é com a sua varzea fertilissima e as suas seis collinas d um relevo gracioso: Guia, Penha de França, Mong ha, D. Maria e Gruta de Camões é tudo quanto se possa imaginar de mais pittoresco. Quando d'aqui a alguns annos as 60 000 arvores creadas e mandadas plantar por Thomaz Rosa, e que parecem vingadas, cobrirem com a sua sombra aquellas encostas, Macau será um verdadeiro paraiso e a concorridissima estação de verão do extremo oriente. Já agora. os habitantes de Hong Kong procuram no clima natural de Macau um refugio aos excessivos calores d'esta quadra. É com verdadeiro prazer que um portuguez se encontra em Macau mesmo depois de ter visitado Aden, Colombo, Singapura, Saigon e Hong Kong, onde os inglezes e francezes a peso d'ouro teem creado estabelecimentos de primeira ordem. Nada nos envergonha.
O palacio do governo, comprado á familia Cercal é um vasto edificio de bella apparencia. Durante algum tempo estiveram n'elle diversas repartições, mais tarde, durante a ultima administração, todas se installaram com grande commodidade para o serviço publico no antigo palacio do governo, um optimo edificio tambem e onde principalmente se admira a sala do tribunal, que era a antiga sala do throno do palacio. Quantas capitaes de districto na metropole invejariam este edificio para as suas repartições e como todos desejariamos que o tribunal da Boa Hora se parecesse de longe com o tribunal de Macau.
Ao lado fica o pequeno correio estabelecido tambem durante o governo de Thomaz Rosa. Até então era coisa que não havia na provincia. Toda a correspondencia se enviava pelo vapor da carreira ao correio de Hong Kong.
O quartel de S. Francisco no extremo da praia grande mandado edificar pelo benemerito governador Coelho do Amaral. espaçoso bem arejado em excellentes condições. é occupado pelo batalhão do regimento do ultramar destacado em Macau.
Mais acima, no alto d'uma pequena collina, assenta o hospital S. Januario, magnifico e elegante estabelecimento que Macau deve, entre outras muitas coisas, á larga iniciativa do conde de S. Januario.
A Sé e egrejas de S. Lourenço, S. Domingos, Santo Antonio, S. Lazaro, Santo Agostinho, Santa Clara, S. José teem o cunho essencialmente portuguez das grandes e alegres egrejas das nossas terras de provincia. A de S. Lazaro, situada n'um bairro de chinas christãos é a mais antiga de todas. (...)
A policia de Macau é feita pela guarda policial que tem as suas companhias nos quarteis de Santo Agostinho, dos Mouros, Flora e S. Domingos. Soldados chinas locanes completam a falta das praças europeias, os locanes usam o sapato e a meia china apolainada, calção largo e azul, casaco da mesma fazenda, largo tambem e apertado por um cinturão. Na cabeça trazem o chapeu de palha chinez com as armas reaes pintadas na frente e as palavras Guarda Policial de Macau. Esta guarda foi armada ha dois annos com espingardas Remington. Existe tambem o batalhão nacional que tem uma companhia em serviço effectivo aquartelada no centro da cidade china. Assistimos ao exercicio de instrucção d'uma companhia d'este batalhão causando-nos impressão muito agradavel a sua boa apparencia, firmeza e precisão nos movimentos. O systema de defeza de Macau deixa muito a desejar. O actual governador e nosso amigo Firmino José da Costa procura modifica-lo; para esse fim mandou já transformar a bateria Primeiro de Dezembro n'uma bateria a barbete.
A provincia tem tudo a esperar do seu intelligente e illustrado governo que estamos certos será fecundo em beneficios de toda a natureza. Não pudemos visitar o edificio do senado, uma construcção de excellente apparencia porque se acha n'este momento em obras. Na antiga horta da mitra, transformada por Thomaz Rosa n'um bairro muito salubre está edificada a pequena mas elegante escola Principe D. Carlos, onde os chinas, com grande beneficio para o prestigio do nosso dominio, aprendem o portuguez.
É deveras bonito o pequeno palacio da Flora, habitação tambem do governador e onde se vèem ao lado d'um jardim do estylo de Le Notre, os viveiros d'onde saíram as arvores que actualmente povoam as encostas de Macau . (...)
Do pharol da Guia, o primeiro que se accendeu deu em todo o mar da China descobre-se um bello panorama. Vê-se a rade, as ilhas da Taipa, da Lapa e de D. João, a cidade subindo quasi até á Penha de França, o porto interior com a ilha Verde, Mong ha, a estreita lingua do isthmo Passa Leão e as azuladas distantes montanhas da China. (...)
Macau possue ao fim da Praia Grande o seu jardim publico onde aos dias santos quando toca a banda de musica se encontra toda a elegancia macaense. Nos dias de semana o passeio favorito é à BoaVista, um ponto da estrada que contorna a peninsula desde a Porta do Cerco até á Praia Grande. Esta estrada lindissima e sempre á beira mar. faz lembrar a Corniche de que Marselha tanto se orgulha.
Na Porta do Cerco levanta-se um grande arco mandado erigir pelo governador Sergio de Sousa, mesmo á beira do ilheu no limite da peninsula.
A Praia Grande é uma extensa e larga avenida em frente da bahia ensombrada de arvores que vae da fortaleza do Bom Porto até á bateria Primeiro de Dezembro.
A estrada da Flora segue desde a cidade até á Porta do Cerco. Do outro lado e para a parte interior estende-se uma rua á beira de agua que vae ao isthmo. Atravessa a varzea a estrada Coelho de Amaral que se liga á da Flora pela estrada Adolpho Loureiro do nome do distinctissimo engenheiro que elaborou o projecto completo das obras do porto de Macau e que oxalá seja um dia uma realidade. (...)
Como porém o unico merito que porventura possam vir a ter estas cartas é reproduzirem tudo quanto vimos, não nos furtaremos tambem a dizer o que seja a gruta de Camões. No cimo d'uma collina e dentro d'um jardim que sobe em socalcos, ou melhor, dentro d'um pequeno bosque, pela quantidade de velhas arvores que o povoam, está situada a gruta formada por tres penedos de granito dispostos como um dolmen, É este logar, mais de recolhimento que outra coisa, porque nenhuma vista se desfruta d'ali, que a tradição diz ter sido o pouso favorito do nosso grande epico e onde compoz as suas mais brilhantes estrophes. (...)
O bairro china dominado pelas altas casas dos hãos estende-se em baixo, ao longo da curva graciosa da rua marginal, no porto interior d'onde como um ramalhete emerge a ilha Verde, baloiçam-se centenas de tancás e de lorchas com as suas bandeiras vermelhas nos topos dos mastros. Para o outro lado, na montanhosa ilha da Lapa, descem as encostas manchadas de longe a longe por macissos de arvoredo até virem morrer nas frescas varzeas viçosas.
Todo o portuguez que visita Macau não póde esquecer o ir n'uma piedosa peregrinação á pedra do Amaral, nome d'esse bravo e destemido governador, barbara e traiçoeiramente assassinado pelos chinas. Fica na estrada da Porta do Cerco e perto da fortaleza de Mong ha o rochedo que o mar banha onde no dia 22 de agosto de 1849 foi encontrado o corpo de João Maria Ferreira do Amaral. As armas reaes portuguezas toscamente abertas na rocha desegual são o unico padrão que recorda a sua memoria. E todavia é certo que á sua destemida valentia deve a peninsula de Macau a sua completa independencia. (...)
Só uma parte da cidade de Macau é habitada por europeus. Essa parte tem boas ruas e em geral bem calçadas. Os europeus teem dois clubs, o club União onde ha o theatro D Pedro V, que é uma pequena mas elegante sala de espectaculos, e o gremio militar que está n'uma linda casa propriedade do gremio na Praia Grande ao lado do jardim publico. Este gremio ao principio era exclusivamente militar mais tarde reformaram os estatutos no sentido de admittir socios civis.
O bairro china ou bazar nome por que é conhecido por ser nesse bairro que se encontram todas as lojas, tem boas ruas apezar de não muito largas. O typo da casa é sempre o mesmo: rez do chão e primeiro andar. O rez do chão é occupado pela loja, o primeiro andar pela casa de habitação. Do primeiro andar vê-se tudo quanto se passa em baixo porque o sobrado é rasgado ao meio n'um quadrado defendido por uma balaustrada formando uma especie de claraboia aberta. (...)
De vez em quando eleva-se a uma grande altura um hão, casa de penhores. Visitamos o do sr Chung Volong, que tem nada menos de seis andares, No pavimento terreo estão os empregados occupados na escripturação, os cinco andares para onde se sobe por uma estreita escada não teem nenhuma divisoria e são em toda a sua extensão occupados de alto a baixo e a todo o comprimento por filas parallelas de magnificos armarios de madeira onde se conservam os penhores. Entre cada fila ha apenas o espaço necessario para se dar serventia aos armarios. Estas casas são tão bem organisadas que mesmo gente que não necessita de dinheiro deposita n'ellas nas differentes estações para melhor os conservar os vestuarios de que não precisa. Os ferros velhos, tin tins, lembram as installações da nossa feira da ladra. (...)
São curiosos os colaus, casas de pasto com largas e luxuosas escadarias e os espelhos dos degraus sempre dourados, Ha alguns que são ao mesmo tempo hospedarias pois ha n'elles tambem quartos para dormir. (...)
Os principaes pagodes de Macau são o da Barra, da Porta do Cerco e o de Matapan. A religião é a que principalmente domina na China apesar de ter sido primitivamente muito perseguida como contraria ás leis estabelecidas. (...)
O china tem como nenhum outro povo a paixão do jogo. Em Macau no bairro china são numerosas as casas de fan tan, Illuminadas com balões e lanternas; estão abertas durante todo o dia e até á meia noite. A sala do jogo é no primeiro andar. Ao subir a escada na parede do fundo em frente do patamar está escripto em caracteres chinas. No primeiro andar está a felicidade. O jogo faz-se em volta d'uma mesa quadrada coberta com uma esteira fina. Sentado a uma das faces desta mesa está o banqueiro que colloca as paradas segundo a indicação dos pontos e as paga em seguida ajudado por um outro china sentado perto d'elle em frente d'uma pequena banca. Este china, com uma balança deante de si, vae preparando os trocos embrulhando o dinheiro em papel e escrevendo por fóra o seu valor. Com a mania que os chinas teem de carimbar todas as moedas ellas vão successivamente perdendo do seu peso tornando-se por isso absolutamente indispensavel a operação da balança. Na face contigua da banca e á mão esquerda do banqueiro está o china que prepara o golpe. Um quadrado de madeira collocado ao meio da mesa serve para marcar as paradas. Joga-se aos numeros 1 2 3 ou 4 ou a combinações destes numeros´. Quem joga só a um numero ganha tres vezes o que aponta. quem joga a dois ganha duas vezes a parada. quem joga a tres ganha apenas uma vez, sempre já se vê com a deducção de sete por cento para o banqueiro. O china que prepara o golpe tem deante de si um monte de sapecas, umas duzentas talvez, e uma tigela de porcelana ou de metal, Com uma das mãos separa deste monte uma porção de sapecas que cobre com a tigela, Depois de estarem as paradas todas feitas descobre as moedas e com um estilete de madeira separa-as, uma a uma aos grupos de quatro. Se as ultimas moedas que ficam são quatro ganha o numero 4, se tres o numero 3, se duas o numero 2, se uma o numero 1. Cada golpe como se vè com a contagem das sapecas e depois com as pagas é muito demorado Como nestas casas entra toda a qualidade de gente, os chinas ricos e os europeus, para se não misturar com a gentalha, sobem ao andar superior, jogam sentados em volta d'uma balaustrada que se eleva do sobrado roto d'esse pavimento. O dinheiro das paradas faz-se subir e descer em cestos de palha suspensos de cordas atadas á balaustrada.
O arrematante do exclusivo do fan tan pagava á fazenda, quando ali estivemos, a quantia de cento e vinte mil patacas por anno. A loteria do Vae Seng, é tambem outro vicio do china. Esta loteria é estabelecida sobre os resultados dos exames feitos pelos estudantes na provincia de Cantão e por exame geral que se faz em Pekin. Em cada tres annos ha um exame geral em Pekin um exame geral na provincia e duas vezes exame em cada departamento. Sempre que ha exames ha loteria e cada bilhete contém vinte appellidos dos candidatos. Cada mil bilhetes formam uma serie e cada serie constitue uma loteria com tres premios. O primeiro premio é ganho pelo bilhete que contiver maior numero de appellidos de candidatos premiados. Ha bilhetes de meia pataca, uma, duas, tres, cinco e dez. O china tenta-se muito com esta loteria pois com um bilhete de dez patacas póde ganhar seis mil. Desde que o governo chinez permittiu a venda dos bilhetes em Cantão o arrematante da Vae Seng em Macau paga apenas trinta e seis mil patacas annuaes.
Praça de Ponte e Horta (Porto Interior) |
Por inutil temos de fallar na moralidade de similhantes fontes de receita para a fazenda. Felizmente em Macau ha umas poucas de industrias que prosperam. Bastantes fabricas de chá que fazem excellente negocio, uma de tabaco, uma de cozedura de opio, tres de desfiar seda e uma quasi a ponto de principiar a trabalhar, de cimento. Com bem pezar nosso não pudemos visitar todas essas fabricas. (...)
A pesca e salga do peixe occupa em Macau pelo menos dez mil pessoas eo seu valor eleva se em cada anno a oitocentas mil patacas. (...)
No dia 28 de junho embarcamos a bordo do excellente vapor de rodas que faz a carreira entre Macau e Hong Kong. Como no dia da chegada ninguem faltou á despedida. No caes as compridas bichas vermelhas suspensas de bambú levantado a grande altura na extremidade de dois mastros ardiam estalando alegremente. Da ponte, quando as rodas do vapor já a mover-se, o governador, cercado por os funccionarios, pela mais distincta gente e pelos chinas levantou ao ministro em Pekin os ricas da despedida. Deixamos com pezar esse boccadinho de patria que já nos fica bem distante. (...)
Excertos de Jornadas pelo mundo, Bernardo Pinheiro Correia de Mello (Conde de Arnoso), Porto, 1895. Imagens não incluídas no livro referido.
Muito interessante
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